Por Vladimir Aras
O mais básico dos direitos de defesa, o de ser assistido por advogado de sua confiança, está presente e é observado nos acordos de colaboração premiada. Como já dito, não há avenças deste tipo sem a participação de advogado; tampouco é possível formalizar o acordo sem a concordância da defesa técnica. O advogado pode simplesmente dizer não e jamais haverá acordo algum. Afinal, “em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deve estar assistido por advogado” (art. 4º, §15, da Lei).
No entanto, uma vez formalizado o pacto, obviamente certos direitos processuais do acusado são consensualmente mitigados, por renúncias voluntárias, que são denominadas waivers no direito processual penal dos Estados Unidos. A primeira das acomodações se dá em relação ao direito ao silêncio. A lógica deve servir de farol à compreensão dessa limitação. Se o colaborador concorda em cooperar com a Polícia e o Ministério Público é de se esperar que não exerça o direito ao silêncio. Este direito é obviamente incompatível com a ideia de colaboração. Por isto, o art. 4º, §14º, da Lei 12.850/2013 estabelece que, “nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade”.
Por outro lado, tampouco faz sentido que um réu firme voluntariamente um acordo de colaboração premiada e, em seguida, vá a juízo para anular tal acordo (desde que legítimo) e obstar sua execução, mas com a pretensão de ainda assim obter os benefícios legais dele decorrentes.
Também é ilógico que esse mesmo colaborador questione judicialmente em recurso ou habeas corpus as cláusulas penais ou indenizatórias que venham a ser reconhecidas numa sentença condenatória, nos exatos termos do acordo antes realizado. A isto se dá o nome de venire contra factum proprium. Trata-se de conduta não tolerada pelo Direito, e manifestação de má-fé. Mesmo assim, não se pode vedar a priori toda e qualquer pretensão recursal por parte do colaborador. Cláusulas dessa natureza devem ser glosadas pelo juiz competente para a homologação do acordo.
Assim, sendo válido um acordo, algumas garantias processuais são objeto de renúncia voluntária. Note! Mesmo sem acordo algum, um réu pode renunciar unilateralmente ao exercício de garantias processuais. Pode deixar de arrolar testemunhas, se quiser; pode confessar o crime, se lhe parecer conveniente; pode deixar de recorrer de uma decisão condenatória, se entender adequado. Não deve causar espanto, portanto, a possibilidade de negociar waivers similares num contexto consensual de justiça penal pactuada, que aproveitará o réu e lhe trará benefícios legais, às vezes até mesmo o perdão judicial ou a imunidade processual.
Note-se ainda que, a qualquer tempo, o colaborador pode romper a avença (mesmo quando legitimamente negociada) e exercer dali em diante todos os seus direitos processuais, inclusive a garantia nemo tenetur se detegere. O direito de retratar-se está previsto no §10 do artigo 4º da Lei, e pode ser exercido sem qualquer prejuízo ao estado de inocência do colaborador porque as provas autoincriminatórias por ele até então produzidas não poderão ser usadas contra ele pelo Ministério Público, embora sejam válidas em relação aos coimputados.
Perceba-se ainda que há outra categoria de direitos e garantias processuais que são irrenunciáveis. Entre elas estão os direitos à vida e a integridade física (ninguém pode concordar em ser executado ou submetido a tortura em função de uma investigação criminal); o direito à assistência de advogado (ainda que o réu não queria, não se fará julgamento algum sem defesa técnica); e o direito ao duplo grau de jurisdição e ao contraditório, especialmente quando se verifique o descumprimento do próprio acordo por parte do Estado.
Por fim, não custa repetir. A delação premiada – na sua forma clássica – e a colaboração premiada são instrumentos de defesa. O advogado ou defensor pode escolher esse caminho para isentar seu constituinte de pena (perdão judicial), reduzi-la (causa de diminuição) ou evitar o próprio processo penal (acordos de imunidade e de sobrestamento da persecução).
Esta característica de mecanismo de ampliação das perspectivas exoneratórias da defesa não passou despercebida pelos tribunais. A confissão ampla e qualificada serve ao réu como unguento ou bálsamo processual, desde que sua cooperação seja ratificada na fase judicial e corroborada por outros meios de prova. Contudo, se o colaborador se retrata em juízo, não tem direito a benefício algum, pois:
“Não obstante tenha havido inicial colaboração perante a autoridade policial, as informações prestadas pelo paciente perdem relevância, na medida em que não contribuíram, de fato, para a responsabilização dos agentes criminosos. O magistrado singular não pode sequer delas se utilizar para fundamentar a condenação, uma vez que o paciente se retratou em juízo. Sua pretensa colaboração, afinal, não logrou alcançar a utilidade que se pretende com o instituto da delação premiada, a ponto de justificar a incidência da causa de diminuição de pena”. (STJ, 5ª Turma, HC 120.454, rel. Laurita Vaz, j. em 23/fev/2010).
O arrependimento daquele que antes havia se arrependido (pentito) não gera efeitos jurídicos em seu favor. Se houvesse mantido a colaboração em juízo, teria obtido a redução de pena pretendida ou haveria alcançado o perdão judicial, conforme o caso. A colaboração premiada é o produto processual de uma negociação “ganha/ganha” (G/G). Ganha a sociedade com a elucidação de crimes; ganha o colaborador com a redução ou a isenção de sua pena.