Direito internacional

O privilégio da embaixatriz

O crime teria sido cometido a mando do primeiro-secretário da embaixada haitiana em Brasília, Louis Robert Mackenzie. Dois brasileiros, executores do crime, foram presos.

Por Vladimir Aras

O representante grego não foi o único. Outro diplomata foi assassinado no Brasil. O embaixador Delorme Mehu, do Haiti, foi morto a tiros no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. O crime teria sido cometido a mando do primeiro-secretário da embaixada haitiana em Brasília, Louis Robert Mackenzie. Dois brasileiros, executores do crime, foram presos.

Isto ocorreu em julho de 1977, há quase 40 anos. Foi um crime que mexeu com a capital baiana. Em 1978, os dois pistoleiros brasileiros foram condenados pelo tribunal do júri de Salvador. O mandante retornou a Porto Príncipe. Não há informações sobre se foi levado a julgamento.

Neste mês de dezembro de 2016, em Nova Iguaçu/RJ, a embaixatriz grega Françoise Amiridis tornou-se suspeita de coautoria na morte de seu marido, o embaixador da Grécia no Brasil, Kyriakos Amiridis. Teria sido um crime passional.

A Polícia Civil do Rio de Janeiro realizou uma investigação exemplar e desvendou o crime em poucos dias. Supõe-se que a embaixatriz teria concorrido para o crime, com seu suposto amante, um policial militar fluminense.

Duas questões procedimentais se colocam, quanto à competência para o julgamento e às garantias processuais especiais a que tem direito um dos investigados, a própria embaixatriz.

Competência federal ou estadual

O fato de a vítima ser uma autoridade estrangeira não atrai a competência da Justiça Federal. Não há regra expressa quanto a isto no art. 109 da Constituição.

Pode-se argumentar com a existência de aparente “interesse federal“, já que crimes contra representantes diplomáticos podem de algum modo abalar relações bilaterais, neste caso as greco-brasileiras. Diplomatas são pessoas especialmente protegidas. O Estado acreditado é responsável por sua segurança.

Neste sentido, membros de missões diplomáticas poderiam ser equiparados, por interpretação pretoriana, a servidores públicos federais, para definição da competência federal. No entanto, pelas circunstâncias em que o crime contra o embaixador grego ocorreu, não é simples sustentar tal tese, pois a conduta criminosa não foi praticada propter officium. Prevalece mesmo a competência estadual.

Assim, caberá ao tribunal do júri de Nova Iguaçu julgar esse homicídio qualificado.

Condição de procedibilidade da persecução penal

Outra questão, mais complexa, diz respeito à falta de uma condição de procedibilidade da ação penal, situação que também pode ser lida como imunidade de jurisdição. Tal questão se coloca na perspectiva da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, de 1961, promulgada no Brasil pelo Decreto 56.435, de 1965.

Em regra, os agentes diplomáticos, especialmente os embaixadores como chefes de missão, gozam de inviolabilidade pessoal, domiciliar, de seus bens e de suas comunicações e imunidade de jurisdição (art. 31.1 da Convenção de 1961). Na forma do art. 31.4 da Convenção, o diplomata está sempre sujeito à jurisdição do Estado acreditante, ou seja, a julgamento no país para o qual trabalha. É um caso convencional de extraterritorialidade da lei penal do país que envia.

Neste sentido, o art. 5º do Código Penal, ao tratar do princípio da territorialidade, estabelece que a lei penal brasileira aplica-se ao crime cometido no território nacional, mas ressalva os tratados, as convenções e as regras de direito internacional.

No Código de Processo Penal, a ressalva do direito internacional está no art. 1º, inciso I.

É preciso perceber, no entanto, que pode haver renúncia, desde que expressa, a essa imunidade, que pode ser declarada pelo Estado acreditante, nos termos do art. 32.1 da Convenção de 1961. A renúncia pode dizer respeito tanto aos agentes diplomáticos quanto às pessoas que gozam de imunidade nos termos do art. 37 do tratado, ente os quais estão os familiares do chefe da missão.

Portanto, se um diplomata comete crime no país onde trabalha, não fica sujeito à jurisdição local. Logo, não pode ser ali processado.

A embaixatriz é imune à jurisdição penal brasileira?

O tema já se coloca agora, pois a Polícia Civil “representou” pela decretação da prisão temporária da embaixatriz Françoise Amiridis, suspeita de homicídio qualificado e ocultação de cadáver, e realizou busca e apreensão em um imóvel alugado pelo casal em Nova Iguaçu.

A embaixatriz foi presa, como noticiam os jornais.

Na forma do art. 37.1 da Convenção de Viena de 1961, “os membros da família de um agente diplomático que com êle vivam gozarão dos privilégios e imunidade mencionados nos artigos 29 e 36, desde que não sejam nacionais do estado acreditado“.

Há um erro de transcrição no texto em português constante do site oficial http://www.planalto.gov.br. Onde se lê “artigos 29 e 36” leia-se “artigos 29 a 36”. É fácil perceber o equívoco examinando os textos originais em francês e inglês:

 

 

Art. 37.1. Les membres de la famille de l’agent diplomatique qui font partie de son ménage bénéficient des privilèges et immunités mentionnés dans les art. 29 à 36, pourvu qu’ils ne soient pas ressortissants de l’Etat accréditaire.

 

 


Article 37.1.The members of the family of a diplomatic agent forming part of his household shall, if they are not nationals of the receiving State, enjoy the privileges and immunities specified in articles 29 to 36.


