Não era o filme Tropa de Elite; era a invasão da Vila Cruzeiro e do Complexo do Alemão pela Polícia. Não era ficção; era a realidade cruenta de um confronto urbano como nunca se viu no Brasil. Ao vivo na TV durante dias. Os tiros, porém, ecoaram na cidade prenunciando mortos e feridos. Era ”sangue mesmo, não era mertiolate” (Renato Russo). Parecia a confirmação do refrão de outra canção: o Rio a 40 graus, o ”purgatório da beleza e do caos” (Fernanda Abreu).
Há muito anos, organizações criminosas (primeiro os traficantes, agora as milícias) tomaram conta da Cidade Maravilhosa, a vitrine universal do Brasil, a nossa janela para o mundo. Quem não é capaz de amar o Rio?
A cidade está diante de um momento crucial para o combate ao crime organizado. Não é o Dia D, mas os jornais exageradamente assim o chamaram. Não há generais; as tropas são comandadas por um secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, que parece saber o que faz. Não há guerra, mas o Exército e a Marinha estão mobilizados. Não há toque de recolher ou estado de sítio. A democracia segue impávida neste colosso que é o Brasil, mas os tanques estão nas ruas da nossa capital, a mais bela e mais conhecida, pois é por ela que no exterior vêem o nosso País. Somos todos cariocas.
As razões desse descalabro que atormenta a vida do Rio são bem conhecidas. Uma Polícia corrupta, um sistema judiciário ineficiente e leniente, leis mal redigidas e mal aplicadas, incapacidade ou inércia do Ministério Público, conivência da sociedade. Somos todos culpados. Ninguém pode dar-se por exonerado de suas responsabilidades.
Há um incômodo sentimento de vingança e ufanismo no ar, que parte da falsa dicotomia entre os criminosos e a Polícia. Na verdade, há uma relação de simbiose entre os setores minoritários, mas corruptos, da Polícia Civil e da Polícia Militar e organizações e esquemas criminosos não só no Rio. Ambos se retroalimentam. Muitas armas de fogo e suas munições entram nas favelas com a ajuda de um punhado de delinquentes fardados, que enlutam suas corporações. Comunidades são abandonadas pelas quadrilhas de traficantes e em seguida são tomadas pelas milícias dos “homens da lei”. Este filme já foi visto antes.
O cenário da “guerra”, o atual teatro de operações, é o Rio de Janeiro, mas poderia ser Florianópolis, Foz do Iguaçu, Recife ou Salvador. Há organizações criminosas semelhantes às do Rio, violentas, sanguinárias e impunes, em várias cidades do País. Há locais onde o serviço dos Correios não pode ser prestado. Há locais onde oficiais de Justiça não podem fazer intimações. Há espaços das cidades em que a Polícia não pode entrar. Há zonas interditadas até mesmo para jornalistas e cidadãos comuns.
Estes cada vez maiores domínios do tráfico mantêm-se em virtude da ausência do Poder Público (federal, estadual e municipal). Não há policiamento, mas antes disto não há escolas, empregos, postos de saúde, saneamento básico, vias e calçamento, iluminação pública, espaços de lazer ou acesso à Justiça. Com isto, a vida das pessoas torna-se difícil e dramática, o que contribui para aumentar o contingente de jovens recrutáveis por quadrilhas. Estes serão os soldados do tráfico, atividade arriscada para a qual são atraídos pelos ganhos fáceis propiciados pela compra de drogas, por consumidores dos bairros chiques e das próprias favelas. “Parece cocaína, mas é só tristeza”, profetizou Renato Russo.
Ver o todo e não a parte
O problema não é do Rio nem é o Rio. A repercussão internacional dos eventos desta sangrenta semana nos fazem lembrar que o mundo está nos vendo. Não é só porque teremos a Copa do Mundo em 2014 e as Olímpiadas em 2016. O Brasil ocupa um espaço cada vez mais privilegiado no cenário político-econômico mundial, é um destino turístico importante e é natural que a comunidade internacional mostre-se preocupada. Quantos contrastes! O país que é capaz de êxitos formidáveis em vários campos é também palco de misérias indizíveis. E quantas semelhanças com outros países da América Latina! Basta lembrar dos casos do México e da Colômbia, onde os Estados Unidos despejaram milhões de dólares por causa das guerras locais contra os carteis dos narcos. Mesmo assim, as estruturas mafiosas continuam incontroláveis e matam a cada dia mais. Aqui não será diferente.
Corroborando esta faceta mundial do problema da criminalidade organizada, recordo que o caso ou o caos (mas não o ocaso) do Rio se encaixa simultaneamente em cinco regimes internacionais de proibição, que nos fazem ver que para “problemas globais” precisamos de “regras universais”. Tais regimes levaram à construção de arcabouços normativos, de regulação, prevenção e repressão, que devem servir de modelo aos países que desejem cooperar para garantir o direito à segurança pública. Esta elaboração normativa conjunta costuma ser capitaneada por organizações internacionais como a ONU, a OEA, a União Europeia e a OCDE.
