Vladimir Aras

“Taint teams” à brasileira: o §6º-F do art. 7º da Lei 8.906/1994

A Lei 14.365/2022 introduziu importantes alterações no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.

Foto: Divulgação
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A Lei 14.365/2022 introduziu importantes alterações no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Uma delas resultou na inclusão de um novo §6º-F no art. 7º da Lei 8.906/1994:

§ 6º-F. É garantido o direito de acompanhamento por representante da OAB e pelo profissional investigado durante a análise dos documentos e dos dispositivos de armazenamento de informação pertencentes a advogado, apreendidos ou interceptados, em todos os atos, para assegurar o cumprimento do disposto no inciso II do caput deste artigo.

O novo procedimento a ser adotado pela Polícia e pelo Ministério Público ocorre em dois momentos:

1.A seleção do material físico ou digital a ser apreendido deve ocorrer na presença do advogado investigado e do representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Este é o momento da filtragem daquilo que será efetivamente apreendido, conforme o mandado judicial, ou do que já foi apreendido, lacrado, transportado e que será agora selecionado para a perícia. Não se trata de observar a cadeia de custódia, que é função policial-pericial; trata-se de filtrar o material que deverá ser encadeado para evitar sua contaminação em decorrência da violação de prerrogativa profissional relativa à inviolabilidade documental e comunicacional do advogado.

2.A análise pericial propriamente dita, a ser feita posteriormente pelos peritos ou analistas, com o material já filtrado (descontaminado), ato que se realiza sem a presença do advogado investigado ou do representante da OAB.

A lógica desse dispositivo é a mesma dos taint teams ou privilege teams do direito norte-americano. Um taint team é uma equipe formada por policiais e/ou membros do Ministério Público que, sem estarem encarregados da investigação em curso (terceiros em relação ao caso), funcionam como “censores” do que pode e do que não pode ser apreendido ou do que pode ou não pode ser submetido a perícia ou a análise especializada. É um grupo de filtragem que serve para impedir que documentos estranhos ao caso sob investigação, ou documentos físicos ou digitais que estejam protegidos pelo privilégio attorney-client sejam vistos, copiados, fotografados ou apreendidos pela equipe de persecução da Polícia ou do Ministério Público. É, portanto, um grupo de descontaminação, que é empregado para evitar vícios na atividade probatória. Tais profissionais não lidarão com a apuração ou a ação penal subsequente.

O Justice Manual (JM), documento oficial do Departamento de Justiça dos EUA, determina que, para proteger o sigilo advogado-cliente e garantir que a investigação não seja comprometida pela exposição dos investigadores a material sigiloso relativo à investigação ou à estratégia de defesa, uma “equipe de privilégios” deve ser designada pela agência de persecução. Tal equipe será constituída por agentes e procuradores não envolvidos na investigação. Vide, no particular o tópico 9-13.420 do JM, sobre “Searches of Premises of Subject Attorneys“. O referido manual se assemelha a uma compilação de enunciados ou orientações para os órgãos de persecução criminal.

Na lei brasileira, a expressão “análise dos documentos e dos dispositivos de armazenamento de informação pertencentes a advogado” não se refere à fase da perícia documental ou digital em si. Ou seja, no §6º-F, a “análise dos documentos” não corresponde ao momento da análise pericial, chamada pelo inciso VIII do art. 158-B do CPP de “processamento”. Esta atividade está a cargo de peritos da Polícia Técnica, da Polícia Científica ou do Instituto Nacional de Criminalística (INC) ou de analistas do Ministério Público e ocorre sem a intromissão de particulares.

A expressão destacada remete-se à fase da seleção do material físico ou digital sujeito a apreensão, isto é, da separação daquilo que será realmente usado na fase seguinte (a pericial, propriamente dita). Aparta-se o que será útil do que é inútil ao trabalho investigativo; aparta-se ainda o que está protegido pelo Estatuto da Ordem daquilo que pode ser legitimamente apreendido e examinado. No tocante aos dispositivos digitais apreendidos, faz-se a extração de seu conteúdo com o acompanhamento presencial (in loco) ou virtual (com armazenamento na nuvem) pelo advogado investigado e pelo representante da OAB. Estes poderão apontar eventual material protegido, para sua exclusão. Após esse procedimento segue-se com a perícia. Desta participarão apenas as autoridades públicas. A presença do advogado investigado e do fiscal de prerrogativas não ocorre no ato pericial em si, mas somente no momento anterior de filtragem ou de seleção.

