por Vladimir Aras
“Milhões de braços, uma só força” diz o refrão do hino nacional moçambicano. A experiência de uma semana de trabalho em Moçambique foi enriquecedora e revelou a importância da cooperação. Chegamos à capital, Maputo, em 10/abr, num voo da South African Airlines (SAA), que partiu de Guarulhos com destino a Joanesburgo, na África do Sul. A conexão regional fizemos com as Linhas Aéreas de Moçambique (LAM). O grupo de instrutores enviado pela Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU ficou hospedado no Hotel Cardoso, na cidade alta, de onde se tem uma bela vista da capital, cidade de mais de um milhão de habitantes.
O programa de capacitação de magistrados moçambicanos, viabilizado pela Agência Brasileira de Cooperação, do MRE, pela ESMPU e pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária(CFJJ) de Moçambique, transcorreu a contento. Membros do Ministério Público Federal do Brasil cuidaram de temas como crime organizado, lavagem de dinheiro, corrupção e tráfico de pessoas, armas e drogas. Veja neste link a matéria no site da ESMPU sobre o evento em Maputo: “Encerrada em Moçambique primeira fase de capacitação jurídica para magistrados e membros do Ministério Público“.
Dei aula sobre organizações criminosas e instrumentos de persecução para magistrados do Ministério Público e magistrados judiciais daquele país. Lá, juízes e procuradores prestam o mesmo concurso de ingresso na “Magistratura” e começam estudando juntos no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ).
Segundo o art. 234 da Constituição de 2004, “O Ministério Público constitui uma magistratura hierarquicamente organizada, subordinada ao Procurador-Geral da República.” Atualmente, o cargo é ocupado pelo juiz Augusto Paulino. O PGR tem mandato de 5 anos e todos os anos deve fazer um discurso à Assembleia da República (o congresso deles) sobre o estado geral da Justiça no país. Está aí uma coisa que deveríamos copiar…
No grupo de 20 alunos da primeira turma havia juízes, procuradores, desembargadores, e, entre eles, chefes de unidades judiciais importantes, como o Gabinete Central de Combate à Corrupção (GCCC) e a Procuradoria da Cidade de Maputo.
A Embaixada brasileira cedeu o Centro Cultural Brasil-Moçambique (CCBM), na Av. 25 de Setembro, esquina com Av. Karl Marx, para a sede do curso. O centro fica localizado numa região bem movimentada da capital.
Maputo é uma cidade muito peculiar. As lembranças do período de influência marxista estão por toda a parte. A Av. Vladimir Lênin se encontra com a Av. Patrice Lumumba.
A Mesquita da Baixa (Maputo, 2011)
Mas hoje a presença da China é mais vistosa do que outrora foi a da União Soviética. Vieram do Banco da China os recursos para a construção da nova sede da Procuradoria-Geral da República, um dos mais bonitos e bem estruturados prédios públicos de Maputo. Parte da mão-de-obra empregada na edificação também foi chinesa.
A Baía de Maputo
Os moçambicanos saíram há duas décadas de uma guerra civil muito dura entre a “direita” (Renamo) e a “esquerda” (Frelimo), que hoje são os partidos dominantes em Moçambique. Os conflitos ideológicos começaram logo após a independência em 1975 e só cessaram em 1992. Em algumas regiões do país ainda há centenas de minas terrestres plantadas, uma triste e perigosíssima herança da guerra. A Constituição de 2004 chega a fazer referência aos mutilados, assegurando aos deficientes em razão da guerra direitos especiais previstos no art. 16. Há um órgão, o Instituto Nacional de Desminagem (IND), encarregado de localizá-las e desarmá-las.
Três dos professores brasileiros com o PGR de Moçambique
Entretanto, apesar do longo histórico de conflitos, comparativamente com o Brasil, há baixíssima criminalidade nas ruas, o que pudemos comprovar pelas estatísticas governamentais e na prática, porque caminhamos tranquilamente pela capital, sem aborrecimento com trombadinhas ou assaltantes. Os crimes mais graves e violentos costumam acontecer no interior do país. Pessoas suspeitas de bruxaria (feitiçaria), roubos ou estupros são linchadas por turbas. Leia mais sobre isto no blog do sociólogo Carlos Serra.
Curiosamente, a bandeira do país é a única do mundo que tem um fuzil como um de seus símbolos heráldicos:um AK-47 Kalashnikov, de fabricação russa, do tipo usado na guerra, adorna o pavilhão moçambicano. Serve ali para representar a luta armada (defesa nacional). A arma se cruza com uma enxada, representativa da agricultura, e ambas estão sobrepostas a um livro, simbolizando a educação. Esta descrição minuciosa consta do art. 297 da Constituição.