A relação de tratados internacionais abaixo mostra muito bem que o Rio se encaixa em cinco desses megaproblemas globais:
1. Crime organizado. O tema é objeto da Convenção de Palermo (ONU). Os criminosos em ação na capital fluminenses não formam quadrilhinhas de São João. São organizações criminosas armadas e violentas, com domínio territorial, conexões nacionais e internacionais. Valem-se da corrupção e da intimidação para manter-se fortes e operacionais. Estão misturadas ao Estado.
2. Tráfico de armas de fogo. É a matéria-prima do Terceiro Protocolo Adicional à Convenção de Palermo (ONU). Os perigosos “brinquedos” utilizados pelos criminosos brasileiros são importados. Quase tudo vem de fora, graças a uma rede logística que se apoia na conivência e na corrupção de alguns cidadãos que agora parecem indignados, mas que, para ficar no jargão da guerra, não são paesanos da resistência. Na verdade, não passam de “quintas colunas”.
3. Corrupção. Convenção de Mérida (ONU). As coisas só chegaram a esse ponto por causa da corrupção descarada. E a culpa não é da “malandragem carioca”. Corrupção há em toda parte, mesmo entre os órgãos que deveriam combatê-la.
4. Lavagem de dinheiro. Tema presente em várias resoluções e tratados internacionais (GAFI, ONU, OEA, OCDE). A ocultação dos ativos realimenta a corrupção e serve para a aquisição de armas de fogo e mais drogas. Todo narcocriminoso lava seu dinheiro. Aliás, “lava, passa e dobra”. E corrompe.
5. Drogas. Objeto da Convenção de Viena (ONU). O comércio de drogas é o motor por trás dessa complexa engrenagem, que envolve criminosos, policiais e cidadãos comuns. Pela quantidade de cadáveres que gera, facilmente se vê que esta atividade não cheira nada bem.
Quem se organizar melhor, terá vantagem
Se não houver ação coordenada dos Estados (todos eles simultaneamente) e da União, caminharemos rapidamente para a disseminação de práticas ainda mais deletérias do que as acima enumeradas. Tais modos de agir já foram vistos em São Paulo, sob o comando do PCC, em 2006, e agora se repetem no Rio de Janeiro, com ataques deliberados contra a população civil, para infundir pânico e desacreditar os governos. Daí tardará muito pouco para precisarmos das regras do sexto regime global de proibição, que é o do terrorismo, regulado por uma dezena de convenções internacionais.
Há algumas soluções a prazo. Nenhuma a vista. Nada é para já em segurança pública. Não foi de uma hora para outra que o tráfico dominou o México e a Colômbia onde os carteis dos narcos são poderosíssimos. O risco é trilharmos o mesmo caminho. É preciso levar a sério o direito constitucional à segurança pública. Todos temos direito à vida, à integridade física, à inviolabilidade do domicílio e ao patrimônio. Todos temos o direito à liberdade e à tranquilidade, o que inclui o direito inalienável de usar nossas cidades sem medo, direito de caminhar pelas ruas sem temor.
Obviamente, não basta policiamento constante. Não basta sequer o policiamento comunitário. É indispensável, antes de tudo, capacitar nossos policiais e bem remunerá-los, tal como se pretende com a aprovação da necessária PEC 300. É preciso unificar as polícias civil e militar, transformar a Força Nacional de Segurança Pública em uma polícia nacional permanente, criar uma carreira independente de corregedoria policial, aumentar o controle da sociedade sobre a Polícia e fortalecer a supervisão do Ministério Público sobre suas ações (controle externo).
A estruturação de serviços de inteligência policial não pode ser menosprezada. É preciso ainda que a sociedade colabore com os órgãos de segurança pública com informações sobre as atividades de grupos delinquentes em suas comunidades, e que possam fazê-lo de forma anônima, sem medo de represálias. Embora esses serviços de disque-denúncia sejam eficientes em todo o mundo, o Superior Tribunal de Justiça, o autointitulado “Tribunal da Cidadania”, tem criado dificuldades incompreensíveis para a aceitação de delações anônimas como base de investigações policiais (veja isto).
Também é preciso que sejam realizadas prioritariamente ações sociais e de promoção da cidadania nos bairros mais carentes de nossas cidades. A fórmula não é mágica. Todos a conhecem. O Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci) é um bom caminho a ser trilhado e que pode trazer resultados após alguns anos de trabalho persistente.
