Financiamento do terrorismo

O terror argentino

Em jul/1994, a Argentina vivenciou um gravíssimo atentado terrorista. Uma célula criminosa explodiu um carro bomba diante da AMIA Asociación Mutual Israelita Argentina, matando 85 pessoas. O ataque ao centro comunitário judaico no centro de Buenos Aires alarmou o país e levou a aprovação de uma legislação antiterror.

Por Vladimir Aras

Este post não é sobre o implacável Messi que aterrorizou os torcedores do Santos no Japão em dezembro. Escrevo sobre a nova lei antiterrorismo da Argentina, de 27 de dezembro de 2011, e faço um paralelo com a situação brasileira. Aqui uns 4 a 0 também.

Em jul/1994, a Argentina vivenciou um gravíssimo atentado terrorista. Uma célula criminosa explodiu um carro bomba diante da AMIAAsociación Mutual Israelita Argentina, matando 85 pessoas. O ataque ao centro comunitário judaico no centro de Buenos Aires alarmou o país e levou a aprovação de uma legislação antiterror.

Quanto a nós, felizmente, até agora não sofremos ataques terroristas, mas não estamos livres de sua ameaça. E, talvez por isto, ainda não existe no Brasil uma legislação antiterrorismo. Aqui costumamos fechar a porta depois do roubo. Apesar de nossas extensas, frágeis e mal vigiadas fronteiras e de o País ser o anfitrião de grandes eventos internacionais em 2012 (Conferência da ONU Rio+20), 2013 (Copa das Confederações), 2014 (Copa do Mundo) e 2016 (Olimpíadas), o Congresso brasileiro nada decidiu. O último grande projeto sobre o tema é de 2002 e foi arquivado.

Pois bem. A Argentina não dorme em berço esplêndido. , a Lei 26.734/2011 acaba de revogar a anterior Lei 26.268/2007, que introduzira no seu Código Penal os artigos 213-ter e 213-quater. O primeiro tipificava o crime de “associação ilícita terrorista” e o segundo criminalizava o “financiamento do do terrorismo“. Estes crimes, então classificados como delitos contra a ordem pública, deixaram de existir, mas não ocorreu propriamente uma abolitio criminis. Houve uma restruturação das infrações penais e também se estabeleceu expressamente a competência federal (art. 33, §1º, letra `e`, do CPP argentino).

No Brasil, tais tipos penais não existem. Embora alguns estudiosos advoguem que a famigerada Lei de Segurança Nacional -LSN (Lei 7.170/83) pode ser aplicada para reprimir atividades terroristas, o certo é que nosso País não tem um tipo penal de terrorismo, nem criminalizou o financiamento do terrorismo, embora esteja obrigado a isto por ser parte de mais de uma dezena de tratados anti-terror, entre eles a Convenção Interamericana contra o Terrorismo (Convenção de Barbados, de 2002), e de ser membro do Grupo de Ação Financeira InternacionalGAFI, estando, portanto, sujeito às 9 Recomendações Especiais sobre terrorismo baixadas pelo órgão.

Diante da real dificuldade em tipificar o crime de terrorismo, devido às suas características difusas e heterogêneas e aos complexos aspectos sócio-políticos envolvidos, a nova lei argentina adotou uma técnica de incriminação sem tipificação direta. Isto foi obtido mediante a inclusão do art. 41-quinquies no Código Penal.

Em outras palavras, previu-se uma causa geral de aumento de pena, específica para atividades terroristas. Qualquer crime previsto no CP argentino terá sua pena aplicada em dobro se for cometido com a finalidade de aterrorizar a população ou de obrigar as autoridades públicas nacionais ou governos estrangeiros ou agentes de uma organização internacional a uma ação ou a uma abstenção.

