Por Vladimir Aras
Algumas organizações da sociedade civil reclamaram da suposta ligeireza com que a Câmara dos Deputados pautou e votou o PL 2.016/2015, que tipifica o crime de terrorismo e seu financiamento e dá outras providências.
Na verdade, o tema vem sendo discutido no Congresso Nacional há alguns anos, em várias instâncias. O regime de urgência atribuído à tramitação do PL 2.016/2015 não é fruto de agenda totalitária ou conservadora. A urgência foi solicitada pela presidência da República, que apresentou o projeto, pois o País está em mora internacional e o governo a reconhece. Somos o único país do G-20 a não ter legislação antiterror.
O projeto 2.016/2015 foi aprovado em 13/ago na Câmara dos Deputados e agora vai ao Senado. Basicamente, o novo diploma:
a) conceitua terrorismo e atos de terrorismo (art. 2º)
b) tipifica o crime de terrorismo, com penas de 12 a 30 anos (art. 2º, §1º)
c) cria causa de excludente de ilicitude relacionado ao direito de protesto e reivindicação (art. 2º, §2º)
d) tipifica o crime de associação em organização terrorista, inclusive o recrutamento de terroristas, com penas de 5 a 8 anos reclusão e multa (art. 3º)
e) tipifica o crime de favorecimento pessoal (art. 3º, §1º)
f) tipifica o crime de apologia a ato terrorista ou a seu autor (art. 4º) e de incitação ao terrorismo (§1º), inclusive por meio da Internet (§2º)
g) pune atos preparatórios de conduta terrorista (art. 5º)
h) tipifica o recrutamento de terroristas e o treinamento de terroristas (art. 5º, §1º)
i) tipifica o crime de financiamento do terrorismo (art. 6º)
j) institui causas especiais de aumento de pena (arts. 7º e 8º)
k) prevê a competência federal (art. 11).
l) prevê medidas cautelares sobre ativos vinculados a atividades terroristas e a possibilidade de alienação antecipada de bens bloqueados e de nomeação de administrador provisório (arts. 12 a 14)
m) admite a cooperação internacional com base em tratados e em promessa de reciprocidade e estipula regra geral de partilha de ativos (asset sharing) (art. 15).
n) determina a aplicação das regras da Lei 12.850/2013 para a investigação e processo de crimes previstos na Lei Antiterror e altera o conceito de organização terrorista daquela lei (art. 16).
o) determina a aplicação da Lei 8.072/1990 aos crimes previstos na Lei Antiterror (art. 17)
p) altera a Lei 7.960/1989 para admitir a prisão temporária nos crimes da Lei Antiterror (art. 18).
Não foi feliz a Câmara dos Deputados na definição do crime de terrorismo. Há consenso quanto à dificuldade de conceituar o ato terrorista. Por um lado, o tipo não abrange com clareza todas as condutas potencialmente terroristas previstas no conjunto de tratados firmados pelo Brasil, que dizem respeito a ações, individuais ou não, que visam atacar agentes diplomáticos e dignitários estrangeiros, a segurança da aviação civil, a segurança da navegação marítima, realizar atentados nucleares ou com bombas ou tomar reféns.
Por outro lado, a lei emprega conceitos jurídicos indeterminados, como as expressões “terror social” e “terror generalizado”, cuja dubiedade pode ampliar demasiadamente a possibilidade de adequação típica. Nesta mesma linha, o projeto deixa de exigir a coação sobre o Estado ou organização nacional, que, em alguns contextos, contribuiria para maior precisão do tipo penal.
Há ainda uma terrível cacofonia na expressão “por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião“. Neste mesmo trecho, a falta da motivação política ou ideológica enfraquece o tipo penal e deixa lacunas relevantes que podem levar à atipicidade de condutas claramente terroristas. A solução seria ampliar a enunciação desses motivos, ou suprimi-los todos, com o que o texto ganharia maior semelhança com a estrutura do delito básico de terrorismo, previsto no art. 421-1 do Code pénal francês.