Eliminar os focos da criminalidade apenas com prisões dos líderes e membros dessas máfias não é possível. Tornar indisponíveis seus bens deve ser uma regra. Em certos casos, “prender o dinheiro” talvez seja mais importante que prender o criminoso. É preciso também que o Congresso Nacional se movimente para aprovar ainda em 2011 os projetos da nova lei de lavagem de dinheiro (PL 3443) e da nova lei do crime organizado (PL 150/2006), e que corrija os inúmeros equívocos do projeto do novo CPP (PL 156/2009) e da Lei 11.343/2006, a lei antidrogas,que instituiu a esquizofrênica política que “libera geral” para os usuários e pune mais severamente os traficantes. Não há lógica alguma na atual solução normativa, pois, com o aumento da demanda (porque há menor risco penal, há mais consumidores), a pressão sobre os fornecedores de droga (que continuam sob severa repressão) se acentua, o que provoca a subida dos preços e o incremento dos lucros destes últimos. Com mais dinheiro nas mãos dos traficantes, é mais fácil corromper, adquirir armas e comprar mais drogas. É a narcoeconomia, amigos.
Para agora, estas operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), com apoio das Forças Armadas, são bem-vindas no Rio, desde que executadas de acordo com as regras constitucionais (falou-se na invasão de 30 mil casas no Complexo do Alemão sem mandado judicial), com respeito aos direitos de todos. Mas depois as Três Armas devem ser empregadas na sua finalidade precípua, de defesa da integridade das fronteiras nacionais. Armas de guerra que são utilizadas por traficantes e assaltantes nas nossas maiores cidades entram no Brasil pelas fronteiras do Paraguai, Bolívia, Colômbia e Peru. As drogas, especialmente a cocaína, vêm pela mesma rota, e também entram pelos portos e aeroportos do País. Aliás, é esta também a logística que favorece a introdução no Brasil de produtos contrabandeados, que são comumente comercializados pelas ruas, nas feiras paraguaias às quais já nos habituamos. O mesmo ônibus que traz inofensivos brinquedos chineses, traz também cocaína, maconha, armas de fogo, munições, agrotóxicos proibidos e medicamentos clandestinos.
O que eu tenho a ver com isto?
O crime organizado está por toda a parte. No transporte clandestino de passageiros, no contrabando de mercadorias, no tráfico de pessoas, na exploração sexual, no comércio de drogas, na sonegação fiscal e na lavagem de dinheiro. Não podemos querer uma sociedade segura, se individualmente contribuímos todos os dias para a insegurança geral. Compramos produtos ilícitos, consumimos drogas, fazemos gatonet, furtamos água e energia elétrica, corrompemos policiais e fiscais, sonegamos impostos e silenciamos diante de tudo isto. De quem é a culpa?
Pelo menos no Rio, chegou a hora de retomar alguns desses espaços para a cidadania e pôr na cadeia muitos desses criminosos crueis e desumanos. O tráfico de drogas não acabará, mas alguma coisa vai mudar. Os cidadãos do Rio e seus milhões de visitantes querem sua liberdade de volta.
Esses criminosos, agora desalojados, não virarão “cavalheiros europeus” de uma hora para outra, nem se tornarão empresários de drogarias do tipo delivery. Eis o falso dilema, que pode ser visto em duas películas que retratam vidas criminosas no Rio de Janeiro e que simbolizam duas visões da mesma realidade: ”Meu nome não é Johnny” contra “Meu nome é Zé Pequeno, p….“. O Rio não virará uma “Cidade de Deus” e de anjos depois da invasão das “Tropas de Elite”. Amanhã, “Johnny” continuará cheirando sua cocaína e alimentando o tráfico. Talvez o problema ” Central do Brasil” seja essa hipocrisia do “jeitinho” e do “não é comigo”.
O México e a Colômbia, especialmente o primeiro (veja aqui e aqui), estão aí para mostrar que os narcos podem escolher um caminho muito mais sangrento do que a utopia do “narcotráfico empresarial”. Nossas quadrilhas, com as demonstrações de 2006 e 2010, chegaram a um ponto classificável como de narcoterrorismo.
É fundamental a persecução criminal rigorosa desses delinquentes e tantos outros que estão noutras cidades do País. Porém, embora seja o anseio de muitos, não há como compactuar com julgamentos sumários para aplicação de sentenças de morte pela própria Polícia.
Por outro lado, os tribunais superiores têm de descer das nuvens e fazer valer a força do direito penal para a proteção da sociedade e dos direitos humanos mais preciosos, abandonando o laxismo que tem sido corresponsável por muitas lágrimas e ranger de dentes. Quantos desses criminosos que vimos pela TV já estiveram presos e foram soltos devido ao coitadismo penal que se vê na doutrina criminal brasileira?
No fim das contas, para os que almejamos um País melhor e democrático, que respeite o direito de todos (inclusive dos bad guys), fica a mensagem: fora da lei e da Constituição não há salvação. Nem para “nós” nem para “eles”.