Por Vladimir Aras
O título tem nomes de mulheres que foram rotuladas como “traficantes”. Neste debate, não precisamos rotular mais ninguém.
É grosseiro e torpe tratar como monstros o juiz e a promotora do caso Jéssica Monteiro, a lactante que foi mandada à prisão em São Paulo com o seu filho recém-nascido, um bebê de poucos dias, por uma conduta classificada como tráfico de drogas, na audiência de custódia.
É um grave erro fulanizar a questão que mexeu com o País esta semana e transformar funcionários públicos, inclusive uma mulher, em vilões. Posso apostar que essa promotora e esse juiz não são pessoas insensíveis e que seguiram sua convicção jurídica.
E não importa se minha colega de Ministério Público, responsável pelo pedido de prisão de Jéssica, estava grávida ou não. Realçar essa condição pessoal, como aríete argumentativo, é uma vergonhosa falácia ad hominem, que acirra o ódio tão presente nas redes sociais e não contribui para nenhum diálogo decente.
Isso também é uma forma de violência, de cunho psicológico.
O que importa é debater a cultura na qual estamos inseridos, quando se trata da famigerada guerra global às drogas (global war on drugs) e como este ambiente sociocultural modula nossas convicções jurídicas, aquelas que nortearão nossas decisões nos casos concretos.
A guerra contra as drogas
Escrita há 30 anos, a Constituição de 1988, tão festejada pela sua carta de direitos, mas tão capenga noutros aspectos, delineia o meio ambiente no qual esse programa criminal se cristalizou já nos anos 1980, na esteira da conferência que resultou na aprovação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Decreto 154/1991), concluída em Viena em dezembro de 1988.
Poucos meses antes, a Assembleia Nacional Constituinte promulgara a Constituição de 1988, cujos arts. 5º e 243 foram nitidamente influenciados pela pauta de então. É inegável que o tráfico de drogas mereceu tratamento penal, na forma de mandados expressos, muito mais rigoroso do que outros crimes muito mais graves, tais como o genocídio, os crimes contra a humanidade, o tráfico humano ou mesmo o homicídio.
Ali está o inciso XLIII, que considera inafiançável o tráfico de drogas e diz que tal crime é insuscetível de indulto, significando que o povo determinava resposta penal mais intensa e mais tempo de prisão para traficantes de drogas.
XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;
Ali também está o inciso LI, que, de forma mais ampla que em relação a outros crimes, permite a extradição de brasileiros naturalizados que tenham praticado tráfico de drogas, a qualqer tempo, antes ou depois da naturalização. O norte é: não queremos traficantes de drogas em nosso País. Mas podemos acolher e não entregaremos a países estrangeiros os homicidas, estupradores, genocidas e traficantes de seres humanos que se naturalizem brasileiros.
LI – nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;
Por fim, ali também está o art. 243 que, na formulação inicial de 1988, previa o confisco de terras usadas para o cultivo de substâncias entorpecentes. Essa opção exclusiva quanto ao narcotráfico só foi parcialmente corrigida pela Emenda Constitucional 81, de 2014, que passou a prever a expropriação de propriedades rurais e urbanas usadas para culturas ilegais de plantas psicotrópicas e também para a exploração de trabalho escravo.
Se queremos culpar alguém pelo que aconteceu com Jéssica e seu bebê, que o façamos no coletivo dos constituintes de 1987, que inseriram essa pauta mais rigorosa e enviesada, que já se mostra carcomida apenas 30 anos depois. A guerra às drogas é um fragoroso fracasso nos Estados Unidos, no México, na Colômbia e no Brasil, onde o Rio de Janeiro não nos deixa esquecer os terríveis efeitos colaterais desse flagelo.
Se queremos mesmo culpar alguém, que culpemos Richard Nixon, o grande promotor da atual guerra mundial contra as drogas. Em discurso em junho de 1971, Nixon declarou o uso de drogas “inimigo público número um” dos Estados Unidos.
Quase meio século depois, as drogas continuam causando miséria e sofrimento pelo mundo. E essa guerra, a tiros ou no campo de batalha judicial, continua gerando muitas outras vítimas secundárias que não deveriam existir.
O crime de uso de drogas não é uma entidade natural que sempre existiu. A criminalização dessa conduta – e, em consequência da produção e do comércio de drogas tachadas como ilícitas – é uma construção dos Estados, que, por motivos certos ou errados, passou a ser cogente em todo o globo, na esteira de tratados internacionais postos em vigor ao longo do século XX.
Pelo seu fracasso retumbante, a atual política criminal de drogas, de cunho belicista e primordialmente carcerizadora, vem sendo abandonada pouco a pouco em várias partes do mundo. Disso são exemplos a Holanda, Portugal, Uruguai, Canadá e, paradoxalmente, vários estados norte-americanos, o mais recente deles a Califórnia. Não é difícil prever que não tardará uma grande revisão dessa política criminal pelas Nações Unidas.
