por Vladimir Aras
Na XL Reunião do Conselho do Mercado Comum do Sul, realizada em Foz do Iguaçu em 16/dez/2010, os governos do Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai assinaram o Acordo sobre o Mandado Mercosul de Captura e Procedimentos de Entrega entre Estados Partes do Mercosul e Estados Associados (leia o texto integral aqui). Este protocolo, que integrará o Tratado de Assunção, foi objeto da Decisão 48/2010 do Conselho do Mercado Comum (CMC).
Definido pelo art. 1º do Acordo como “uma decisão judicial emitida por uma das Partes (Parte emissora) com vistas à prisão e entrega por outra Parte (Parte executora), de uma pessoa procurada para ser processada pelo suposto cometimento de crime, para que responda a um processo em curso ou para execução de uma pena privativa de liberdade“, o Mandado Mercosul de Captura – MMC (ou Orden Mercosur de Detención – OMD) poderá ser expedido na fase da investigação, do processo penal ou da execução penal, tal como se dá com a extradição (instrutória ou executória).
O instituto simplifica o procedimento de extradição no Mercosul e nos Estados associados, de modo a permitir que um juiz de Manaus expeça um mandado de prisão que será diretamente cumprido por policiais de Mendoza, na Argentina. E vice-versa. Instrumento processual semelhante funciona na Europa desde janeiro de 2004, com o nome de Mandado Europeu de Captura ou Mandado de Detenção Europeu, conhecido como euro-ordem e fruto da Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de Junho de 2002.
Por que um mandado subcontinental de prisão?
Com o incremento das relações econômicas e do turismo no Mercosul e nos Estados vizinhos, tornou-se muito mais fácil o trânsito de pessoas. Na maior parte dos países da região, não é necessário utilizar passaportes nem são exigidos vistos de entrada. Essa simplificação do trânsito de pessoas também favorece a locomoção de criminosos, a movimentação de produtos ilícitos e a transferência de ativos oriundos de atividades clandestinas.
Embora baste uma cédula de identidade para atravessar as fronteiras mercosulinas, a restituição de um suspeito ou réu foragido é muito demorada e repleta de formalidades desnecessárias.
Como funcionará o MMC?
No Mercosul, o MMC funcionará por meio da inclusão de dados do foragido no Sisme, que é o Sistema de Intercâmbio de Informação de Segurança do MERCOSUL, criado pela Decisão CMC nº 36/04. O mandado também poderá ser enviado diretamente ao juiz competente no exterior.
O acompanhamento e a intermediação da execução dos mandados será encargo de uma autoridade central designada em cada Estado (art. 6º do Acordo). Em se tratando de matéria penal, tal atribuição deveria ser do Ministério Público Federal, em função do art. 129 da Constituição, ou da Polícia Federal (art. 144 da CF), órgão que já exerce no Brasil as funções da Interpol e cuida do sistema de difusões vermelhas (red notices), ou mandados internacionais de prisão.
Finalidade do MMC
O objetivo do MMC é desburocratizar o cumprimento de mandados de prisão no subcontinente, facilitar a persecução criminal, acelerar os processos penais e combater a impunidade. A demora na tramitação de pedidos de extradição pode acarretar a prescrição de infrações penais. Na prática, o Acordo sobre o MMC suplantará os tratados de extradição que vigoram no continente, salvo no que diz respeito aos crimes não abrangidos pelo novo procedimento.
Alguns dos requisitos do MMC
O MMC só poderá ser executado quando, além do requisito da dupla tipicidade (também exigido para a extradição), o crime em questão for punido com pena superior a 2 anos de prisão em ambos os países envolvidos. Logo, ficam de fora, no modelo brasileiro, todas as infrações penais de menor potencial ofensivo, reguladas pela Lei 9.099/95.
Porém, o Acordo determina a aplicação expressa do MMC à criminalidade organizada, aos crimes de tráfico de drogas, à corrupção, ao tráfico de pessoas, ao tráfico de armas de fogo, ao terrorismo e seu financiamento, ao genocídio e aos crimes contra a humanidade, previstos em 19 convenções internacionais listadas no Anexo I do Acordo.
Garantias do procurado
Para assegurar o respeito do devido processo legal e aos direitos humanos, o Estado emissor não poderá aplicará à pessoa procurada, em nenhum caso, as penas de morte, de prisão perpétua ou de trabalhos forçados. Se o crime que fundamenta o MMC for punível com a pena de morte ou de prisão perpétua, o cumprimento do mandado só será admitido se o Estado emissor da ordem comprometer-se a aplicar a pena máxima admitida na legislação da Parte executora (art. 10, §3, do Acordo).
Em qualquer caso, o foragido deverá ser assistido por advogado no Estado executor do mandado e terá direito de questionar sua conformidade convencional perante o Poder Judiciário do local de sua prisão.
