Por Vladimir Aras
Quando oficiei em Feira de Santana, maior cidade do interior do Nordeste, processei um sujeito que tinha trinta e tantas identidades. “Tício” vivia de seus golpes em bancos e em vítimas incautas. Um cara como esse poderia ter vida mansa com qualquer um de suas três dezenas de alter-egos. Podia ter vários empregos, e vários seguros-desemprego. Podia receber bolsa-família. Podia votar diversas vezes, livrar-se do SERASA e do SPC. E podia ser polígamo, casar-se trinta vezes. A depender das sogras, não sei bem se isto era uma vantagem…
Ao ser preso pela Polícia, esse verdadeiro 171 perguntou aos homens da lei: – “Sabe com que você está falando?”.
Obviamente, o policial disse “não”. Porque, a não ser com um exame de DNA, não havia como saber se “Tício” era quem ele dizia ser. Acho que nem a mulher dele sabia seu verdadeiro nome.
A vida, às vezes, nos leva a querer sermos outra pessoa. Esse aí queria ser outras pessoas, mas por pura estrepolia, para o “gostoso” e arriscado exercício da fraude e do malogro. Anos depois, fiquei sabendo que, devido às suas múltiplas personalidades, ele baixou no psicanalista para descobrir quem era… Mas, depois de umas trocentas sessões e de ter gastado todo o dinheiro que ganhou nas fraudes, “Tício” continuou na mesma. Será que me chamo “Lívio”? Ou seria o “Caio”? Serei eu o “Mévio”?
Conto isto com uma certa licença imaginativa, para falar de um assunto sério.
Como cidadãos de bem, temos os “direitos” de mentir e de fugir. É o que dizem. Eu discordo. Tudo estaria na tal Declaração Brasileira dos Direitos de Impunidade, que recentemente teve dois artigos revogados. Ao introduzir o art. 311-A no CP (Lei 12.550/2011), o Congresso Nacional acabou com o “direito” de colar, e também neste mês de dez/2011, o STJ resolveu pôr um fim ao “direito” de usar falsa identidade para enganar a Polícia (HC 151.866/RJ). Onde vamos parar, meu Deus?!
Tradicionalmente, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça considerava atípica a conduta do suspeito que, abordado pela Polícia, identificava-se falsamente (com nome de outrem), ou que usava documentos falsos perante a autoridade, para não se ver descoberto. Era a alegria dos falsários. Que mercado promissor poderiam explorar!
A proverbial criatividade brasileira dava a isto o nome de “direito de autodefesa”, como se pudéssemos transformar uma conduta típica, a do art. 307 do CP (falsa identidade) ou a do art. 304 do CP (uso de documento falso), no exercício de uma garantia legítima e, esta sim, um direito: o privilégio contra a autoincriminação (privilege against self incrimination ou nemo tenetur se ipsum accusare). Só a arte da prestidigitação jurídica seria capaz de tamanha façanha.
Embora diversos em sua estrutura e gravidade, tais crimes vinham sendo tratados pelos tribunais superiores como uma coisa só. Tanto fazia dizer-se Fulano de Tal sem sê-lo, como apresentar documento em nome de Beltrano Smith, tendo nascido com o nome de Sicrano de Almeida. Dava no mesmo: atipicidade da conduta, desde que o “nobre” objetivo do falsário fosse safar-se da Polícia e dos crimes que cometeu.
Várias denúncias do Ministério Público por tais crimes (os arts. 304 e 307 do CP) foram trancadas em habeas corpus concedidos pelo STJ com este argumento. Veja, por exemplo, o HC 151.470/SP (rel. min. Og Fernandes) e o HC 99.179/SP (rel. min. Arnaldo Esteves Lima). Há pouco tempo o STJ chegou a sustar o andamento de todos os processos penais baseados no art. 307 do CP, que tramitavam nos Juizados Especiais Criminais do Brasil afora, e reconheceu a atipicidade da conduta do acusado que declarou nome falso a autoridade policial, sem usar documento forjado.
Isto ocorreu na Reclamação 4526/DF, apresentada contra decisão da 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal. Na Reclamação, foi relator o ministro Gilson Dipp:
RECLAMAÇÃO. DIVERGÊNCIA ENTRE ACÓRDÃO DA TURMA RECURSAL DO DISTRITO FEDERAL E A JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESOLUÇÃO Nº 12⁄2009 STJ. FALSA DECLARAÇÃO DE IDENTIDADE PERANTE A AUTORIDADE POLICIAL. GARANTIA CONSTITUCIONAL DE AUTODEFESA E DE NÃO PRODUZIR PROVAS CONTRA SI MESMO. ATIPICIDADE DA CONDUTA.