Além disso, atentados à liberdade individual e contra a liberdade sexual não aparecem como atos de terrorismo, o que mantém atípica a tomada de reféns e não submete ao alcance da lei estupros coletivos quando tenham cunho terrorista, já que o inciso V do art. 2º, §1º só se refere a atentados à vida e à integridade física de pessoa.
Eis a redação aprovada pela Câmara dos Deputados, ainda sujeita a revisão do Senado:
Art. 2º O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública.
§ 1º São atos de terrorismo:
I – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos, químicos, nucleares ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição em massa;
II – incendiar, depredar, saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado;
III – interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática ou bancos de dados;
IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com violência, grave ameaça a pessoa ou servindo-se de mecanismos cibernéticos, do controle total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meio de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia, instalações militares, instalações de exploração, refino e processamento de petróleo e gás e instituições bancárias e sua rede de atendimento;
V – atentar contra a vida ou a integridade física de pessoa:
Pena – reclusão, de doze a trinta anos, além das sanções correspondentes à ameaça ou à violência.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei.
A segunda falha substancial está no artigo 11 do projeto. Segundo o texto, o julgamento da ação penal será de competência da Justiça Federal (art. 11), sujeitos à investigação da Polícia Federal, com a coordenação estratégica e operacional do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.
Art. 11. Para todos os efeitos legais, considera-se que os crimes previstos nesta Lei são praticados contra o interesse da União, cabendo à Polícia Federal a investigação criminal, em sede de inquérito policial, e à Justiça Federal o seu processamento e julgamento, nos termos do inciso IV do art. 109 da Constituição Federal.
Parágrafo único. Fica a cargo do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República a coordenação dos trabalhos de prevenção e combate aos crimes previstos nesta Lei, enquanto não regulamentada pelo Poder Executivo.
A redação é excessiva. Bastaria dizer no caput do art. 11 que “O julgamento dos crimes previstos nesta lei é de competência da Justiça Federal“. Ponto. Ademais, ao afirmar que cabe “à Polícia Federal a investigação criminal, em sede de inquérito policial” (sic), o legislador ignorou a decisão do STF, proferida em maio de 2015, no RE 593.727/MG, quando foi reconhecido o poder investigatório do Ministério Público, para a realização de apurações criminais.
Segundo o projeto, as técnicas especiais de investigação (ou meios especiais de obtenção de provas) previstas na Lei 12.850/2013 podem ser utilizadas para a investigação de atos terroristas e organizações terroristas. Isto significa que a Polícia e o Ministério Público Federal poderão valer-se de infiltração policial, escuta ambiental, interceptação telefônica, ações controladas, acordos de colaboração premiada e requisição de dados para investigar esses crimes.
Para ressalvar protestos legítimos de cidadãos e movimentos sociais, há uma cláusula genérica de exclusão do crime no §2º do art. 2º do projeto:
§2º O disposto neste artigo não se aplica à conduta individual ou coletiva de pessoas em manifestações políticas, movimentos sociais, sindicais, religiosos, de classe ou de categoria profissional, direcionados por propósitos sociais ou reivindicatórios, visando a contestar, criticar, protestar ou apoiar, com o objetivo de defender direitos, garantias e liberdades constitucionais, sem prejuízo da tipificação penal contida em lei”.
Na Argentina (O terror argentino), o parágrafo do artigo 41-quinquies do CP (inserido em 2011) veda a incidência da causa especial de aumento em razão de terrorismo quando a conduta disser respeito ao exercício de direitos humanos e/ou sociais ou de qualquer outro direito constitucional. Tal regra destina-se a proteger movimentos sociais contra a utilização do direito penal para reprimi-los, um justo receio que também ecoa nas discussões brasileiras sobre este tema:
ARTICULO 41 quinquies — Cuando alguno de los delitos previstos en este Código hubiere sido cometido con la finalidad de aterrorizar a la población u obligar a las autoridades públicas nacionales o gobiernos extranjeros o agentes de una organización internacional a realizar un acto o abstenerse de hacerlo, la escala se incrementará en el doble del mínimo y el máximo.
Las agravantes previstas en este artículo no se aplicarán cuando el o los hechos de que se traten tuvieren lugar en ocasión del ejercicio de derechos humanos y/o sociales o de cualquier otro derecho constitucional.
