por Vladimir Aras
Acho que foi o poeta maranhense Coelho Neto quem escreveu que ”ser mãe é padecer no Paraíso”. Reproduzo alguns de seus versos:
Todo o bem que a mãe goza é bem do filho,
espelho em que se mira afortunada,
Luz que lhe põe nos olhos novo brilho!
Ser mãe é andar chorando num sorriso!
Ser mãe é ter um mundo e não ter nada!
Ser mãe é padecer num paraíso!
Algumas mães, porém, despencam abruptamente do paraíso para o abismo da dor e do sofrimento. E padecem ainda mais. Há alguns dias, os jornais noticiaram que uma mãe atropelou e matou a filha dentro de uma garagem em Campos do Jordão, no interior de São Paulo. A motorista não percebeu que a garotinha de 4 anos e sua própria mãe (avó materna da criança) estavam atrás do carro, quando deu marcha a ré, acabando por esmagá-las contra a parede. A menina morreu. Para piorar as coisas, a atropeladora estava grávida e não tinha carteira de habilitação. Um desconsolo sem tamanho.
O Direito Penal não é insensível a isto.
Esta é uma daquelas tragédias que provocam horror e piedade. Uma mãe matou a própria filha por acidente. Trata-se de um homicidio culposo, aquele cometido sem intenção, mas por imprudência, negligência ou imperícia. São acidentes que acontecem por desatenção, excesso de confiança, ou inabilidade técnica. Como não há intenção de matar (dolo), as penas são mais baixas. No caso do homicidio culposo, a sanção fica entre 1 e 3 anos de detenção (art. 121, §3º, do Código Penal). Quando praticado ao volante de veículo automotor, a pena é de 2 a 4 anos (art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro).
Matar o próprio filho no carro ou com o carro são ocorrências que tenebrosamente têm-se repetido nestes nossos dias apressados e estressantes. Em 1991, a atriz Christiane Torloni passou pelo grande pesar de matar seu filho de 12 anos ao dar ré em seu veículo na garagem de casa e colhê-lo fatalmente. Nos útimos anos, a imprensa noticiou vários casos de pais que esqueceram seus filhos bebês em cadeirinhas dentro de veiculos e foram trabalhar. As criancas morreram por asfixia ou desidratação.
A pena para estes crimes já é a própria perda. Não se perde apenas o filho querido; perde-se também a paz; perde-se a harmonia do lar. Como suportar algo assim?
Diante de dores tão atrozes e de feridas tão profundas, sabiamente a lei penal se retira. Embora haja crime, o juiz pode deixar de aplicar a pena e conceder perdão judicial ao pai ou mãe causador da morte, após o devido processo legal. Haverá um inquérito policial, e o Ministério Público fará acusação criminal (a chamada denúncia). Só então, poderá vir o perdão judicial.
Diz o art. 121, §5º, do CP, que, “na hipótese de homicídio culposo, o juiz poderá deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária“. O perdão é concedido por ocasião da sentença final (art. 120 do CP). Após a reforma processual de 2008, o instituto é admissível na fase da absolvição sumária (art. 397, IV, CPP, c/c o art. 107, IX, do CP), portanto, logo no início do processo penal.
Há quem discuta se o perdão judicial se aplicaria aos crimes de homicídio culposo no trânsito. Para mim, não há dúvida que sim. Embora o perdão judicial esteja situado na Parte Especial do Código Penal, a regra é de cunho geral, aplicando-se, por motivos de política criminal, a todo e qualquer homicídio culposo, previsto no CP ou em leis especiais. Afinal, o perdão, como causa extintitva da punibilidade, está listado no art. 107, inciso IX, do CP.
Ademais, o art. 300 do CTB, que foi vetado pelo presidente da República, também previa o perdão para o homicídio culposo no trânsito. Porém, o artigo foi rejeitado porque era menos abrangente que a regra do art. 121, §5º, do CP. Eis as razões do veto: “O artigo trata do perdão judicial, já consagrado pelo Direito Penal. Deve ser vetado, porém, porque as hipóteses previstas pelo § 5° do art. 121 e § 8° do artigo 129 do Código Penal disciplinam o instituto de forma mais abrangente.”
Mesmo cabível, a solução desses dramas pela concessão do perdão judicial é uma saída ainda muito sofrida e morosa. Em tais situações, em que claramente se vê apenas a culpa (e não o dolo) do pai ou da mãe e sendo a perda uma sanção mais tenebrosa do que a pior das cadeias (como uma prisão perpétua no cárcere mental do remorso), o ideal é que o Ministério Público sequer denuncie o genitor(a). Presentes provas seguras do ocorrido, o arquivamento puro e simples do caso é a saída mais justa e humana. Não é preciso o direito criminal aqui. Quando clara a prova, uma ação penal é indesejável e pode ser uma empreitada cruel, esta sim violadora da dignidade da pessoa humana. Para o pai ou mãe, que é vítima e autor, basta o seu próprio luto; já é demais a sua própria dor.