Por Vladimir Aras
A sanção da Lei 13.148/2015 suscita uma interessante questão de direito internacional público. Como outros diplomas legais brasileiros, essa lei foi inspirada por um tratado: a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2007 (Convention on the Rights of Persons with Disabilities).
Vigora no Brasil o sistema bifásico de aprovação de tratados internacionais. Para sua incorporação são necessárias a assinatura e a ratificação do texto. O Poder Executivo e o Poder Legislativo participam desse processo, que se encerra com a promulgação do tratado internamente.
Inicialmente, representantes do Poder Executivo – em geral diplomatas e equipes técnicas de outros ministérios e instituições nacionais – negociam os termos do tratado, acordo, protocolo ou convenção. Segue-se a assinatura do texto pelo presidente, um ministro ou outro plenipotenciário.
O tratado é enviado pela presidência da República ao Congresso Nacional. A tramitação se inicia pela Câmara dos Deputados. Procede-se a votação nas duas casas e publica-se o decreto legislativo, que autentica o texto que passará a valer após a ratificação, ou a adesão, se for o caso.
Então, o Chefe de Estado, o chanceler ou outro plenipotenciário ratifica o tratado ou convenção, mediante o depósito do instrumento de ratificação perante o Estado ou organismo depositário. Com isto se conclui o procedimento bifáfico de formação do vínculo convencional. Pacta sunt servanda.
Pois bem. O que ocorreu com essa Convenção de 2007 e com muitas outras antes e depois dela? Vigência dúplice, uma no plano internacional e outra no plano interno. Eis o que diz o parágrafo único do artigo 1º da Lei 13.148/2015:
Art. 1o É instituída a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania.
Parágrafo único. Esta Lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no 186, de 9 de julho de 2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3o do art. 5o da Constituição da República Federativa do Brasil, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31 de agosto de 2008, e promulgados pelo Decreto no6.949, de 25 de agosto de 2009, data de início de sua vigência no plano interno.
Eis a perplexidade: como um tratado pode estar em vigência externamente para um país e não vigorar internamente no mesmo país? Isto não faz sentido algum.
O Poder Executivo deve pôr fim a essa dissociação. Como vimos, após a aprovação do Congresso Nacional, o texto deve ser ratificado pelo Chefe de Estado brasileiro. A partir daí devia-se seguir a regra do próprio tratado para o inicio da vigência. Em regra, isto se dá 30 dias após o depósito do instrumento de ratificação perante o Estado ou o organismo depositário.
No entendimento atual, a vigência interna dependerá da publicação do decreto presidencial que veicula aquele mesmo texto convencional no Diário Oficial da União.
Porém, não é raro que o Poder Executivo demore muito para publicar esse decreto presidencial. Infelizmente, esse rito para a incorporação de tratados ao direito interno brasileiro foi chancelado pelo STF, como se vê nesse julgado de 1998:
PROCEDIMENTO CONSTITUCIONAL DE INCORPORAÇÃO DE CONVENÇÕES INTERNACIONAIS EM GERAL E DE TRATADOS DE INTEGRAÇÃO (MERCOSUL). – A recepção dos tratados internacionais em geral e dos acordos celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL depende, para efeito de sua ulterior execução no plano interno, de uma sucessão causal e ordenada de atos revestidos de caráter político-jurídico, assim definidos: (a) aprovação, pelo Congresso Nacional, mediante decreto legislativo, de tais convenções; (b) ratificação desses atos internacionais, pelo Chefe de Estado, mediante depósito do respectivo instrumento; (c) promulgação de tais acordos ou tratados, pelo Presidente da República, mediante decreto, em ordem a viabilizar a produção dos seguintes efeitos básicos, essenciais à sua vigência doméstica: (1) publicação oficial do texto do tratado e (2) executoriedade do ato de direito internacional público, que passa, então – e somente então – a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno. Precedentes. (STF, Pleno, CR 8277 AgR / Argentina, rel. min. Celso de Mello, j. em 17.6.1998).
