Por Vladmir Aras
Desde antes do tenebroso caso George Floyd, nos Estados Unidos, o racismo estrutural e o racismo institucional na Justiça criminal têm sido objeto de atenção de estudiosos em vários países.
O Brasil não é um bom exemplo de “democracia racial”, como alguns sustentaram outrora. Somos um país de longa tradição racista. E insistimos nela.
Casos de racismo institucional se repetem no cotidiano forense há décadas, revelando quão entranhados estão ainda o pensamento racista e as reações raciais no sistema de justiça criminal.
Já tive ocasião de tratar do recrudescimento da reação penal pelo critério racial neste Blog sobre a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador em 1835. Na ocasião, negros escravizados traficados da África Ocidental para o Brasil rebelaram-se contra o que lhes parecia ser — e era — uma terrível injustiça: a privação de suas liberdades, de que decorriam tratamentos desumanos e degradantes de toda a ordem. A reação do sistema penal imperial foi imediata. Além das penas capitais a que foram condenados os revoltosos, a Corte no Rio de Janeiro aprovou às pressas, ainda no ano de 1835, uma reforma do Código de Processo Penal do Império, de 1832, tornando mais fácil a imposição da pena de morte a negros escravos, distinguindo-os, também aí, do resto da população.
Existem inúmeros textos acadêmicos e jornalísticos sobre o elemento racial no Código Penal de 1890, em torno da criminalização de condutas que somente negros praticariam ou atos mais facilmente imputáveis a negros. O exemplo mais marcante é o do crime de capoeiragem, previsto no art. 402 daquele código, que foi o primeiro da República desigual que se declarara pouco antes.
Art. 402. Fazer nas ruas e praças publicas exercicios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma lesão corporal, provocando tumultos ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal:
Pena – de prisão cellular por dous a seis mezes.
Paragrapho unico. É considerado circumstancia aggravante pertencer o capoeira a alguma banda ou malta.
Aos chefes, ou cabeças, se imporá a pena em dobro.
Também são inúmeros os estudos, aqui e no exterior, que revelam que a população carcerária é sobretudo formada por negros e pardos, ainda quando os percentuais desses mesmos grupos na população geral sejam significativamente menores. A demografia e a estatística parecem descortinar uma justiça criminal racialmente enviesada.
Igualmente corriqueiras são as abordagens indevidas ou atuações policiais violentas contra suspeitos negros ou pardos ou diligências abusivas realizadas em comunidades e em bairros em que vivem majoritariamente negros e pardos.
Não se pode esquecer a composição predominantemente branca dos órgãos de Justiça no Brasil. São poucos ainda os juízes e membros do Ministério Público negros. O perfil sociodemográfico da Justiça do Brasil indica que apenas 18% dos juízes brasileiros são negros ou pardos.
Tampouco se pode ignorar que o sistema de justiça criminal ainda não reage bem a questões raciais, mesmo quando diante de casos claríssimos de racismo.
O caso Simone André Diniz vs. Brasil talvez seja o melhor exemplo da condescendência dos atores de justiça criminal com o racismo, seja o da Lei 7.716/1989, seja a injúria racial do Código Penal.
Em 1997, Simone, uma mulher negra, atendeu a um anúncio de emprego para serviços domésticos. A vaga lhe foi recusada por ela ser de cor preta. O anúncio, publicado nos classificados do jornal Folha de São Paulo, dizia claramente que se pretendia uma pessoa de preferência de cor branca.
Levado o caso à Polícia, o inquérito foi concluído e enviado ao Ministério Público, que lamentavelmente o arquivou. Caso encerrado? Não. A vítima, porque houve uma vítima, apresentou o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Em 2006, a CIDH resolveu responsabilizar internacionalmente o Brasil por discriminação racial e denegação de acesso à Justiça e recomendou a reparação do dano causado à vítima, entre outras coisas, pela inação do sistema de justiça criminal brasileiro.
145. Com base nas considerações de fato e de direito expostas anteriormente, a Comissão Interamericana reitera sua conclusão em relação a que o Estado brasileiro é responsável pela violação do direito à igualdade perante a lei, à proteção judicial e às garantias judiciais, consagrados, respectivamente, nos artigos 24, 25 e 8 da Convenção Americana, em prejuízo de Simone André Diniz. A Comissão determina, ainda, que o Estado violou o dever de adotar disposições de direito interno, nos termos do artigo 2 da Convenção Americana, violando, também, a obrigação que lhe impõe o artigo 1.1, de respeitar e garantir os direitos consagrados na Convenção.
Leia aqui o caso Simone André Diniz vs. Brasil (2006).
Mas o que nos chama atenção nestes tempos de pandemia é a sentença da Justiça Criminal de Curitiba em que o elemento “raça” foi utilizado, de forma injustificável, para aqui e ali fundamentar uma decisão condenatória proferida contra uma associação criminosa integrada por vários indivíduos, um deles negro. Consta da sentença em questão:
“Sobre sua conduta social, nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta (n)os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente.” (Trecho da sentença da 1ª Vara Criminal de Curitiba).