Conforme o §6º-F do art. 7º da Lei 8.906/1994, garante-se o acompanhamento por representante da OAB e pelo profissional investigado da análise dos documentos e dos dispositivos de armazenamento de informação, “para assegurar o cumprimento do disposto no inciso II do caput deste artigo“. Esta parte final do §6º-F é a chave de interpretação da norma. O inciso II do art. 7º do EOAB trata do privilégio cliente-advogado; não de cadeia de custódia da prova.

II – a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia;

Nesse contexto, o incidente de proteção dessa prerrogativa da importante profissão advocatícia se encaixa na primeira etapa da cadeia de custódia, a do “reconhecimento”, descrito pelo inciso I do art. 158-B do CPP como o “ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial”. Amolda-se também ao momento prévio ao início da perícia propriamente dita, chamado de “processamento”, podendo os advogados acompanhar a remoção dos lacres dos materiais apreendidos e assistir à seleção do que será periciado e requerer a exclusão daquilo que for protegido pelo privilégio legal.

Pode-se concluir que a Lei 14.365/2022 não introduziu na legislação processual um novo momento para a perfectibilização da cadeia de custódia da prova. Tampouco afirmou um novo direito de participação na perícia estatal, estritamente considerada. Os procedimentos necessários para o respeito à cadeia de custódia estão nos arts. 158-A a 158-F do CPP, e ali nada se alterou. O que se criou foi uma contenção à própria apreensão de documentos (físicos ou eletrônicos) ou à manutenção da apreensão de certos materiais protegidos, nos termos do inciso II do art. 7º. O questionamento quanto à apreensão de documentos (confidenciais) que não deveriam tê-lo sido resolve-se pela incidência da proibição do uso de provas ilicitamente obtidas, de estatura constitucional, e não pela alegação da quebra da cadeia de custódia.

Assim, eventual inobservância do § 6º-F do art. 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados não tem impacto sobre todo o material apreendido e periciado, pois não há sanção de nulidade quanto à produção da prova que poderia ter sido validamente coletada, selecionada, periciada e usada em juízo. A integridade dessas provas não estará tisnada (tainted). O impacto processual (a nódoa ou mácula), em caso de inobservância do referido parágrafo, restringe-se apenas às provas físicas ou digitais protegidas pelo privilégio cliente-advogado e às provas delas derivadas, isto é, a todas as provas protegidas pela cláusula de inviolabilidade prevista no inciso II do art. 7º do EOAB. Esta documentação maculada deverá ser objeto de exclusão dos autos, com devolução devidamente registrada, seja por decisão judicial ou por iniciativa da Polícia ou do Ministério Público.

No particular, vale lembrar que, em investigação realizada antes da Lei 14.365/2022, a 6ª Turma do STJ já havia enfrentado a questão do acesso a comunicações de advogados suspeitos de crimes. De algum modo, a Corte abordou o tema da filtragem. É o que se vê no acórdão proferido em 14 de junho de 2022 no RHC 157.143/PR, sobretudo no item 6 da ementa que transcrevo:

PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. INVESTIGAÇÃO QUE ATRIBUI AOS RECORRENTES, ADVOGADOS, O DELITO DE PARTICIPAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA. COAÇÃO A TESTEMUNHAS DE DETERMINADA AÇÃO PENAL, POR MEIO DE APARELHO CELULAR. DECRETAÇÃO DA QUEBRA DO SIGILO TELEMÁTICO. ALEGAÇÃO DE QUE O TRIBUNAL NÃO DEBATEU SUFICIENTEMENTE A QUESTÃO. IMPROCEDÊNCIA. WRIT ORIGINÁRIO QUE, APESAR DE NÃO ADMITIDO, ENFRENTOU AS ALEGAÇÕES DEFENSIVAS. PRETENSÃO DE OBSTAR O ACESSO INTEGRAL AOS DADOS TELEMÁTICOS DOS RECORRENTES. RAZÕES TÉCNICAS QUE IMPEDEM A EXTRAÇÃO PARCIAL DOS DADOS QUE INTERESSAM À INVESTIGAÇÃO. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO SIGILO PROFISSIONAL DIANTE DA POSSIBILIDADE DE INVESTIGAÇÃO ESPECULATIVA OU SERENDIPIDADE. INOCORRÊNCIA. GARANTIA QUE DEVE SER PONDERADA DIANTE DA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DA PRÁTICA DE CRIME POR ADVOGADO. PRESERVAÇÃO, ADEMAIS, DIANTE DA TRANSFERÊNCIA DO SIGILO PARA QUEM DETIVER OS DADOS RELACIONADOS AOS EVENTUAIS CLIENTES REPRESENTADOS PELOS INVESTIGADOS. EXISTÊNCIA, AINDA, DA ADOÇÃO DE CAUTELAS NA EXECUÇÃO DA MEDIDA, MEDIANTE REPRESENTANTE DA OAB. CAUTELAS INERENTES À BUSCA E APREENSÃO EM ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA QUE PODEM SER DEVIDAMENTE APLICADAS QUANDO DO ACESSO AOS DADOS VIRTUAIS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. AUSÊNCIA.

1.Em que pese o Tribunal não tenha admitido a impetração originária, discorreu sobre o mérito da insurgência, a fim de verificar se existiria constrangimento ilegal a ser sanado de ofício, razão pela qual improcede a alegação que a Corte originária não apreciou as alegações defensivas, não cabendo o retorno dos autos para eventual análise.

  1. É cediço, neste Superior Tribunal, o entendimento de que a inviolabilidade prevista no art. 7º, II, da Lei n. 8.906/1994 não se presta para afastar da persecução penal a prática de delitos pessoais pelos advogados. Trata-se de garantia voltada ao exercício da advocacia e protege o munus constitucional exercido pelo profissional em relação a seus clientes, criminosos ou não, mas que não devem servir de blindagem para a prática de crimes pelo próprio advogado, em concurso ou não com seus supostos clientes (APn n. 940/DF, Rel. Ministro Og Fernandes, Corte Especial, DJe 13/5/2020).
  2. Caso em que o cerne da investigação deflagrada contra os recorrentes, que inclusive foi a causa de sua prisão em flagrante, é o fato de ambos, em tese, utilizarem seus aparelhos celulares para coagir testemunhas a prestarem depoimentos falsos em juízo, em audiência da ação penal que decorre de investigação policial (Operação Regalia) que apurou a prática de diversos crimes (concussão, estelionato, falsidade ideológica, facilitação à fuga de preso, usurpação de função pública).
  3. Improcede a alegação de investigação especulativa (fishing expedition) ou possibilidade da ocorrência do fenômeno da serendipidade em relação a eventuais clientes dos recorrentes, uma vez que a garantia do sigilo profissional entre advogado cliente, em que pese esteja sendo preterida em relação à necessidade da investigação da prática dos crimes pelos investigados, seguirá preservada com a transferência do sigilo para quem quer que esteja na posse dos dados telemáticos extraídos dos celulares apreendidos.
  4. Essa é justamente a cautela que vem sendo providenciada tanto pelo Juízo de primeiro grau, que deferiu a realização da medida mediante acompanhamento pelo representante da OAB, quanto pelo próprio departamento de Polícia Científica, que expediu diversas recomendações para o bom andamento da medida.
  5. Assim como ocorre na execução da medida de busca e apreensão em escritório de advocacia, quando a medida é autorizada mediante a suspeita da prática de crime por advogado, na qual não há como exigir da autoridade cumpridora do mandado que filtre imediatamente o que interessa ou não à investigação, devendo o que não interessa ser prontamente restituído ao investigado após a perícia, tal raciocínio pode perfeitamente ser aplicado, quando do acesso aos dados telemáticos do aparelho celular, quando a medida é autorizada em razão da existência de sérios indícios da prática de crime por meio da utilização do aparelho pelo advogado.

Recurso em habeas corpus improvido.
(RHC n. 157.143/PR, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 20/6/2022.)

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