Cerimônia,

Ultraje a rigor

Uma equipe do show televisivo foi a Londres para cobrir a cerimônia fúnebre da cantora. Que ótimo lugar para fazer humor, não?

Por Vladimir Aras

Haverá tempo de cantar Tears Dry on Their Own. Com o tempo, as lágrimas se vão por si mesmas. Amy Winehouse, uma das mais belas vozes da música pop, morreu tragicamente aos 27 anos no dia 23/jul. Como prenunciavam suas canções Rehab e Back to Black, seus clipes algo sombrios, sua fisionomia esquálida e seu histórico de uso de drogas lícitas (álcool) e ilícitas (heroína e outras pesadas), a cantora britânica que encantou multidões nos quatro cantos do mundo, cumpriu o seu script de vida.

Mas quem fugiu do roteiro de forma grosseira e deselegante foi o programa Pânico na TV! da emissora RedeTV. Uma equipe do show televisivo foi a Londres para cobrir a cerimônia fúnebre da cantora. Que ótimo lugar para fazer humor, não?

Era um evento religioso segundo o ritual judaico. O funeral ficou restrito à família e a amigos mais próximos. No entanto, aparentemente, o personagem Impostor, encarnado pelo humorista Daniel Zukerman, teve acesso à cerimônia e até deu entrevista a uma emissora de TV alemã (veja aqui).

Fingindo contrição, o “ator” enganou a repórter e tripudiou sobre a dor de familiares, amigos e fãs da artista, após haver, ao que suponho, violado a privacidade familiar. Segundo a Folha de São Paulo, Zukerman e o produtor do programa, André Machado, foram fotografados chorando por várias agências internacionais. Trajavam ternos e gravatas pretas e quipás. A rigor, riam. Um ultraje.

Este blog não aborda o show business. Então, o que eu quero com este assunto? Lá vou eu tecer conexões esquisitas entre um assunto e outro… Pois bem, façamos um exercício sobre a aplicabilidade da lei penal brasileira no caso em questão. O fato ocorreu na Inglaterra. A lei brasileira seria aplicável para punir condutas como esta? Teoricamente falando – isto aqui é apenas uma hipótese e não um libelo contra os dois desorientados aí -, poderíamos estar diante do crime do art. 209 do CP:

Impedimento ou perturbação de cerimônia funerária

Art. 209 – Impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária:

Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Como esse hipótetico delito teria ocorrido no exterior, quem assim agisse, perturbando um funeral, poderia ser punido no Brasil?

Costumo dizer que a lei penal é como um carrapato ou um carrapicho: segue-nos aonde formos. Num caso como este, o Ministério P’úblico poderia invocar o art. 7°, inciso II, alínea `b`, c/c o §2°, do Código Penal, para aplicação extraterritorial da lei penal brasileira. Porém, há requisitos a atender. Pelo princípio da nacionalidade ativa, são punidos no Brasil os crimes cometidos por brasileiro no exterior, se:

a) o agente entrar no território nacional: o suspeito tem de estar em solo brasileiro, tendo ingressado voluntariamente ou por extradição;

b) houver dupla tipicidade ou dupla incriminação: o fato tem de ser crime no território dos dois países envolvidos;

c) o crime praticado for extraditável, isto é, não pode se tratar de delito político ou de opinião e a infração deve ser grave o suficiente para permitir um pedido de extradição conforme a lei brasileira, ainda que não seja o caso;

d) não houver bis in idem, ou seja, o agente não pode ter sido punido no exterior pelo mesmo fato nem absolvido de tal acusação; e

e) não tiver ocorrido o perdão no exterior ou não extiver extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.

Se todas essas condições estiverem reunidas, o suspeito pode ser processado criminalmente perante o Judiciário brasileiro.

Pela regra geral, se o crime praticado fosse mesmo o do art. 209 do CP, seu autor estaria livre de punição no Brasil. Isto porque, não havendo tratado, tal delito não seria extraditável, uma vez que a pena cominada abstratamente vai deegundo o art. 77, inciso IV, da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro), não se concede a extradição se a lei brasileira impuser ao crime pena de prisão igual ou inferior a 1 ano.

Contudo, há regra especial. Segundo o Tratado de Extradição firmado entre o Brasil e o Reino Unido em 1997 (integrado ao nosso ordenamento pelo Decreto 2.347/97), são extraditáveis os crimes puníveis nas legislações de ambos os Estados Contratantes com penas de privação de liberdade iguais ou superiores a um ano, ou com uma pena mais severa. Como o tratado é lei especial em relação ao Estatuto do Estrangeiro, a regra bilateral prevalece sobre a disposição do art. 77, IV, da Lei 6.815/80.

Pois, então, qual seria o Juízo competente para julgar o caso? O da capital do Estado onde residisse o suspeito (art. 88 do CPP): “No processo por crimes praticados fora do território brasileiro, será competente o juízo da capital do Estado onde houver por último residido o acusado”.

E lá o caso tocaria ao Juizado Especial Criminal, já que o crime do art. 209 do CP é uma infração penal de menor potencial ofensivo. Na prática, o Ministério Público poderia oferecer uma transação penal aos agentes, para aplicação imediata de uma pena não privativa de liberdade. Talvez a proibição de frequentar determinados lugares fosse suficiente. Por exemplo: proibição de frequentar a tela da TV…

Portanto, para a hipótese de um impostor qualquer ser acusado do delito de perturbação de cerimônia funerária (ou outro delito a gosto), praticado no estrangeiro, talvez fosse possível iniciar a persecução criminal no Brasil. Porém, para casos similares, mais eficiente que a lei penal é o Ibope com seus índices de audiência. O telespectador é o juiz. Para os “crimes” de mau gosto e baixaria, o controle remoto resolveria. 

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