Um parágrafo do mesmo artigo 41-quinquies do CP restringe a aplicação desse dispositivo, vedando sua incidência quando a conduta disser respeito ao exercício de direitos humanos e/ou sociais ou de qualquer outro direito constitucional. Tal regra destina-se a proteger movimentos sociais contra a utilização do direito penal para reprimi-los, um justo receio que também ecoa nas discussões brasileiras sobre este tema.

Porém, esse parágrafo limitativo não foi suficiente para aplacar os ânimos. Vários blogs e ONGs argentinos estão em ebulição, contra a lei. Veja aqui, aqui e aqui. De fato, a norma é muito genérica, pois qualquer crime poderá ser considerado um ato terrorista, mesmo infrações penais de menor potencial ofensivo. E este generalidade é um pecado gravíssimo para uma norma penal, pois cria insegurança jurídica. Depois vem a dúvida: como se prova que uma população está “aterrorizada”?

Juntando-se aos críticos, o jurista e ministro da Suprema Corte Eugenio Raúl Zaffaroni disse que essa nova lei é fruto de gestões do GAFI, que a “extorquiu” do Governo argentino. Para Zaffaroni, “Su objetivo no es evitar el lavado ni prevenir el terrorismo, sino controlar todo el movimiento financiero”. O mestre argentino tem razão em parte, uma vez que tanto a Argentina quanto o Brasil têm sido alvos de cobranças por parte do GAFI, para que essas duas nações e outros países sob observação não sejam considerados non-compliant countries, isto é, Estados cuja ordem jurídica não está devidamente preparada para enfrentar a lavagem de dinheiro e o financiamento do terrorismo. Em março/2012, será a vez do Brasil passar pela revisão pelos pares no âmbito do GAFI e são grandes as chances de nosso País receber uma avaliação negativa neste item porque ainda não aprovamos a nova Lei de Lavagem de Dinheiro (o PL 3443/2008 foi votado na Câmara dos Deputados e voltou para o Senado) e não há tipificações anti-terror na legislação penal brasileira.

Ideologias à parte, a Argentina moveu-se. A generalidade do art. 41-quinquies da nova lei penal de nossos vizinhos pode ser restringida pela aplicação do art. 1º da Lei 25.241/2000, que considera atos de terrorismo:

as ações delitivas cometidas por integrantes de associações ilícitas ou organizações constituídas com o fim de causar alarma ou temor, e que se realizem mediante o emprego de substâncias explosivas, inflamáveis, armas ou qualquer instrumento de elevado poder ofensivo, sempre que sejam idôneos para pôr em risco a vida ou a integridade física de um número indeterminado de pessoas“.

Nada disto temos entre nós. O dispositivo que mais se aproxima é o art. 20 da Lei 7.170/83, segundo o qual se pune com pena de 3 a 10 anos, quem devastar, saquear, extorquir, roubar, seqüestrar, manter em cárcere privado, incendiar, depredar, provocar explosão, praticar atentado pessoal ou atos de terrorismo, por inconformismo político ou para obtenção de fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou subversivas (sic). Em função do art. 109, IV, da Constituição, este crime é de competência federal, ficando prejudicado o art. 30 da LSN, que conferia tal competência à Justiça Militar.

Por outro lado, embora o legislador argentino tenha revogado o crime de financiamento do terrorismo, antes objeto do art. 213-quater, agora este mesmo delito está tipificado no art. 306 do CP do país vizinho, com penas de 5 a 15 anos e multa de duas a dez vezes o montante da operação. Comete o crime quem, direta ou indiretamente, arrecada ou dá bens ou valores para que sejam utilizados ou sabendo que serão utilizados no todo ou em parte:

a) para financiar a prática de um crime nas circunstâncias do art. 41-quinquies do CP;

b) por uma organização que pratique ou tente praticar crimes com a finalidade estabelecida no referido artigo; ou

c) por um indivíduo que cometa, tente cometer ou participe de qualquer modo da prática de crimes com a finalidade estabelecida no referido artigo.