I. Reclamação proposta nos moldes determinados na Resolução nº 12/2009 do STJ, através da qual o reclamante requer a cassação do acórdão reclamado, a fim de fazer prevalecer a jurisprudência pacificada no âmbito desta Corte no sentido da inexistência de crime na conduta de se atribuir falsa identidade perante a autoridade policial em face do princípio constitucional da autodefesa compreendido no de permanecer calado conforme disposto no art. 5º, LXIII da Constituição.
II. Ao declarar a falsa identidade, em hipótese em que não fica patente o propósito de obter vantagem, a conduta revela-se atípica em face do art. 307, CP.
III. Caso em que as instâncias ordinárias concluíram que o reclamante mentiu para defender-se.
IV. Exercício de direito constitucional de não produzir provas contra si mesmo devidamente reconhecido.
V. Atipicidade da conduta por ausência de demonstração do elemento subjetivo do tipo (‘para obter em proveito próprio‘) e do elemento normativo (‘vantagem‘).
VI. Decisão da 2ª Turma Recursal do Distrito Federal que, no caso concreto, aplicou o art. 307 CP à conduta atípica.
VI. Reclamação procedente porque, ante os fatos da causa, o acórdão da 2ª Turma Recursal contrariou a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Liminar mantida apenas em relação ao reclamante, revogada quanto ao mais.” (STJ, Rcl 4526/DF, 3ª Seção, rel. min. Gilson Dipp, j. 8/jun/2011, DJe de 30/ago/2011).
No voto, o ministro Dipp fez um registro relevante, asseverando: “[…] porém, que a jurisprudência do STF é no mesmo sentido da decisão da 2ª Turma Recursal (HC 72.377-SP, Velloso, 2ª T, 23.05.1995 e RE 470.944- DF, Eros Grau, decisão de 14.03.2006), pois ficou assentado que o direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII CF/88) não compreende o de mentir sobre sua identidade à autoridade policial.”
Sempre imaginava a situação de um estuprador ou de um homicida, condenado e foragido, ser abordado pela Polícia numa blitz. Lépido e faceiro, o facínora pegaria seu RG legitimamente falso e o apresentaria ao policial. Falsa identidade conferida no sistema informático da Polícia… Tudo limpo? O fugitivo condenado poderia seguir seu rumo e sua ruma de crimes. E diziam que isto era autodefesa, “direito” de não colaborar com a Polícia. Capacidade! Afinal, conforme o art. 5º, LXIII, da Constituição:
“LXIII – o preso será informado dos seus direitos, entre os quais o de permanecer calado e o de enganar a Polícia para não ser preso, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”.
Esta edição da Constituição de 1988 eu não tenho. Soube que esgotou até nos sebos. Agora mandaram riscar essa parte aí de cima.
Mesmo que a redação fosse essa, a ética e a lógica dessa tese seriam retilíneas como a cervical da Moura Torta. Não há direito quando a conduta em si mesma é tipificada como crime, e quando seu exercício pode lesar seriamente outros bens jurídicos relevantes. Não há Direito nisto. Quem mente, engana e ludibria não pode “se dar bem”. Nem no País de Gerson, cerrrto?
Pelo menos neste assunto, esta ótica tribunalícia mudou. Têmis resolver abrir o olho. A liberalidade falso-documental não tem mais lugar. O salvo conduto para fazer a Polícia de besta não existe mais. A 5ª Turma do STJ decidiu que realmente é crime usar documento falso para ocultar antecedentes. Tal conduta não configura exercício legítimo do direito de defesa.
Foi o Supremo Tribunal Federal que deu início a essa virada jurisprudencial, cuja necessidade sempre foi apontada pelo Ministério Público em todo o Brasil. A questão era tranquila na Corte Suprema, tanto que, na repercussão geral no RE 640.139/DF, interposto pelo MPDFT, sob a relatoria ministro Dias Toffoli, o STF assim decidiu (set/2011):
“EMENTA CONSTITUCIONAL. PENAL. CRIME DE FALSA IDENTIDADE. ARTIGO 307 DO CÓDIGO PENAL. ATRIBUIÇÃO DE FALSA INDENTIDADE PERANTE AUTORIDADE POLICIAL. ALEGAÇÃO DE AUTODEFESA. ARTIGO 5º, INCISO LXIII, DA CONSTITUIÇÃO. MATÉRIA COM REPERCUSSÃO GERAL. CONFIRMAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DA CORTE NO SENTIDO DA IMPOSSIBILIDADE. TIPICIDADE DA CONDUTA CONFIGURADA.
O princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, inciso LXIII, da CF/88) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP). O tema possui densidade constitucional e extrapola os limites subjetivos das partes. (RE 640139 RG, relator min. Dias Toffoli, julgado em 22/09/2011, DJe-198).