As terras moçambicanas foram inicialmente habitadas por tribos autóctones africanas, depois ocupadas por mercadores árabes e enfim colonizadas por conquistadores portugueses. Porém, hoje há signifiativas comunidades de indianos e chineses. Fala-se português corrente, num jeito mais parecido com o de Portugal do que com o nosso. Mas entre pessoas da mesma etnia ou da mesma região, os moçambicanos usam seus idiomas próprios. São mais de 20 línguas maternas, incluindo o zulu, a maior parte delas do grupo banto (ou bantu) e muitas delas ágrafas (sem escrita própria). No sul do país, usa-se muito o changana ou xiChangana. O português é a língua oficial e da unidade nacional.
Moçambique é um dos membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que reúne também Portugal (capital Lisboa), Brasil (capital Buenos Aires, oops, Brasília), Angola (capital Luanda), São Tomé e Príncipe (capital São Tomé), Cabo Verde (capital Praia), Guiné-Bissau (capital Bissau) e Timor Leste (capital Dili), e, em breve, a Guiné Equatorial (capital Malabo), nação africana que em 2010 tornou o português uma de suas três línguas oficiais. Teoricamente, Macau, região administrativa especial da República Popular da China, também poderia fazer parte deste grupo.
Moçambique também é membro dos PALOP – organização dos Países Africanos de Língua Portuguesa. Clique aqui para conhecer o projeto LegisPalop, que integra a base de dados oficial de legislação, jurisprudência e doutrina dessas nações em desenvolvimento.
Os moçambicanos veem muita TV brasileira (Globo e Record), o que contribui para a expansão do idioma comum. A Record adquiriu em 2010 a TV Miramar de Maputo, que retransmite parte de sua programação. Um dos blogs de notícias mais lidos, o Elefante News, é mantido pelo jornalista brasileiro Eduardo Castro. Nos seus gostos e costumes, os moçambicanos lembram muito os brasileiros: são alegres e receptivos como os baianos. Tal e qual Salvador, Maputo fica numa baía e tem uma parte alta e uma parte baixa, onde estão o porto e o comércio. A capital tem uma bela fortaleza, que remete à presença portuguesa. O Brasil está muito presente em programas de cooperação e também nos investimentos da Vale, que explora carvão mineral, e da Petrobras, que prospecta petróleo.
O custo de vida é muito baixo. Quando estivemos lá, um dólar comprava 32 meticais, a moeda nacional. O turismo, especialmente no norte do país, está florescendo. Na região próxima à fronteira com a Tanzânia, há resorts e praias lindíssimas. Ali estão a Província de Cabo Delgado e as Ilhas Quirimbas.
Um dos maiores parques de vida selvagem do mundo fica bem perto de Maputo, a uns 140 km a noroeste. É o Kruger Park, situado na vizinha África do Sul. Esta proximidade com a potência econômica do continente favorece os negócios e influencia costumes, inclusive o modo de dirigir. Lá vigora a mão inglesa. Volantes do lado direito. Carros do lado esquerdo. Em conversas coloquiais os moçambicanos usam muito a palavra “iá”, em lugar do “sim”, por influência do inglês “yeah”, presumo.
A culinária do país é muito rica. Abundam os frutos do mar e os mariscos. Provei um prato chamado matapa – uma espécie de maniçoba que é feita com a folha da mandioca e camarões – e uma feijoada com feijões grandes e carne gordíssima. Se quiser um molho de pimenta, peça o piripíri, a malagueta (Capsicum frutescens) e também o nome pelo qual é conhecido um dos bairros de Salvador: Periperi. A febre amarela e a malária são doenças muito comuns. Para a primeira, existe a vacina. Para a segunda, reza.
Como se fossem patologias, a corrupção no setor público e o tráfico de pessoas são graves problemas em quase todo o continente. Se antes os africanos eram traficados como escravos para o eito na América, agora são traficados como mercadorias sexuais, especialmente mulheres e crianças, rumo à Europa e ao extremo sul do continente, ou tratados por coiotes como gado, quando só querem tornar-se migrantes. Muitas das riquezas do país e de seus dramas são retratados pelo seu maior e mais premiado romancista, Mia Couto.
Os brasileiros que estivemos em Maputo (éramos sete) compuseram o primeiro grupo de capacitação internacional da Escola Superior do Ministério Público da União (ESMPU), que tem sede em Brasília. Fomos lá para abrir caminho para os próximos dois anos do projeto de cooperação e para ajudar um povo irmão a aperfeiçoar seu sistema de justiça criminal. Atravessamos o Atlântico e nos acercamos do Índico. A viagem foi longa, mas moçambicanos e brasileiros não estão tão distantes assim…