Como era de se esperar, as palavras usadas pela juíza curitibana não soaram bem e foram lidas como demonstração de racismo institucional.
Cada um é capaz de avaliar por si o que está escrito. A juíza alega que foi mal interpretada. Todavia, parece fácil identificar ali um caso de racismo institucional, daqueles que estão impregnados no cotidiano forense e na rotina policial. A utilização do critério raça (na verdade a “cor” do réu) para tentar explicar um comportamento criminoso é por si mesma uma discriminação repudiável à luz da Constituição e dos tratados.
As instâncias correcionais do Judiciário deverão apurar o fato e atestar o que ocorreu, assegurando-se o contraditório. Aqui gostaria de refletir sobre um ponto específico: o papel que a raça pode desempenhar nos erros judiciários.
Há vários estudos de criminologia e de ciência social sobre os erros em reconhecimentos interraciais (cross-racial misidentification).
É demonstrável que é mais difícil reconhecer alguém que pertença a outra raça ou a outro grupo étnico do que alguém de sua própria raça ou etnia. Isso pode levar a reconhecimentos fotográficos ou presenciais equívocos e a graves erros judiciários.
Some-se este complicador ao cenário já incerto e tumultuado da prova testemunhal. Testemunhas podem perceber o mesmo fato de diferentes formas; podem compreendê-lo também diferentemente; terão maior ou menor capacidade de retê-lo na memória; poderão então relatá-lo a um juiz, com maior ou menor fidelidade. Ou fidelidade nenhuma, não porque mintam sempre as testemunhas, mas porque não viram ou não ouviram bem; não entenderam adequadamente o que viram ou ouviram; passado o tempo não conseguem mais lembrar-se com precisão dos detalhes do que viram ou ouviram ou do que pensam ter visto ou ouvido. E quando, tempos depois, vão relatar esse evento a um juiz de podem ter dificuldades diversas de expressão, carência de didatismo ou deficiência de acurácia, ou falhas de memória, ou falsas memórias.
Voltemos ao ingrediente racial. Será fácil para uma testemunha vencer todas essas dificuldades sensoriais e intelectivas e realizar reconhecimentos precisos, além da dúvida razoável (standard de prova relevante aqui), para determinar a autoria de um crime? Creio que precisamos de cautela redobrada num campo sensível da prova, quando nele se inserir o fator raça ou cor.
Segundo Chapman e Flevaris:
Experimental research suggests that an eyewitness trying to identify a stranger is over 50% more likely to make a misidentification when the stranger and eyewitness are of different races. Consistent with this finding, approximately one-third of wrongful convictions uncovered by DNA analysis nationwide have involved whites misidentifying blacks.
Se isto é uma realidade na justiça criminal de países que receberam grandes levas de africanos escravizados e que têm hoje milhões de cidadãos afrodescendentes, seguramente será mais intensa tal dificuldade perceptiva de reconhecedores interraciais em países ou regiões do planeta que tenham visto menos imigração e menos miscigenação com pessoas de origem africana.
Além disso, o tema dos reconhecimentos errôneos por racial bias já se apresenta como dificuldade concreta no chamado viés algoritmo das IA de reconhecimento facial. Há percentualmente mais falsos positivos em prejuízo de negros do que de brancos. Também nos softwares já usados pela justiça criminal nos Estados Unidos e na Europa, o viés racial tem resultado em decisões judiciais mais rigorosas contra não brancos, sobretudo na execução penal. De onde viria esse preconceito “de máquina”? Evidentemente, terá vindo do conjunto de dados usados para o machine learning e dos preconceitos dos próprios programadores dos algoritmos que são a base das IA.
Diante do quadro que temos por aqui, convém que o Brasil reforce suas políticas públicas para a completa adequação de suas instituições de justiça e polícia à Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1969. Convém também que o País ratifique a Convenção Interamericana Contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância e a Convenção Interamericana Contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância, de 2013. Exige-se essa compliance estatal para evitar outros episódios de responsabilização internacional do País.
No caso Simone André Diniz, a Comissão Interamericana recomendou que o Brasil organizasse “seminários estaduais com representantes do Poder Judiciário, Ministério Público e Secretarias de Segurança Pública locais com o objetivo de fortalecer a proteção contra a discriminação racial e o racismo”.
Conclamou também os governos estaduais a criarem “delegacias especializadas na investigação de crimes de racismo e discriminação racial”.
A CIDH também solicitou aos Ministérios Públicos Estaduais a “criação de Promotorias Públicas Estaduais Especializadas no combate ao racismo e a disriminação racial”.
O racismo marca nossa história desde a chegada dos navegadores e dos primeiros colonos. Indígenas e depois os negros foram sempre as vítimas preferenciais dessas práticas que envergonham todos nós.
Caetano Veloso deu o tom e a letra:
Quando você for convidado pra subir no adro
Da fundação casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados.
No pelourinho, os escravos eram castigados. E a isso se chamava justiça.