Uma grande pedra de moer
Em guerra ou não, não devemos jamais esquecer que o sistema penal é uma grande, poderosa e eficiente máquina de moer seres humanos e que membros do Ministério Público e juízes somos responsáveis por uma parte crucial dessa engrenagem.
Devemos ser freios do sistema, não só aceleradores e muito menos catalisadores inconscientes de pequenas iniquidades ou de grandes injustiças.
Devemos pensar nas consequências do crime, sim, mas também nas consequências de nossas opções jurídicas contra o crime, para além da letra fria da lei penal, da capa dos autos, do número único do processo penal e das estatísticas de correição. A Justiça deve servir aos homens, e não servir como mecanismo de desumanização. Proporcionalidade e dignidade da pessoa humana – embora sejam ideias desgastadas por intenso mau uso – não podem ser descartadas pelos agentes da Justiça Criminal.
Devemos ser comedidos com a medidas cautelares prisionais, reservando prisões preventivas para delinquentes violentos, criminosos reincidentes ou para situações que se encaixem estritamente no art. 312 do CPP, sempre que não haja outra medida menos gravosa, adequada à proteção da sociedade e dos interesses do processo penal.
Olhando de longe, com os escassos dados de que dispomos, a colocação de Jéssica Monteiro, que acabara de parir, em prisão preventiva foi absurda; ofendeu razões jurídicas e o senso comum e, por isto mesmo, foi suficiente para provocar indignação e perplexidade. Não precisava ter sido desse jeito
A questão da mulher infratora no direito interno e no direito internacional
Em 2010, ao aprovar as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras (Regras de Bangkok), a Assembleia Geral da ONU enfatizou que:
“9. (…) ao sentenciar ou decidir medidas cautelares a mulheres grávidas ou pessoa que seja fonte primária ou única de cuidado de uma criança, medidas não privativas de liberdade devem ser preferíveis quando possível e apropriado, e considerar impor penas privativas de liberdade a casos de crimes graves ou violentos”.
São importantíssimas, sobretudo, as Regras 57 e 58 de Bangkok, a respeito de medidas não privativas de liberdade para mulheres autoras de crimes:
Regra 57 As provisões das Regras de Tóquio deverão orientar o desenvolvimento e a implementação de respostas adequadas às mulheres infratoras. Deverão ser desenvolvidas, dentro do sistema jurídico do Estado membro, opções específicas para mulheres de medidas despenalizadoras e alternativas à prisão e à prisão cautelar, considerando o histórico de vitimização de diversas mulheres infratoras e suas responsabilidades de cuidado.
Regra 58 Considerando as provisões da regra 2.3 das Regras de Tóquio, mulheres infratoras não deverão ser separadas de suas famílias e comunidades sem que se considere devidamente a sua história e laços familiares. Formas alternativas de lidar com mulheres infratoras, tais como medidas despenalizadoras e alternativas à prisão, inclusive à prisão cautelar, deverão ser empregadas sempre que apropriado e possível.
Em casos assim, também devem ser levados em conta o princípio da proteção integral à criança e as regras do Estatuto da Primeira Infância (Lei 13.257/2016), que, no que ora importa, alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de Processo Penal.
Tampouco se pode ignorar os comandos expressos nos incisos III e XLVII do art. 5º da Constituição que, em consonância com a Convenção contra a Tortura de 1984 (Decreto 40/1991) vedam penas e tratamentos crueis, desumanos ou degradantes.
Jéssica, Eloá e Jaqueline
Todos os meses, outras tantas mulheres pobres e desassistidas como Jéssica, grávidas ou não, são presas ao levar drogas a presídios e penitenciárias, onde às vezes também estão seus maridos presos.
Isto é um dado da realidade, que revela uma faceta sombria do sistema penal: outros “criminosos” nascem na interação de pessoas livres com pessoas presas. A grande moenda busca mais matéria-prima todos os dias.
Há poucas semanas, a min. Laurita Vaz, do STJ, respondendo pelo plantão judiciário, negou liminar em habeas corpus, que pretendia a soltura de uma mulher que fora presa em flagrante, em janeiro de 2018, também em São Paulo, ao tentar entrar num estabelecimento prisional com 8,5 g (oito gramas e meio) de maconha (HC 433.040/SP).
A questão se resolveria – como é comum nos casos de pessoas que não têm eira nem beira – com a aplicação da Súmula 691 do STF, segundo a qual não se admite habeas corpus contra decisão negativa de liminar proferida em outro writ na instância de origem, sob pena de indevida supressão de instância.
A paciente desse HC, Eloá Alessandra Regina Ferreira das Mercedes, acabara de parir e ainda estava em fase de amamentação, quando da decisão judicial. Ao preferir a prisão preventiva à prisão domiciliar, a ministra do STJ assentou que:
“a simples existência de filhos menores não enseja a concessão automática da benesse, uma vez que necessário observar o disposto no parágrafo único do art. 318 do Código de Processo Penal: ‘para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo’”.
Outro caso semelhante e recente teve um desfecho mais adequado. Em fevereiro, o min. Celso de Mello, do STF, pôs em liberdade Jaqueline de Moraes Dutra ao apreciar a medida cautelar no HC 152.090/RS.