Solução semelhante à adotada por Argentina e Brasil foi rechaçada no México, com o argumento de que, independentemente do que disser a lei, a Constituição protege a liberdade de manifestação do pensamento e os protestos e reivindicações sociais.
Por que esse projeto tramita em regime de urgência? Entre outros motivos, a tramitação acelerada deriva da possibilidade de o Brasil, após sucessivas advertências internacionais, no mecanismo de peer review, vir a ser inserido em lista suja em outubro de 2015, durante a sessão plenária do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI). O GAFI ou Finantial Action Task Force (FATF) é um organismo intergovernamental ligado ao G-8, que reúne várias democracias plurais que já criminalizaram o terrorismo e seu financiamento.
Um comitê de alto nível do GAFI esteve em Brasília em abril de 2015 e visitou o Ministro da Justiça, o Ministro da Fazenda, a Câmara dos Deputados, o Senado e o Procurador-Geral da República, para solicitar o cumprimento pelo Brasil da Recomendação do GAFI sobre a criminalização do terrorismo e seu financiamento. Desde 2012, com a nova edição de suas 40 Recomendações, o GAFI se ocupa da promoção de medidas de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro, ao terrorismo e seu financiamento e à proliferação de armas de destruição em massa.
A Recomendação n. 5 diz:
Crime de financiamento do terrorismo. Os países deveriam criminalizar o financiamento do terrorismo com base na Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo, e criminalizar não apenas o financiamento de atos terroristas, mas também o financiamento de organizações terroristas e terroristas individuais, mesmo na ausência de relação com um ato ou atos terroristas específicos. Os países deveriam garantir que tais crimes sejam considerados crimes antecedentes da lavagem de dinheiro.
A inclusão do país em lista suja, técnica de naming and shaming, pode ser prejudicial à economia brasileira, por contribuir para o isolamento do sistema financeiro nacional, dificultando trocas comerciais no mercado externo. Não só isso: o princípio pacta sunt servanda nos compele, uma vez que o Brasil é parte de mais de uma dezena de tratados antiterror, que formam um complexo e amplo regime global de proibição, que ora relaciono:
1. 1963 Convention on Offences and Certain Other Acts Committed On Board Aircraft (Aircraft Convention) ou Convenção relativa às infrações e a certos outros atos cometidos a bordo de aeronaves, assinada em Tóquio em 1963 e promulgada pelo Decreto 66.520/1970.
2. 1970 Convention for the Suppression of Unlawful Seizure of Aircraft (Unlawful Seizure Convention) ou Convenção para a Repressão ao Apoderamento Ilícito de Aeronaves, assinada em Montreal em 16 de dezembro 1970 e promulgada pelo Decreto 70.201/1972.
2.1. 2010 Protocol Supplementary to the Convention for the Suppression of Unlawful Seizure of Aircraft, concluído em Pequim em 2010 e ainda não ratificado.
3. 1971 Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety of Civil Aviation (Civil Aviation Convention) ou Convenção para a Repressão aos Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, feita em Montreal, em 23 de setembro de 1971 e promulgada pelo Decreto 72.383/1973.
4. 1973 Convention on the Prevention and Punishment of Crimes Against Internationally Protected Persons (Diplomatic Agents Convention) ou Convenção sobre a Prevenção e Punição de Crimes contra Pessoas que Gozam de Proteção Internacional, inclusive Agentes Diplomáticos, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York, em 14 de dezembro de 1973 e promulgada pelo Decreto 3.167/1999.
5. 1979 International Convention against the Taking of Hostages (Hostages Convention) ou Convenção Internacional contra a Tomada de Reféns, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 17 de dezembro de 1979, em Nova York e promulgada pelo Decreto 3.517/2000.
6. 1980 Convention on the Physical Protection of Nuclear Material (Nuclear Materials Convention) ou Convenção sobre a Proteção Física do Material Nuclear, adotada em Viena em 3 de março de 1980 e promulgada pelo Decreto 95/1991.