Tal decisão do STF influenciou o STJ. O caso concreto apreciado pelo Tribunal da Cidadania no HC 151.866/RJ ocorreu na pacata cidade do Rio de Janeiro. O réu estava foragido e apresentou documento de identidade e de habilitação falsos quando abordado pela Polícia. Sua Excelência o réu queria continuar a exercer o seu sagrado direito de fuga. O Tribunal de Justiça do Rio manteve a condenação do acusado a uma pena de 2 anos e 11 meses de reclusão por violação ao artigo 304 do Código Penal, em ação penal proposta pelo Ministério Público fluminense. O impetrante não gostou e foi ao STJ.
No HC 151.866/RJ, a defesa do réu pediu ao STJ que reconhecesse a atipicidade da conduta do acusado, que simplesmente (sic) exercera um direito fundamental ao ludibriar a Polícia com a documentação falsa.
O TJ do Rio de Janeiro rechaçou a tese, afirmando: “O réu alegou que, por encontrar-se foragido do regime semiaberto, adquiriu por quinhentos reais habilitação e documento de identidade, falsificados, para que pudesse transitar impunemente pelas ruas, pois havia um mandado de prisão em seu desfavor, sendo certo que no dia narrado na denúncia estava em seu veículo próximo ao Morro da Mangueira, quando foi parado por policiais que solicitaram seus documentos, o qual entregou os apreendidos nestes autos.”
O relator do HC no STJ, ministro Jorge Mussi, não acolheu a tese defensiva e asseverou que o princípio constitucional da autodefesa “não alcança quem se atribui falsa identidade para ocultar antecedentes perante autoridade policial”. Eis a ementa (dez/2011):
HABEAS CORPUS. ART. 304 DO CP. USO DE DOCUMENTO FALSO PARA OCULTAR ANTECEDENTES CRIMINAIS E EVITAR PRISÃO. AUTODEFESA QUE ABRANGE SOMENTE O DIREITO A MENTIR E OMITIR SOBRE OS FATOS E NÃO QUANTO À IDENTIFICAÇÃO. CONDUTA TÍPICA. ABSOLVIÇÃO. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO APROFUNDADO DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE NA VIA ESTREITA DO WRIT. ORDEM DENEGADA.
1. No âmbito desta Corte Superior de Justiça consolidou-se o entendimento no sentido de que não configura o crime disposto no art. 304, tampouco no art. 307, ambos do Código Penal a conduta do acusado que apresenta falso documento de identidade perante a autoridade policial com intuito de ocultar antecedentes criminais e manter o seu status libertatis, tendo em vista se tratar de hipótese de autodefesa, já que amparado pela garantia consagrada no art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal.
2. Contudo, o Supremo Tribunal Federal, ao examinar o RE 640.139/DF, cuja repercussão geral foi reconhecida, entendeu de modo diverso, assentando que o princípio constitucional da ampla defesa não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o objetivo de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente.
3. Embora a aludida decisão, ainda que de reconhecida repercussão geral, seja desprovida de qualquer caráter vinculante, é certo que se trata de posicionamento adotado pela maioria dos integrantes da Suprema Corte, órgão que detém a atribuição de guardar a Constituição Federal e, portanto, dizer em última instância quais situações são conformes ou não com as disposições colocadas na Carta Magna, motivo pelo qual o posicionamento até então adotado por este Superior Tribunal de Justiça deve ser revisto, para que passe a incorporar a interpretação constitucional dada ao caso pela Suprema Corte.
4. A absolvição do paciente é questão que demanda aprofundada análise de provas, o que é vedado na via estreita do remédio constitucional, que possui rito célere e desprovido de dilação probatória.
5. No processo penal brasileiro vigora o princípio do livre convencimento, em que o julgador, desde que de forma fundamentada, pode decidir pela condenação, não cabendo, na augusta via do writ, o exame aprofundado de prova no intuito de reanalisar as razões e motivos pelos quais as instâncias anteriores formaram convicção pela prolação de decisão repressiva em desfavor do paciente.
6. Ordem denegada. (STJ, 5ª Turma, rel. Jorge Mussi, j. em 01/12/11)
No seu voto, o ministro Mussi assinalou “que não se pode negar que a atribuição a si próprio de falsa identidade com o intuito de ocultar antecedentes criminais não encontra amparo na garantia constitucional de permanecer calado, tendo em vista que esta abrange tão somente o direito de mentir (sic) ou omitir sobre os fatos que lhe são imputados e não quanto à sua identificação”. Estão vendo? Mentir pode, disse ele. Nem tudo é perfeito.
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