por Vladimir Aras
Volto ao horripilante caso do 25º DP – Parelheiros. A incredulidade foi geral com o arquivamento promovido pelo Ministério Público. Leia aqui a peça de arquivamento. Diante disto, várias pessoas se perguntaram se haveria saída para contornar a decisão da Promotoria, que foi homologada pelo Judiciário, na forma do art. 28 do CPP.
Pela Constituição, somente o Ministério Público pode promover a ação penal pública (art. 129, inciso I, da CF). É o dominus litis, o dono da ação. Somente em caso de inércia da instituição, a vítima pode iniciar por meio de um advogado uma ação penal privada subsidiária, a fim de obter uma decisão judicial sobre o crime. A decisão de arquivamento não é considerada inércia do MP. Este órgão sempre tem três opções diante de um caso concreto: denunciar (isto é, levar o caso ao Judiciário para julgamento), requisitar diligências policiais adicionais (ou seja, determinar que a Polícia investigue melhor o caso) ou arquivar o inquérito (quando entende que não há crime, por exemplo). Esta é uma das características do sistema acusatório, implantado no Brasil em 1988, e também uma garantia do cidadão de que haverá um e somente um órgão encarregado da persecução.
A decisão de arquivamento sempre equivale a pôr uma pedra sobre o assunto? A resposta é não. Nem sempre esta deliberação lança uma pá de cal sobre um caso criminal. um inquérito pode voltar da tumba. O art. 18 do CPP permite que diante de “novas provas” um inquérito seja reaberto. Esta matéria está sedimentada na Súmula 524 do STF: “Arquivado o inquérito policial, por despacho do Juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas.”
No caso de Parelheiros, assim que revelada a falha do sistema de persecução, o Grupo de Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público de São Paulo tomou as rédeas do caso e pode conseguir “desenterrar o defunto” inquérito instaurado contra os delegados corregedores, o PIC 14/2009.
As opções são variadas. Listo algumas:
PRIMEIRA: os promotores podem encontrar novas provas, elementos que não tenham sido analisados pela Promotoria de Parelheiros, encará-los nos autos e reiniciar a investigação, com fundamento no art. 18 do CPP. Isto permitiria denunciar os acusados por qualquer um dos crimes que teoricamente foram cometidos contra a escrivã V. L.
SEGUNDA: O maior óbice à reabertura do caso é a Súmula 524 do STF. Este enunciado foi aprovado em dezembro de 1969, na vigência da AI-5. A conjuntura constitucional, a ambiência política e o estatuto institucional dos órgãos de persecução eram uns; agora são outros. Diante da independência que o Ministério Público conquistou em 1988, diante do modelo acusatório de processo penal e do princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional e ainda em função do crescimento dos instrumentos de tutela dos direitos humanos inclusive por meio do direito penal (vide a propósito o post sobre a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund/Guerrilha do Araguaia), é fundamental rever essa súmula, que, num tempo de exceção, interpretou um dispositivo erigido noutra ditadura, o art. 18 do CPP de 1941.
TERCEIRA: os promotores podem reavaliar o caso sobre uma outra perspectiva típica. O arquivamento tratou do crime de abuso de autoridade (Lei 4.898/65). Teoricamente, pode-se debater se os policiais praticaram outro crime, o de tortura, previsto na Lei 9.455/97, hipótese que não foi objeto da decisão ministerial homologada pelo Juízo criminal e que não pode ser equiparada a arquivamento implícito.
QUARTA: o professor Rogério Schietti, membro do Ministério Público do Distrito Federal, defende em seu livro A PROIBIÇÃO DE DUPLA PERSECUÇÃO PENAL, publicado pela Lúmen Juris, a possibilidade de desarquivamento de inquéritos policiais que tenham sido encerrados por atipicidade. Em tais casos não haveria “coisa julgada material”, simplesmente porque não terá havido exercício de jurisdição. Ao homologar o arquivamento, o juiz pratica mero ato administrativo-judicial, tanto que pela rotina do art. 28 do CPP a palavra final sobre o tema é do Ministério Público. Veja a explicação completa do próprio Schietti aqui. O excerto foi disponibilizado para acesso público no Metajus, blog do autor. Com base neste entendimento, o MP de São Paulo poderia sem maiores obstáculos reabrir o caso e promover a denúncia.
QUINTA: sustento que a decisão de arquivamento não deve produzir efeitos em casos como o de Parelheiros porque o Ministério Público não concedeu à vítima a oportunidade de se manifestar previamente acerca do encerramento da investigação. Em tempos novos nos quais a vítima passa a ter os seus interesses considerados no processo penal, é muito estranho que o MP, ainda que dominus litis, ponha fim a um caso criminal sem dar qualquer satisfação à vítima e sem colher-se as razões para eventual avaliação pelo Judiciário ou pelos órgãos de revisão do próprio Ministério Público. Nesta linha, pode-se dizer que a decisão de arquivamento não produz efeitos por não ter assegurado à vítima os direitos de ciência e participação prévias. O fato de não haver previsão legal para que haja notificação prévia da vítima não invalida a tese, que se sustenta antes na Constituição brasileira e na Convenção Americana de Direitos Humanos, que impõem ao Estado o dever de investigar, processar e punir violações de direitos humanos. Este quadro elimina a legitimidade da decisão de arquivamento. Basta comparar o sistema de arquivamento criminal com o que se passa com o inquérito civil para perceber a discrepância. Neste último modelo, costuma-se dar voz ao interessado na apuração quando do arquivamento do apuratório cível. Na esfera criminal, que apura eventos muito mais graves, não existe esta praxe.
SEXTA. Há a possibilidade de aplicação do incidente de deslocamento de competência (IDC), instituto criado em 2004 pelo art. 109, inciso V-A e §5º, da Constituição que permite a federalização de investigações sobre graves violações de direitos humanos que não tenham sido propriamente levadas adiante pelas autoridades estaduais originariamente competentes. Os contornos do IDC ainda não estão bem definidos pela doutrina nem pela jurisprudência. Ubiratan Cazzeta foi quem melhor cuidou do tema. Também escrevi sobre o instituto em artigo disponível aqui. Até hoje, a Procuradoria-Geral da República, que detém legitimidade para provocar a federalização, só levou dois casos ao STJ, um do Pará (o caso Dorothy Stang) e outro, mais recente, da Paraíba (caso Manuel Mattos). Só este foi deferido, o que levou à entrega da apuração ao Ministério Público Federal perante a Justiça Federal de João Pessoa. Pois bem, o IDC pode ser utilizado para casos como este do 25º DP em que se viu flagrante “denegação de justiça” pelos órgãos estaduais de persecução? A violação à Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 e ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966 é clara. Ademais, este caminho é viável porque não há óbice doutrinário ou jurisprudencial que oponha a suposta definitividade de decisões de arquivamento ao novo instituto do IDC. Ao contrário, parece-me que o IDC deve ser empregado justamente em casos em que não se investigou ou naqueles em que se “fingiu” ter havido apuração.
Enfim, este caso tenebroso da escrivã de Parelheiros foi para a gaveta por obra do Ministério Público e do Poder Judiciário. A Constituição, o Código de Processo Penal e a doutrina apontam alternativas para tirá-lo do limbo e mostram que a chave desta gaveta está com o Ministério Público. Esta revista indiscreta não pode ficar no arquivo morto.