Por Vladimir Aras
Quem acusa não julga; quem julga não acusa, não investiga nem arquiva.
Na ADI 4693/BA, proposta pelo PGR, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, concedeu medida cautelar para suspender a eficácia de artigo do Regimento Interno do Tribunal de Justiça da Bahia (RITJBA) que permitia à corte estadual arquivarex officio, sem prévio pronunciamento do Ministério Público daquele Estado, inquéritos que investigam juízes de Direito pela suposta prática de crimes ou contravenções.
Juízes e membros do Ministérios Públicos dos Estados têm foro especial no Tribunal de Justiça da unidade federada a que pertencem (art. 96 da Constituição).
No entanto, a existência de foro privilegiado para a investigação criminal e eventual ação penal (Lei 8.038/1990) não desnatura o sistema acusatório. Ou seja, a investigação a ser feita perante a instância superior, no caso dos magistrados estaduais em sentido lato, só pode ser encerrada mediante promoção de arquivamento de iniciativa da Procuradoria-Geral de Justiça, o órgão de cúpula dos Ministérios Públicos estaduais.
O art. 378 do RITJBA, cuja eficácia foi suspensa, está assim redigido:
“Art. 378 – Quando no curso de qualquer investigação, houver indício da prática de crime por parte de Magistrado, a autoridade policial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Presidente do Tribunal, para o prosseguimento da apuração do fato, sob a direção de Relator, intimando-se o Procurador-Geral de Justiça.
Parágrafo único – Encerrada a investigação e feito o relatório, os autos serão postos em mesa para julgamento. Se o Tribunal Pleno, em votação pública, concluir pela existência de crime em tese, remeterá o feito ao Ministério Público para o procedimento cabível. Se concluir pela inconsistência da imputação, determinará com relação ao Magistrado, o arquivamento dos autos, dando ciência ao Procurador-Geral de Justiça e à autoridade que iniciou as investigações, para que esta, se for o caso, prossiga contra os demais indiciados.”
Extraio da decisão liminar concedida pelo STF o seguinte trecho:
“O dispositivo regimental impugnado inova em matéria processual penal, normatizando em sentido contrário ao previsto no artigo 129, I, da Constituição Federal, ao determinar que, havendo indício da prática de crime por parte de magistrado, uma vez encerrada a investigação ocorrida sob a direção de membro do Poder Judiciário e elaborado o relatório, o julgamento dos autos será realizado pelo Tribunal Pleno, sem qualquer prévia participação do titular da ação penal, ocasião em que poderão ocorrer duas hipóteses: (i) concluindo o Tribunal Pleno pela existência de crime em tese, dar-se-á a remessa dos autos ao Ministério Público para o procedimento cabível; (ii) concluindo o Tribunal Pleno
pela inconsistência da imputação, determinará com relação ao magistrado o arquivamento dos autos, dando ciência ao Procurador-Geral de Justiça e à autoridade que iniciou as investigações, para que esta, se for o caso, prossiga contra os demais indiciados.
A Constituição Brasileira de 1988 consagrou, em matéria de processo penal, o sistema acusatório, atribuindo a órgãos diferentes as funções de acusação e julgamento. A norma impugnada, como visto, estatui que, havendo indício de prática de crime por magistrado, concluídas as investigações, os autos sejam postos em julgamento no âmbito do Poder Judiciário, que poderá, se concluir pela inconsistência da imputação, determinar, desde logo, o arquivamento dos autos em relação ao Magistrado, independentemente de qualquer ciência, análise ou manifestação prévia do titular da ação penal pública – Ministério Público – nesse sentido.
Em juízo de cognição sumária, tenho que o preceito em questão não condiz com o sistema acusatório, ao atribuir ao Tribunal de Justiça a formação da opinio delicti, afrontando a regra constitucional do art. 129, I, da Constituição Federal. Este é, inclusive, o pacífico entendimento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ao reconhecer que, em regra, em virtude da titularidade exclusiva da ação penal pública pelo Ministério Público, expressamente prevista no citado art. 129, I, da Constituição Federal, o ordenamento jurídico não possibilita o arquivamento ex officio de investigações criminais pela autoridade judicial (Inq 4.045 AgR, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, DJe de 19/6/2017; HC 93.921 AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe de 1/2/2017; RHC 120.379 ED, Rel. Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, DJe de 16/9/2016), como está previsto no regimento interno ora impugnado.
O exercício da titularidade privativa da ação penal pública pelo Ministério Público, obviamente, não impede ao Poder Judiciário o exercício de sua “atividade de supervisão judicial”, que “deve ser constitucionalmente desempenhada durante toda a tramitação das investigações desde a abertura dos procedimentos investigatórios até o eventual oferecimento, ou não, de denúncia pelo ‘dominus litis’” (STF, Pet. 3.825, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Rel. p/ Acórdão Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, DJe de 4/4/2008), inclusive autorizando, excepcionalmente, e uma vez configurado o injusto constrangimento e ausência de justa causa, a possibilidade de “exercendo o dever-poder que lhe confere o ordenamento positivo (CPP, art. 654, §2º), conceder, ‘ex officio’, ordem de ‘habeas corpus’ em favor daquele que sofre ilegal coação por parte do Estado” (STF, HC 106.124, rel. Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, DJe 11/9/2013).
(…)
Diante de todo o exposto, nos termos dos artigos 10, §3º, da Lei no 9.868/99 e 21, V, do RISTF, CONCEDO A MEDIDA CAUTELAR PLEITEADA, ad referendum do Plenário, DETERMINANDO A IMEDIATA SUSPENSÃO DA EFICÁCIA do parágrafo único do art. 378 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça da Bahia.” (STF, Min. Alexandre de Moraes, ADI 4693/BA MC, d. em 10.2017)
Com isto, mais uma vez, o STF deixa claro que a separação das funções de acusar e julgar marca o sistema acusatório no processo penal brasileiro e é fundamental para garantir a imparcialidade dos juízes. Um bom exemplo desta jurisprudência é a ADI 5104/DF, que também mereceu medida cautelar deferida pelo min. Luiz Roberto Barroso. Ali estava em questão a Resolução 23.396/2013 do TSE.
A presente decisão vem em momento muito oportuno, em virtude do que se vem passando no Estado do Mato Grosso. Na esteira de graves notícias de escutas clandestinas que teriam sido ordenadas por autoridades civis e militares daquele Estado, um desembargador do TJMT resolveu tomar a si as funções de investigador e de julgador, violando o esquema processual acusatório e desviando-se da função dos juízes. Em função da ofensa aos arts. 105 e 129, I, da CF, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) avocou o inquérito que tramitava em Cuiabá.
Sabe-se que em 2004 o STF extirpou do nosso sistema a função do juiz investigador ou inquisidor, quando na ADI 1570/DF (rel. min. Maurício Corrêa) declarou inconstitucional o art. 3º da Lei 9.034/1995.
Mais cimento foi posto nesta construção.