7. 1988 Protocol for the Suppression of Unlawful Acts of Violence at Airports Serving International Civil Aviation, supplementary to the Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety of Civil Aviation (Extends and supplements the Montreal Convention on Air Safety) (Airport Protocol) ou Protocolo para a Repressão de Atos Ilícitos de Violência nos Aeroportos que Prestem Serviço à Aviação Civil Internacional, complementar à Convenção para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, concluído em Montreal, em 24 de fevereiro de 1988 e promulgado pelo Decreto 2.611/1998.
8. 1988 Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety of Maritime Navigation (Maritime Convention or SUA Convention) ou Convenção para a Supressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Navegação Marítima, feita em Roma, em 10 de março de 1988 e promulgada pelo Decreto 6.136/2007.
8.1. 2005 Protocol to the Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety of Maritime Navigation, concluído em Londres em 2005 e ainda não ratificado.
9. 1988 Protocol for the Suppression of Unlawful Acts Against the Safety of Fixed Platforms Located on the Continental Shelf (Fixed Platform Protocol) ou Protocolo para a Supressão de Atos Ilícitos contra a Segurança de Plataformas Fixas localizadas na Plataforma Continental, feito em Roma em 10 de março de 1988, e promulgado pelo Decreto 6.136/2007.
9.1. 2005 Protocol to the Protocol for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety of Fixed Platforms Located on the Continental Shelf, concluído em Londres em 2005 e ainda não ratificado.
10. 1991 Convention on the Marking of Plastic Explosives for the Purpose of Detection (Plastic Explosives Convention) ou Convenção sobre a Marcação de Explosivos Plásticos para Fins de Detecção, concluída em Montreal em 1991 e promulgada pelo Decreto 4.021/2001.
11. 1997 International Convention for the Suppression of Terrorist Bombings (Terrorist Bombing Convention) ou Convenção Internacional sobre a Supressão de Atentados Terroristas com Bombas, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 15 de dezembro de 1997, em Nova York e promulgada pelo Decreto 4.394/2002.
12. 1999 International Convention for the Suppression of the Financing of Terrorism (Terrorist Financing Convention), ou Convenção Internacional para a Supressão do Financiamento do Terrorismo, concluída em Nova York em 1999 e promulgada pelo Decreto 5.640/2005.
13. 2005 International Convention for the Suppression of Acts of Nuclear Terrorism (Nuclear Terrorism Convention), ou Convenção Internacional para a Supressão de Atos de Terrorismo Nuclear, concluída em Nova York em 2005 e aprovada pelo Decreto Legislativo 267/2009 e ainda não ratificada.
14. 2010 Convention on the Suppression of Unlawful Acts Relating to International Civil Aviation (New civil aviation convention), assinada em Pequim em 2010 e ainda não ratificada.
15. Arms Trade Treaty (ATT), Tratado sobre o Comércio de Armas, concluído em Nova York em 2013 e ainda não ratificado pelo Brasil.
16. Convenção Interamericana contra o Terrorismo (Convenção de Barbados), concluída em Barbados em 2002 e promulgada pelo Decreto 5.639/2005.
Como se vê, essas convenções, patrocinadas por diferentes organizações internacionais, como as Nações Unidas (ONU), a Organização de Aviação Civil Internacional (OACI), a Organização Marítima Internacional (OMI), a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) e a Organização dos Estados Americanos (OEA), conformam um subsistema universal para a criminalização de todas as formas de terrorismo, que vem sendo edificado desde os anos 1960.
Esses fatores externos levaram o governo a mexer-se, sem qualquer clamor público, como “normal e infelizmente” ocorre em temas de criminalização. O fato é que o cumprimento dos tratados e das recomendações do GAFI, assim como das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas (vide o projeto de lei 2020/2015), está na agenda nacional há cerca de uma década, inclusive na Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Ativos (ENCCLA). Há vários projetos de lei no Congresso. Em 2013, durante os protestos populares, foi exaustivamente debatido. Não há surpresa alguma com o andamento do projeto 2.016/2015 no Legislativo. Não se pode ignorar que a Constituição Federal (artigo 5º, XLIII) estabelece mandado de criminalização do terrorismo desde 1988. São 27 anos:
“XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”
Tampouco se pode esquecer que a República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelo princípio do repúdio ao terrorismo (art. 4º, VIII, CF).