No caso da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o que ocorreu?
a) assinatura do tratado em 30 de março de 2007;
b) entrada em vigor da Convenção no plano internacional: 3 de maio de 2008, após a 20ª ratificação;
b) aprovação congressual no Brasil em 9 de julho de 2008;
c) ratificação do tratado pelo Estado brasileiro em 1º de agosto de 2008 (aqui);
d) vigência internacional para o Brasil em 31 de agosto de 2008, isto é, 30 dias após o depósito do instrumento de ratificação, na forma do artigo 45, §2º da Convenção;
e) vigência interna, no Brasil, em 26 de agosto de 2009, data da publicação do Decreto 6.949/2009 no D.O.U.
Não deveria ser assim. Segundo o artigo 24 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969 (Decreto 7.030/2009), “um tratado entra em vigor na forma e na data previstas no tratado ou acordadas pelos Estados negociadores“. A regra da Convenção de Viena de 1969 deveria bastar para resolver essa celeuma e unificar as vigências no Brasil e para o Brasil. Tal tratado mostra-se relevante para a solução da controvérsia porque ele mesmo não estava ainda em vigor em 1998 quando o STF estabeleceu seu precedente, o que pode persuadir a Corte a revê-lo.
Diante do que temos hoje, a pergunta que resta é: entre 31 de agosto de 2008 (vigência internacional para nós) e 26 de agosto de 2009 (vigência interna aqui), quase um ano, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência não valia no Brasil?
Para essa Convenção, a dissociação temporal foi de quase um ano. Mas há casos piores. A Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) foi assinada na cidade de Praia há dez anos, em novembro de 2005. A aprovação no Congresso Nacional deu-se pelo Decreto Legislativo 288, de 16 de novembro de 2011. O texto foi ratificado pelo Brasil em julho de 2009. Embora já esteja em vigor internacional desde aquele mesmo ano, essa Convenção da CPLP ainda não tem vigência interna no Brasil, porque na data que escrevo – agosto de 2015 – não foi publicado o decreto presidencial de promulgação. Este é o quadro 10 anos após a assinatura e 6 anos após a ratificação: um tratado que não vale por aqui.
Diante disso, na prática forense criminal, as autoridades brasileiras precisam recorrer a outros tratados ou ao princípio da reciprocidade para o dialógo processual com quase todos os Estados membros ou observadores da CPLP, salvo Portugal, porque o Brasil não tem tratados bilaterais de assistência em matéria penal com Timor Leste, com Macau (RAEM) nem com os Países Africanos de Língua Oficial Portiguesa (PALOP), isto é, Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
Qual seria a solução para situações como esta? A vigência interna e a vigência internacional deveriam ocorrer na mesma data, de acordo com o texto do tratado. Para isso bastaria que o Poder Executivo, ao depositar o instrumento de ratificação, desse publicidade a esse ato no Diário Oficial da União, com especificação da vigência do tratado então ratificado. De uma vez só, e não em dois tempos.
É assim em Portugal:
MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS
Aviso n.º 181/2011
Por ordem superior se torna público que a República Portuguesa depositou, em 1 de Fevereiro de 2010, junto do Secretariado Executivo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, o seu instrumento de ratificação relativo à Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, assinada na Cidade da Praia em 23 de Novembro de 2005.
A referida Convenção foi aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 46/2008, de 18 de Julho, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 64/2008, ambos publicados no Diário da República, 1.ª série, n.º 177, de 12 de Setembro de 2008.
Nos termos do seu n.º 3 do artigo 19.º, a Convenção de Auxílio Judiciário em Matéria Penal entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa entrou em vigor, para a República Portuguesa, no dia 1 de Março de 2010.
Nos termos dos n.os 2 e 3 do artigo 19.º, a Convenção já se encontra em vigor para a República de Moçambique, para a República Democrática de São Tomé e Príncipe e para a República Federativa do Brasil, desde 1 de Agosto de 2009, para a República de Angola, desde 1 de Janeiro de 2011, e para a República Democrática de Timor-Leste, desde 1 de Maio de 2011. Direcção -Geral de Política Externa, 2 de Agosto de 2011. — O Director -Geral, António Carlos Carvalho de Almeida Ribeiro.
Podia ser assim no Brasil. Vigência interna e internacional de uma só vez.