por Vladimir Aras
Em 13/jan, a Folha de São Paulo publicou um artigo (“Ilegalidade dos rótulos da Polícia Federal”) do advogado Adriano Salles Vanni contra a prática da Polícia de batizar suas grandes investigações criminais.
A crítica não é nova. Quando presidia o Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes manifestou-se contra os nomes adotados pela Polícia Federal em suas operações. Essa oposição resultou na edição da Recomendação n. 18/2008, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão então dirigido por Gilmar Mendes.
Invocando o princípio da dignidade da pessoa humana (carta-coringa) e o art. 41 da Lei Complementar 35/79 – LOMAN, que proíbe aos juízes o excesso de linguagem, resolveu o CNJ recomendar aos magistrados criminais “que evitem a utilização das denominações de efeito dadas as operações policiais em atos judiciais”.
“É preciso encerrar esse capítulo de marketing policial às custas do Judiciário”, disse o então presidente do STF e do CNJ em entrevista ao Estado de São Paulo (veja aqui). E completou: “Há vários propósitos psicológicos em relação a essas denominações, de caráter propagandístico, indutor de determinado posicionamento, de impor um certo carimbo, independentemente de terem envolvimento ou não”.
Esta discussão sobre nomenclaturas me parece de menor importância. Custo a acreditar que algum juiz brasileiro se deixará conduzir por esse ou aquele rótulo adotado operacionalmente pela Polícia Civil ou pela Polícia Federal, a ponto de condenar um inocente. A possibilidade de isto ocorrer é zero.
Uso os nomes apenas para facilitar a indexação da informação e a referência ao caso. Não foi a Polícia Federal quem inventou isto. A praxe começou com as corporações militares e se proliferou a partir da 2ª Guerra Mundial. A Operação Overlord (para o Dia D), a Operação Primrose (para a captura da máquina Enigma) e a Operação Desert Storm (da guerra do Golfo) são três exemplos bem conhecidos de batismos de guerra (sic).
Hoje, no mundo todo, a Polícia dá nome aos seus casos mais importantes. A Interpol denomina as suas, como fez em 2007, quando foi lançada a Operação Coala, para combater um esquema de pedofilia na Europa. Em 2010, foi a vez da Soga III, destinada a desbaratar uma rede clandestina de apostas na Ásia. O Federal Bureau of Investigation (FBI) faz isso toda hora. Um exemplo entre tantos: a Operação Family Secrets, que investigou a família Calabrese, mafiosos de Chicago. Na Espanha, são recentes as operações (por eles denominadas operativos) Avispa, Troika e Java, todas contra as máfias russa e georgiana. Ano passado, a polícia italiana deflagrou a operazione Fiume de Denaro, contra a máfia chinesa que atua na Toscana. No Canadá, a operação policial (l’opération policière) SharQc investigou os Hells Angels do Quebec. Em 2009, a Scotland Yard lançou a Operação Dynamophone, que investigou um esquema de phishing na Inglaterra.
Os exemplos mostram quão disseminada é a prática das Polícias de apelidar os seus grandes casos. E se a Polícia não o faz, a imprensa se encarrega de fazê-lo. E se a mídia não tiver criatividade, o povão dá nomes aos bois, e já não será uma “operação” mas um caso disso ou daquilo.
Após a Recomendação 18 do CNJ, que não é obrigatória, nada mudou. A prática é tão arraigada que basta fazer uma busca pelas palavras “Mensalão”, “Satiagraha”, “Anaconda” e “Farol da Colina” para ver que o sistema informático do próprio STF devolve várias notícias com estes termos.
Como facilmente se percebe, o uso é genealizado. Sabem qual o caso Tiger Eye? É como os americanos chamam a investigação contra Daniel Dantas (entre nós, a Satiagraha). Lembram de Francisco de Assis Pereira? É o protagonista do Caso do “Maníaco do Parque”.
Lembram do Ichshiro Shimada e da Maria Aparecida Shimada? São as pessoas injustamente acusadas no caso da Escola Base.
Lembram do Sargento Guilherme Pereira do Rosário? É o que morreu no caso Riocentro.
Lembram do Rubens Florentino Vaz? Foi a vítima do caso da Rua Tonelero.
Lembram do Pedro Jorge de Melo e Silva? É o colega procurador vítima no Escândalo da Mandioca.
Não foi a Polícia Federal quem apelidou esses casos ou que batizou o Mensalão, mas basta mencionar o nome e todos saberão que se trata da ação penal proposta pela PGR contra Marcos Valério e seus supostos amigos.
A rotulação de investigações ou casos criminais existe há muito tempo e sempre vai existir. Não é só marketing. É comunicação também.
Na verdade, na origem, os batismos serviam como codinomes ou criptônimos das investigações ou das ações militares, para ocultar sua verdadeira natureza e propósito antes de sua deflagração. Tinha-se em mira o sigilo operacional. Na indústria, empresas também dão nomes secretos aos seus projetos especiais. Depois, essa prática militar/policial evoluiu no sentido comunicativo e de algum modo propagandístico. Mas divulgar suas atividades e sua marca não é crime. O STJ não se auto-intitula o “Tribunal da Cidadania”?
Há um artigo interessante, de autoria de Gregory Sieminsk: The Art of Naming Operations,,
que começa por contar como surgiu o nome da Operação Causa Justa (Just Cause) – ou Justa Causa, se você preferir. Qual é esta? A da abdução de Manuel Noriega, no Panamá, por forças norte-americanas que invadiram o país e “sequestraram” o homem-forte panamenho para sujeitá-lo a ação penal por narcotráfico na Florida.
Ao longo dos anos, em apurações com a Receita Federal ou com a Polícia Federal, já batizei algumas investigações. Cito, por exemplo, as operações Receita Controlada, Zero Absoluto, e Princesas do Sertão. Nenhuma delas recebeu rótulo destinado a menosprezar a dignidade de alguém. Participei de outros casos apelidados pela Polícia Federal de Farol da Colina e Trânsito Livre. Nesses nomes tampouco havia intuito depreciativo, injurioso ou difamatório. São, como disse antes, meros criptônimos. Se os chamamos de casos ou operações, não faz diferença. O problema talvez esteja na escolha de certos nomes degradantes. Esta prática deveria ser evitada, como também a exposição midiática dos suspeitos. Só isto, penso eu. Neste aspecto, com razão o ministro Gilmar Mendes e o advogado Adriano Vanni.
Aliás, segundo Jon Clements, no Reino Unido, “os codinomes para as grandes investigações e operations são escolhidos aleatoriamente para evitar alegações de que a Polícia deliberadamente pinçou nomes sugestivos ou inapropriados por mera diversão”. Batismos para assegurar o sigilo, a indexação e a concisão, sim. Apelidos sarcásticos ou ofensivos, não.
No mais, a Julieta de Shakespeare perguntaria: “Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume.” O que chamamos de Operação X ou Caso Y deixaria de ser repugnante ou revoltante com a alteração ou a supressão do nome? O interesse da imprensa e da sociedade diminuíram? Creio que não: o odor desagradável da corrupção ou da violência é sempre o mesmo.