A paciente, que fora presa em Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul, em 2017, tinha filha de 11 meses e se encaixava na regra do art. 318, V, do CPP, o que permitiu ao ministro afastar a Súmula 691 e conceder-lhe prisão domiciliar. Era isto o que deveria ter ocorrido com Jéssica.
Na ocasião, lembrou o ministro:
Advirta-se, no entanto, que, para a concessão da prisão domiciliar, que traduz mera faculdade judicial, não basta a condição de maternidade, pois, para esse específico efeito, impõe-se ao Poder Judiciário o exame favorável da conduta e da personalidade da agente e, sobretudo, em face de seu inquestionável relevo, a conveniência e o atendimento ao superior interesse do menor. Todas essas circunstâncias devem constituir objeto de adequada ponderação, em ordem a que a adoção da medida excepcional da prisão domiciliar efetivamente satisfaça o princípio da proporcionalidade e respeite o interesse maior da criança. Esses vetores, por isso mesmo, hão de orientar o magistrado na concessão da prisão domiciliar, pois ela, consoante adverte a eminente Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, “não constitui injunção legal inafastável, porquanto cabe ao magistrado, com vistas a resguardar a efetividade da prestação jurisdicional, aquilatar a suficiência e adequação da medida” (HC 355.229/SP), razão pela qual a mulher, uma vez constatada a sua alta periculosidade social, não terá direito subjetivo à substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar (RHC 73.643/MG, Rel. Min. ROGERIO SCHIETTI CRUZ)” (STF, HC 152.090 MC / RS, rel. min. Celso de Mello, decisão monocrática, em 08/02/2018).
A posição que beneficiou a presa Jaqueline não é nova nem diferente da adotada pelo STF noutras oportunidades, sendo válido lembrar o que em 2016 decidiu o ministro Gilmar Mendes no HC 134.104/SP. Tal precedente poderia ter servido de norte para o caso Jéssica:
Habeas corpus. 2. Tráfico de drogas, associação para o tráfico e corrupção de menores. Prisão preventiva. 3. Paciente gestante. Pleito de concessão da prisão domiciliar. Possibilidade. 4. Garantia do princípio da proteção à maternidade e à infância e do melhor interesse do menor. 5. Preenchimento dos requisitos do art. 318 do CPP. 6. Segregação cautelar mantida com base apenas na gravidade abstrata do crime. 7. Ausência de fundamentação idônea. Decisão contrária à jurisprudência dominante desta Corte. Constrangimento ilegal configurado. 8. Súmula 691 do STF. Manifesto constrangimento ilegal. Superação. 9. Ordem concedida de ofício para substituir a prisão preventiva da paciente por prisão domiciliar. (STF, 2ª Turma, HC 134.104/SP, rel. min. Gilmar Mendes, j. em 03/08/2016).
Para além dos casos concretos, algumas outras reflexões
Diante de tantos casos semelhantes, há duas séries de perguntas que precisam ser feitas, uma olhando para o antes e outra olhando para o depois do etiquetamento – como “traficantes” – dessas mulheres jovens, pobres e pouco educadas.
As do antes: que circunstâncias da vida fazem essas mulheres consumir drogas ou levar substâncias entorpecentes aos seus maridos e companheiros nas penitenciárias? Por que o fazem? São livres nesse agir? Como sobrevivem fora das cadeias?
As do depois: o que a sociedade, isto é, nós todos, ganhamos com a prisão dessas mulheres estigmatizadas com o rótulo de “traficantes”? E que consequências advirão, não do crime a ser punido, mas da punição do crime sobre o grupo familiar dessas mulheres? Como seus familiares sobreviverão?
Enfim, a pergunta crucial é: encarcerando esposas e mães “traficantes” (elas são mesmo “traficantes” no sentido estrito da palavra?) estamos de fato lutando contra o crime ou apenas criando condições sociais mais favoráveis para que novos crimes e outros delitos ocorram e novas pessoas sejam etiquetadas como traficantes?
Temos realmente de prender essas mães portadoras de drogas, já nas audiências de custódia, antes sequer de ser proposta a ação penal, mesmo que seja por 8,5g ou por 90g de maconha, sem nenhuma outra razão especial?
Não é interesse insuperável das crianças recém-nascidas serem cuidadas e amamentadas por suas mães nos primeiros meses de suas vidas em condições adequadas para os menores e compatíveis com os crimes que essas mulheres tenham cometido? Não é interesse da sociedade que isto ocorra?
Antes ainda há uma outra questão a ser debatida: a do próprio modelo de guerra às drogas, que tem feito mais vítimas do que, a primeira vista, pode parecer. E não são apenas as pessoas que consomem drogas.
O tema ganha ainda mais interesse em tempos de Carnaval, quando tantas drogas diferentes, mais potentes e em muito maior quantidade do que a que Jéssica Monteiro levava, desfilaram livremente pelas avenidas do Brasil diante de todos os que quiseram ver.