Esta pena será aplicável ainda que o crime financiado não ocorra, ou ainda se os ativos fornecidos não forem utilizados para sua prática.

Uma regra de proporcionalidade estabelece que se a escala penal prevista para o delito financiado for menor que a estabelecida pelo art. 306 do CP argentino, serão considerados na dosimetria o mínimo e o máximo daquele delito.

A lei argentina também admite a aplicação extraterritorial deste tipo penal, respeitado o princípio da dupla incriminação.

No que diz respeito ao financiamento de atividades terroristas, é curiosa a situação brasileira. Embora não exista aqui um delito autônomo de financiamento do terrorismo, a Lei de Lavagem de Dinheiro em vigor (Lei 9.613/98) considera tal conduta como delito antecedente da reciclagem de ativos. Obviamente, isto é uma excrescência. A falta do tipo autônomo torna letra morta a regra do art. 1º, inciso II, da Lei 9.613/98.

Voltando ao caso argentino, nas hipóteses de financiamento do terrorismo, a Unidad de Información Financiera, órgão similar ao COAF, poderá decretar o bloqueio administrativo de bens, direitos ou valores relacionados com tal crime, devendo imediatamente comunicar o congelamento ao juiz competente. Entre nós, há um anteprojeto com objetivo similar, resultado da ação 5 da ENCCLA 2010: “Desenvolver mecanismos para realizar o bloqueio de ativos por financiamento do terrorismo, em cumprimento às resoluções do Conselho de Segurança da ONU, especialmente as Resoluções 1267, 1373 e 1452“. Aqui a competência administrativa seria do Ministério da Justiça.

As recentes modificações na normativa antiterrorismo da Argentina não se restringiram ao campo penal propriamente dito. Com a nova lei, foram estendidas ao crime de terrorismo regras processuais que permitem:

a) a propositura de ações penais contra pessoas jurídicas, nos termos do art. 304 do CP, tal como ocorre com o crime de lavagem de dinheiro desde a reforma promovida pela Lei 26.683/2011. No Brasil, somente existe ação penal contra pessoas jurídicas em caso de crimes ambientais, na forma da Lei 9.605/98;

b) a colaboração premiada, com base na Lei 25.241/2000, que regula a delação nos casos de terrorismo em geral. No cenário brasileiro, não haveria dificuldade em aplicar norma semelhante, em função da Lei 9.807/99, que dispõe sobre o programa de proteção a vítimas, testemunhas e ao réu colaborador; e

c) a extinção de domínio, nos termos do art. 305 do CP, tal como se dá com o crime de lavagem de dinheiro desde a reforma promovida pela Lei 26.683/2011. Assim, em casos de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo, pode ser decretado o perdimento definitivo dos instrumentos do crime, de seu produto ou proveito, sem necessidade de condenação penal, quando for possível provar a ilicitude de sua origem e o suspeito não puder ser criminalmente processado em função de sua morte ou fuga, da prescrição, de outra causa extintiva de punibilidade; ou ainda quando o réu confessar a procedência ou o uso ilícito dos ativos. Por aqui, isto ainda é novidade. Há um anteprojeto para criação da ação civil pública de extinção de domínio, fruto da ação 16 da Enccla 2010, que em muito se assemelha a institutos do direito colombiano e estadunidense.

Em suma, o Brasil mais uma vez está em mora com um tema essencial. A sociedade e o Congresso Nacional devem discutir urgentemente se precisamos, ou não, de uma legislação antiterror. Afinal, terroristas para uns são heróis para outros. Creio que não estamos estruturalmente preparados para prevenir nem para reprimir ataques terroristas planejados ou aleatórios. O País já é um importante ator na cena mundial e nossas deficiências orgânicas, jurídicas e de infra-estrutura tornam-nos atraentes para organizações terroristas. Imagino que não queiramos ser palco de uma tragédia. Nem só de sorte vivem as nações.

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