por Vladimir Aras
O post anterior (Decisão judicial: cumpro quando quiser), no qual tratei do crime de desobediência, fez-me lembrar de uma consolidação de leis medievais e de uma expressão popular contemporânea: “vá reclamar ao bispo”. Como você verá, as duas coisas estão ligadas, tanto quanto durante muitos séculos estiveram entrelaçados o Estado e a Igreja.
O Fuero Juzgo ou Fuero de los Juezes é um dos grandes monumentos jurídicos da humanidade, embora menos conhecido que o Código de Hamurabi ou o Corpus Juris Civilis. Também chamado de Liber Iudicium, Liber Iudiciorum ou Livro dos Juízes, o Fuero Juzgo foi uma consolidação visigótica construída no decorrer de vários anos a partir de textos romanos e da tradição jurídica gótica. A primeira edição dessa lei geral unificadora teria ficado pronta em 643 d.C., durante o reinado de Chidasvindo, e republicada com aperfeiçoamentos em 654 d.C. no reinado de seu filho, Recesvindo. Substituiu o Breviário de Alarico, de 506 d.C. e o Código de Leovigildo, do mesmo século, leis aplicadas aos hispano-romanos nativos e aos visigodos, respectivamente.
Um dos povos bárbaros (germânicos) que se estabeleceu na Península Ibérica, os visigodos contribuiram para o declínio de Roma. Conquistaram a Espanha (Hispânia) por volta do ano 400 d.C. e lá permaneceram até 711 d.C. Seu governo estabelecido em Toledo sofria grande influência do bispado. Uma série de compilações e recompilações de suas próprias normas, de regras romanas e canônicas resultou na Lex Visogothorum conjunto normativo que vigeu no Reino Visigótico da Hispania, Septimania e Galícia e depois na Espanha entre os séculos VII e XIX, mesmo sob o domínio mouro (Al-Andaluz), até a promulgação do Código Civil espanhol de 1889. Mesmo quando Afonso X de Castela sancionou a Lei das Sete Partidas no século XIII, o código dos visigodos permaneceu parcialmente em vigor. Estima-se que sua influência também se estendeu ao território brasileiro durante a União Ibérica (1580-1640).
O território brasileiro, então sob o jugo colonial português, passou a ser possessão espanhola. O rei D. Sebastião de Portugal desaparecera na Batalha de Alcácer-Quibir, também conhecida como a Batalha dos Três Reis, que tomou lugar no norte do Marrocos em 1578. Disto resultou o fim da linhagem da casa de Avis, abrindo-se a crise dinástica de 1580 e acarretando a entrega da coroa portuguesa à dinastia filipina até 1640. Foi então que Filipe II da Espanha ascendeu ao trono português como Filipe I e que em 1595 aprovou as Ordenações Filipinas, conjunto de leis que levou o seu nome.
Acredita-se que a versão em espanhol do Código Visigótico, que recebeu o nome de Fuero Juzgo, tenha sido editada no ano de 1241 por ordem do rei Fernando III de Castela, após a libertação de Córdoba do domínio mouro. A lei XXVIII do Título I do Livro II do Fuero Juzgo atribuía poder aos bispos católicos sobre os juízes que julgassem “torto”, isto é, contra o direito:
Del poder que an los obispos sobre los iuezes que iudgan tuerto
Nos amonestamos á los obispos de Dios, que deven aver guarda sobre los pobres, e sobre los coytados por mandado de Dios, que ellos amonesten los iuezes que iudgan tuerto contra los pueblos, que meioren é que fagan buena vía, e que destagan lo que iudgáron mal. E si ellos non lo quisieren fazer por su amonestamiento, é quisieren iudgar tuerto, el obispo en cuya tierra es, deve lámar al iuez que dizien que iudgó tuerto, e otros obispos, e otros omnes buenos, y emendar el pleyto el obispo cum el iuez, segund cuemo es derecho. E si el iuez es tan porfiado, que non quiere emendar el iuyzio con él, estonze el obispo lo puede iudgar por sí, y el iuyzio que fuere emendado, faga ende un escripto de cuemo lo emendó, y envié el escripto con aquel que era lo agraviado antel’rey, que el Rey confirme lo quel semeiare que es derecho. E si el iuez tollier al obispo aquel omne que ante era agraviado por el iuez con tuerto, que non venga antel obispo, peche el iuez dos libras doro al rey.
Acima está o texto em castelhano arcaico. Aqui você encontra uma versão em inglês. Abaixo segue a tradução para o português realizada por João Marques Brandão Néto, procurador da República em Blumenau/SC e grande estudioso da História do Direito.
Nós admoestamos aos bispos de Deus, que devem ter guarda sobre os pobres e sobre os coitados, por mando de Deus; que eles admoestem os juízes que julgam torto contra os povos, para que melhorem e que façam boa vida e que desfaçam o que julgaram mal. E se eles não quiserem atender a admoestação dos bispos, e quiserem julgar torto, o bispo em cuja terra está, deve chamar o juiz que dizem que julgou torto, e outros bispos, e outros homens bons, e emendar o pleito com o juiz, segundo o que é de direito. E se o juiz for tão desleal que não queira emendar o julgamento com o bispo, então este pode julgar por si, e faça um escrito de como emendou o julgamento e envie este escrito ao rei, juntamente com a pessoa que estava agravada, para que o rei confirme o que lhe parecer que é direito. E se o juiz impedir que vá ao bispo aquele homem que antes era agravado por ele, juiz, com torto, pague o juiz duas libras de ouro ao rei.
Segundo Manuel de Alardizabal y Uribe, esta regra teria surgido no IV Concílio de Toledo, convocado pelo rei Sisenando, dos visigodos, em 633 d.C.
Na época colonial, o Bispo do Brasil também podia realizar investigações, então chamadas de devassas; o nome “inquérito policial” só surgiu em 1871. O primeiro bispo da colônia foi d. Pero Fernandes Sardinha, que acabou devorado pelos índios caetés após naufragar na costa de Alagoas em 1556. O sacerdote, representante da Igreja romana e da coroa portuguesa, podia tomar depoimentos e arrancar confissões mediante tortura, papel que também cabia aos comissários e familiares do Santo Ofício.
Augusto Sampaio Angelim relata que na era colonial “havia comarcas eclesiásticas, com os vigários de vara, com poderes instrutórios e sumários, agindo os bispados como instância recursal, os quais estavam subordinados à Mesa de Consciência e Ordens, situada em Lisboa.”
Do poder conferido aos bispos da Inquisição e das competências que tais membros do clero passaram a ter no período visigótico parece derivar a expressão que dá título a este post.
Portanto, embora pareça um desaforo (e hoje é), o debochado dito “vá reclamar ao bispo” pode ter origem no Livro dos Juízes do direito medieval visigótico e nas regras do Tribunal do Santo Ofício. Queixar-se ao bispo era lei.