Por isso, o Congresso tem-se debruçado sobre o tema. O PLS 236/2012, que institui o novo Código Penal, também prevê a criminalização do terrorismo e seu financiamento. Situa os tipos entre os delitos contra a paz pública, nos futuros arts. 245 a 248:
Terrorismo
Art. 245. Causar terror na população mediante as seguintes condutas:
I – sequestrar ou manter alguém em cárcere privado, ou ameaçar de morte ou lesão pessoas, ainda que indeterminadas;
II – usar ou ameaçar usar, transportar, guardar, portar ou trazer consigo explosivos, gases tóxicos, venenos, conteúdos biológicos ou químicos ou outros meios capazes de causar danos ou promover destruição ou ofensa massiva ou generalizada;
III – usar, liberar ou disseminar toxinas, agentes químicos, biológicos, radiológicos ou nucleares, ou outros meios capazes de causar danos à saúde ou ao meio ambiente;
IV – incendiar, depredar, saquear, explodir ou invadir qualquer bem público ou privado;
V – interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática e bancos de dados;
IV – sabotar o funcionamento ou apoderar-se, com grave ameaça ou violência a pessoas, do controle, total ou parcial, ainda que de modo temporário, de meios de comunicação ou de transporte, de portos, aeroportos, estações ferroviárias ou rodoviárias, hospitais, casas de saúde, escolas, estádios esportivos, instalações públicas ou locais onde funcionem serviços públicos essenciais, instalações de geração ou transmissão de energia e instalações militares:
Pena – prisão, de oito a quinze anos, além das sanções correspondentes à violência, grave ameaça ou dano.
§ 1º Somente se configura o crime descrito no caput quando a conduta:
I – for praticada para forçar autoridades públicas, nacionais ou estrangeiras, ou pessoas que ajam em nome delas, a fazer o que a lei não exige ou deixar de fazer o que a lei não proíbe;
II – tiver por objetivo a obtenção de recursos para a manutenção de organizações políticas ou grupos armados, civis ou militares, que atuem contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; ou
III – for motivada por preconceito de raça, cor, etnia, religião, nacionalidade, origem, condição de pessoa idosa ou com deficiência, ou por razões políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas.
Exclusão de crime
§ 2º Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade.
O fim especial de agir previsto no art. 245, §1º, do PLS 236/2012 parece adequada para a construção de um tipo menos aberto. Esta é uma das principais deficiências do PL 2.016/2015, projeto sobre o qual a ANPR, invocando outras razões, apresentou esta nota técnica contrária.
A legislação antiterrorista espanhola segue essa mesma linha e exige um fim especial de agir. É o que se vê do art. 573 do CP da Espanha:
Artículo 573. 1. Se considerarán delito de terrorismo la comisión de cualquier delito grave contra la vida o la integridad física, la libertad, la integridad moral, la libertad e indemnidad sexuales, el patrimonio, los recursos naturales o el medio ambiente, la salud pública, de riesgo catastrófico, incendio, contra la Corona, de atentado y tenencia, tráfico y depósito de armas, municiones o explosivos, previstos en el presente Código, y el apoderamiento de aeronaves, buques u otros medios de transporte colectivo o de mercancías, cuando se llevaran a cabo con cualquiera de las siguientes finalidades:
1.ª Subvertir el orden constitucional, o suprimir o desestabilizar gravemente el funcionamiento de las instituciones políticas o de las estructuras económicas o sociales del Estado, u obligar a los poderes públicos a realizar un acto o a abstenerse de hacerlo.
2.ª Alterar gravemente la paz pública.
3.ª Desestabilizar gravemente el funcionamiento de una organización internacional.
4.ª Provocar un estado de terror en la población o en una parte de ella.
A Lei de Combate ao Terrorismo, de Portugal (Lei 52/2003), não destoa dessa orientação. Define como o grupo, organização ou associação terrorista todo agrupamento de duas ou mais pessoas que, atuando concertadamente, “visem prejudicar a integridade e a independência nacionais, impedir, alterar ou subverter o funcionamento das instituições do Estado previstas na Constituição, forçar a autoridade pública a praticar um acto, a abster-se de o praticar ou a tolerar que se pratique, ou ainda intimidar certas pessoas, grupos de pessoas ou a população em geral”, mediante certas condutas que lista.
