Direito processual penal

Primeira crítica ao instituto: a colaboração premiada é antiética

Se a esta última se referem os críticos, a resposta é sim, a colaboração premiada é antiética porque fere os deveres de lealdade e de silêncio, mafioso (omertà) ou não, que existem entre delinquentes.

Por Vladimir Aras

Entre as críticas ao instituto da colaboração premiada, há reflexões sérias, preocupações legítimas e também um certo exagero retórico, oco e sem sentido. Abaixo estão listadas as dez objeções mais comuns ao instituto. Procuraremos rebatê-las com argumentos jurídicos e no plano dos fatos. Vejamos quais são elas.

A primeira: a colaboração premiada é antiética. De que ética tratamos? Quem a define? Tem-se como referência a ética do conjunto da sociedade ou a ética das associações criminosas?

Se a esta última se referem os críticos, a resposta é sim, a colaboração premiada é antiética porque fere os deveres de lealdade e de silêncio, mafioso (omertà) ou não, que existem entre delinquentes. Falar demais e “entregar o jogo” é ruim para os negócios. É péssimo para negociatas. Em algumas organizações criminosas, a pena por esse agir “antiético” é a morte.

Porém, se tivermos em mira a ética da sociedade em geral, veremos que não há vício moral algum em colaborar com o Estado para a punição de criminosos, a prevenção ou a elucidação de crimes, a salvação da vida de pessoas sequestradas ou a devolução de dinheiros subtraídos da Nação. É isto o que se espera de uma sociedade equilibrada: que seus integrantes cooperem uns com os outros.

Para avançar no exame do aspecto ético da delação premiada, precisamos apenas perceber “para onde” olhamos, isto é, em que momento do tempo fixamos nosso olhar. O colaborador é um traidor, é o que dizem os defensores da ética criminosa. “Lá em casa, não deduramos ninguém”… Como se essa autorreferência pueril pudesse servir de modelo para resolver todas as intrincadas questões de segurança pública e de persecução criminal que afligem o meio social e que se relacionam a direitos difusos e a direitos fundamentais de acusados e vítimas.

Qual a “traição” original cometida pelo colaborador (se é que esta existe)? O que vem primeiro: a traição da confiança de seu cúmplice? Ou a traição do criminoso (agora colaborador) para com seus concidadãos, especialmente sua(s) vítima(s)?

Por outro lado, por que seria antiético tomar a palavra de uma pessoa contra a outra e confirmá-la com documentos apreendidos, obtidos ou localizados graças a sua colaboração? Não é exatamente isto o que ocorre quando tomamos o depoimento de uma testemunha “Fulano“ contra o réu “Beltrano”? Acaso é (anti)ético “falar mal dos outros” ou contar em juízo aquilo que só nós sabemos? A testemunha no processo penal também não seria um alcagüete?

Doravante, abdicaremos do uso de testemunhas porque não é “ético” forçar uma pessoa (é disso que se trata a tomada de um depoimento sob compromisso legal de dizer a verdade) a comparecer em juízo e contar tudo o que sabe sobre as malfeitorias de outrem? Não seria também antiético, de parte do Estado, impor esse dever a uma pessoa e não a proteger de eventuais e quase certas represálias da pessoa acusada nesse depoimento?

Toda testemunha é delatora. Todo colaborador é, em sentido lato, uma testemunha. Ambos têm deveres de veracidade, embora, em regra, a primeira seja desinteressada no resultado do processo penal, e o segundo seja uma parte com interesse no resultado jurídico-penal de seu agir.

Se a testemunha (em sentido estrito) falta com a verdade ou cala o que sabe, comete falso testemunho, crime previsto no art. 342 do Código Penal. Já se o colaborador mente contra outrem, imputando-lhe falsamente conduta criminosa, a pretexto de colaboração com a Justiça, também comete um crime, o de delação caluniosa, previsto no art. 19 da Lei 12.850/2013.

FALSO TESTEMUNHO DELAÇÃO CALUNIOSA
Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral:Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. Art. 19. Imputar falsamente, sob pretexto de colaboração com a Justiça, a prática de infração penal a pessoa que sabe ser inocente, ou revelar informações sobre a estrutura de organização criminosa que sabe inverídicas:Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
O réu colaborador é, nesse sentido, equiparável a uma testemunha, com uma notável diferença: seu depoimento vale muito pouco, porque sempre interessado. O que vale nas declarações do colaborador é o mapeamento do esquema por ele exposto, a indicação da trilha, da pista, do norte, enfim, o que importa é o que se tira de concreto do seu depoimento, e não as palavras mesmas do colaborador. Declaração de réu colocador sem corroboração documental, pericial ou de outra ordem não vale para nada, muito menos para condenar alguém. É fofoca ou maledicência. E, se for mentira, é crime.

Advogado ético não é aquele que, por mera solidariedade profissional ou coleguismo, recusa-se a negociar acordo de colaboração premiada para seu cliente, a fim de evitar prejuízo a teses jurídicas de outros advogados que defendem corréus em situação vulnerável pelo acordo. Bom advogado é aquele que melhora as chances exoneratórias de seu cliente ou diminui seus riscos penais, na forma da lei, usando todas as teses e mecanismos juridicamente possíveis, ainda que para isto tenha de orientá-lo a expor antigos cúmplices, dificultando, por tabela, a vida de seus patronos em juízo.

O colaborador não é estimulado a mentir em razão do acordo. Ao contrário: a lei exige que ele seja veraz[1]. A lei não exige que ele cometa crimes. Ao revés: estimula a que não os cometa mais. A colaboração não incentiva o réu à traição de comparsas criminosos. Pelo contrário: a norma instiga o colaborador a romper laços deletérios com pessoas entregues à delinquência e a interromper relacionamentos viciosos, com vistas à sua própria reinserção social, às vezes fora das grades.

Um último comentário neste item. Condutas verdadeiramente antiéticas pululam no foro criminal. A colaboração premiada não é uma delas. Citemos quatro que inegavelmente o são: a combinação de teses para iludir os juízes em detrimento das vítimas; a preparação de testemunhas para mentirem em juízo; a ocultação de provas que aproveitem a defesa; ou o recebimento de honorários pagos por clientes sem fontes lícitas de renda. O crime compensa?
 

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