Extradição versus entrega
Questão interessante é saber se, nos termos do art. 5º, §1, letra ‘a’, do Acordo, o Brasil poderá recusar-se a entregar um seu cidadão cuja prisão tenha sido decretada num dos outros Estados signatários, invocando a cláusula de inextraditabilidade de nacionais. Esta discussão é semelhante a que surgiu logo após a promulgação do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, de 1998, que admite a entrega de nacionais ao TPI.
Tal debate irá repetir-se agora, em maior potência, pois a possibilidade de ocorrer um tal evento no contexto do Mercosul é muito maior do que outro qualquer relacionado à competência do TPI. Dificilmente teremos aqui um foragido do Tribunal Penal Internacional. Não é provável que um Omar al-Bashir, o ditador presidente do Sudão, contra quem há um mandado internacional de entrega (veja aqui a PET 4625-1, que tramita no STF sob a relatoria do ministro Celso de Mello), venha homiziar-se no Brasil. É muito mais fácil, entretanto, que nacionais do Mercosul cometam estripulias aqui ou acolá e se vejam presos em virtude de um MMC.
Pois bem. O artigo 5º do Acordo de Foz do Iguaçu estabelece que “a nacionalidade da pessoa reclamada não poderá ser invocada para denegar a entrega, salvo disposição constitucional em contrário“. A CF/1988 não proíbe a entrega de nacionais para execução de MMC, nem poderia proibi-lo, já que se trata de novo procedimento. Porém, a Carta veda a extradição de brasileiros natos. Como se resolver este dilema?
a) pela interpretação estrita do art. 5º, inciso LI, da CF/88, que se limita a impedir a extradição de nacionais? Isto levaria à permissão da entrega de nacionais aos signatários do Acordo de Foz do Iguaçu.
b) ou pela equiparação do instituto da entrega, via MMC, a uma extradição simplificada? Isto impediria a prisão e o envio de nacionais para responderem perante os tribunais dos outros Estados Partes do tratado.
Competência para a expedição do MMC
Nos pedidos ativos (Brasil como Estado emissor), não há dúvida de que qualquer autoridade judiciária, federal ou estadual, de primeira ou segunda instância, ou ainda os tribunais superiores, na sua competência para ações penais originárias, poderão expedir mandados de captura no Mercosul. Obviamente, ficam de fora os juízos e tribunais que não detêm competência criminal.
Contudo, dúvidas devem surgir quanto à autoridade judiciária competente brasileira para autorizar a entrega do procurado que tenha sido capturado em razão de um MMC expedido no exterior (cooperação passiva). Na tutela extradicional passiva, essa competência pertence ao STF, com base no art. 102, inciso I, letra ‘g’, da CF. Porém, em se tratando de instituto novo, a Constituição brasileira não traz qualquer disposição sobre a matéria, o que permite especular que tal competência deva ser do juízo federal do local da prisão do procurado no Brasil (art. 109, incisos II, III e X, CF). Esta questão deverá ser resolvida pela lei que deverá regulamentar o MMC no território brasileiro.
Minha opinião
A iniciativa do Conselho do Mercado Comum é extremamente importante para o combate ao crime organizado no Cone Sul. Nossas fronteiras são extensas e mal vigiadas. O controle migratório também é deficiente. As interações entre as quadrilhas daqui e de lá são cada vez mais comuns. O tráfico de drogas, de armas, de animais silvestres e de pessoas no corredor transoceânico Pacífico-Atlântico só faz crescer. Tal como na União Europeia, a América do Sul precisa de um espaço comum de “Justiça, Segurança e Liberdade”.
Ao emular o modelo europeu, o procedimento político-administrativo de cooperação para prisão de foragidos que ainda marca o instituto da extradição será substituído por um procedimento exclusivamente judiciário de entrega. O caso Battisti, procurado pela Itália e acolhido no Brasil, permite perceber como fatores não-jurídicos podem invadir a discussão processual penal a ponto de inviabilizar a cooperação em matéria criminal mesmo em casos graves, como os de homicídio.
O MMC baseia-se no princípio do reconhecimento mútuo da legitimidade e exequibilidade das decisões expedidas pelo Poder Judiciário de cada um dos Estados signatários. Por esta e outras razões, a cláusula democrática que impera no Mercosul é tão importante para o bloco. O Protocolo de Ushuaia, de 24 de julho de 1998, previu-a nos seguintes termos: “A plena vigência das instituições democráticas é condição essencial para o desenvolvimento dos processos de integração entre os Estados Partes do Protocolo”. Sem o respeito à democracia e aos direitos fundamentais, inclusive processuais, da pessoa humana, o acatamento recíproco das decisões judiciais não é e não será possível.
O MMC não é para já. Como qualquer tratado, o acordo firmado na Tríplice Fronteira no final de 2010 deverá ser aprovado pelos parlamentos dos países signatários e promulgado pelos respectivos Chefes de Estado. Sua regulamentação interna deverá ser realizada pelo Legislativo, ao menos para determinar a competência nos pedidos passivos. Só então a novidade será uma realidade.