Embora o projeto 2.016/2015 não seja o melhor, já passou da hora de o Legislativo cumprir os tratados que o Brasil firmou. Prevenir e reprimir atentados terroristas é também uma agenda de direitos humanos. O foco dos projetos de criminalização não é punir movimentos pacíficos, nem protestos ou reivindicações sociais, mas sim sancionar aquelas condutas que usam a violência contra a vida ou infraestruturas críticas (aeroportos, portos, usinas etc) para provocar terror e alcançar seus objetivos, sem respeito aos mecanismos democráticos.
O terrorismo é uma das práticas mais antidemocráticas que pode existir. Em todas as democracias ocidentais esse tipo penal foi instituído. As razões? Basta lembrar os episódios de terrorismo político, religioso, de Estado e narcoterrorismo que marcaram e ainda marcam a história de países como França, Alemanha, Itália, Irlanda, Espanha, Noruega e Colômbia.
Parece necessário que o País esteja preparado para prevenir e punir, se necessário, o terrorismo jihadista ou a atuação de foreign fighters, combatentes recrutados no Ocidente e treinados no Oriente Médio para atuação como lobos solitários quando retornam a suas nações de origem. Embora, durante o atual período democrático nunca tenha havido atos terroristas no Brasil, é seguro dizer que não estamos imunes ao fenômeno e devemos ser capazes de cooperar com outras nações quando seja preciso.
Como a situação dos movimentos sociais já foi observada no texto do PL 2.016/2015, o problema fundamental do projeto está na largueza do tipo penal. Contudo, não me parece adequado adotar postura de negação do fenômeno, cuja conceituação é difícil, e fechar os olhos para um problema que já atingiu várias democracias e que é palpável hoje em várias partes do globo. Abaixo cito duas dezenas de eventos terroristas que marcaram o mundo nas últimas quatro décadas:
Alemanha: atentado nas Olimpíadas de Munique em 1972
Índia: atentado a um hotel e à bolsa de valores de Mumbai, em 1993
Escócia: atentato de Lockerbie, que resultou na queda do voo 103 da PanAm, em 1988
Argentina: atentado contra a AMIA em 1994
Japão: atentado ao metrô de Tóquio com gás sarin, em 1995
Iêmen: atentado ao destroyer USS Cole, nas águas de Áden em 2000
Estados Unidos: atentados em Nova York e Washington, em 11 de setembro de 2001
Indonésia: atentado a bares e boates em Bali em 2002
Turquia: atentados a sinagogas em 2003
Espanha: atentado à estação Atocha, em Madri, em 11 de março 2004
Rússia: atentado a uma escola em Beslan, por terroristas chechenos em 2004
Inglaterra: atentado ao metrô de Londres em 2005
Argélia: atentado à sede do Acnur, em Argel em 2007
Holanda: tentativa de atentado ao voo Northwest Airlines 253, que partiu de Amsterdã rumo a Detroit em 2009
Noruega: atentados em Oslo e Utoya (2011)
Quênia: atentado a shopping center em Nairobi em 2013
Nigéria: sequestro de meninas nigerianas pelo Boko Haram (As meninas da Nigéria) em 2014
França: atentado ao jornal Charlie Hebdo, em Paris, em 2015
Tunísia: atentado num hotel, em 2015
Síria: massacres generalizados comandados pelo Estado Islâmico, em 2014 e 2015
Estes atentados e massacres representam inquestionavelmente graves ofensas a direitos humanos, tendo sido praticados por motivação ideológica, religiosa, por xenofobia ou discriminação. Uma lei antiterror brasileira não servirá para “pegar” simples manifestantes. A objetividade jurídica é outra, bem diversa. Ademais, com a previsão da competência federal para julgamento desses crimes, não está a cargo dos governos estaduais o manejo da lei que vier a ser sancionada.
Isto não que dizer que o Legislativo não precise aperfeiçoar o texto do projeto para que venha uma lei adequada, abrangente e constitucional.