A existência dos privilégios e imunidades para os membros da família do agente diplomático, entre eles a embaixatriz, depende da nacionalidade daqueles.

Logo, se a embaixatriz suspeita for estrangeira ou se tiver perdido a nacionalidade brasileira, terá as imunidades diplomáticas mencionadas nos arts. 29 a 36 do tratado.

Porém, se a esposa do embaixador for brasileira, nata ou naturalizada, não terá direito a tais imunidades e privilégios, que são estabelecidas pela Convenção no interesse do Estado estrangeiro.

Vejamos a questão à luz do direito internacional. Segundo o art. 29 da Convenção de Viena de 1961, “a pessoa do agente diplomático é inviolável. Não poderá ser objeto de nenhuma forma de detenção ou prisão“, o que abrange prisões em flagrante, a prisão temporária, a prisão preventiva ou a prisão decorrente de condenação executável.

Conforme o artigo 30, a residência particular do agente diplomático goza da mesma inviolabilidade e proteção que os locais da missão. Seus documentos, sua correspondência e seus bens também merecem tal proteção. Essa imunidade se estende aos familiares do chefe da missão que com ele residam (art. 37.1). Diz o art. 22, parágrafos 1 e 3, da Convenção que os locais da missão são invioláveis e não podem ser objeto de busca. Logo, a residência particular dos familiares do embaixador também é um local protegido, equiparando-se aos locais da missão, observada a cláusula de nacionalidade. O Estado que envia o embaixador pode renunciar a esses privilégios.

De acordo com o art. 31.1 do tratado, o agente diplomático goza de imunidade de jurisdição penal no Estado acreditado. No caso concreto, o Estado acreditado é o Brasil. Desde que são sejam nacionais do país que recebe, esta imunidade também se estende aos familiares do agente diplomático, na forma do art. 37.1 e também é renunciável.

Não havendo renúncia pelo Estado acreditante, a imunidade não se extingue nem com a morte do membro da missão. Seus familiares continuam no gozo dos privilégios e imunidades por um prazo razoável (art. 39.3), isto é, por tempo suficiente para deixarem o território do Estado acreditado.

Assim, se a embaixatriz suspeita não tivesse – como parece ter –nacionalidade brasileira, não poderia ser presa, sequer por ordem do juiz competente. Vale dizer, o cônjuge ou companheiro estrangeiro de um/a embaixador/a de outro país que sirva no Brasil não poderá sofrer busca e apreensão, nem ter os seus sigilos bancário, fiscal, telefônico e telemático afastados em investigação criminal ou processo penal. Em suma, não poderá ser submetido a nenhuma medida de persecução penal, a menos que ocorra o disposto no art. 32.1 da Convenção, isto é, a menos que a República da Grécia renuncie expressamente a tal imunidade.

A renúncia se perfaz mediante comunicação formal ao Ministério das Relações Exteriores, que deve levar o fato ao conhecimento do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Se tal renúncia não ocorrer, somente a Grécia terá jurisdição para a persecução penal da embaixatriz. Essa situação pessoal não se estende a eventuais coautores que não gozem de tais imunidades. Diz o art. 30 do Código Penal que “não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”.

Por outro lado, se a embaixatriz suspeita for brasileira, como parece ser, poderá ser presa temporária ou preventivamente, sujeita-se a qualquer medida de investigação e pode responder a processo penal regular no Brasil, como qualquer cidadão. Não haverá necessidade de renúncia. Paralelamente, o Ministério Público da Grécia poderá realizar sua persecução, se admitida a extraterritorialidade da lei penal grega nessas circunstâncias.

Outros episódios nada diplomáticos

Na história recente do Brasil, vários crimes envolveram autoridades diplomáticas e consulares, como autores ou vítimas. O primeiro da sequência que apresento foi o crime que tirou a vida do embaixador Delorme Mehu, do Haiti, em 1977.

Em janeiro de 1997, Gueorgui Makharadze, diplomata georgiano dirigia em alta velocidade em Washington e acabou matando Joviane Waltrick, uma adolescente brasileira. Estava bêbado. O governo da Geórgia renunciou à imunidade, o referido diplomata foi processado pela Procuradoria dos Estados Unidos e acabou aceitando o acordo penal que lhe foi ofertado.
Em 2010, o vice-cônsul da República Portuguesa no Rio Grande do Sul, Adelino de Assunção Nobre de Melo Vera Cruz Pinto foi acusado de aplicar um golpe de 2,5 milhões de reais contra a Arquidiocese de Porto Alegre. Denunciado por estelionato, Adelino Pinto fugiu para Portugal, onde também é réu. Diferentemente dos diplomatas, os cônsules só gozam de imunidade para os atos de ofício, conforme a Convenção de Viena de 1963.

Em 2012, o diplomata iraniano Hekmatollah Ghorbani foi acusado de tentativa de crime sexual contra quatro meninas num clube em Brasília. Não houve renúncia pela República Islâmica do Irã, e o diplomata retornou a Teerã.

Em maio de 2015, Jesús Figón Leo, membro do corpo diplomático espanhol e lotado em Brasília, confessou ter matado sua esposa Rosemary Justino Lopes em Vitória. O Reino da Espanha, como Estado acreditante, renunciou parcialmente à imunidade de jurisdição, o que permitiu o início da persecução penal perante a Vara do Júri da capital do Estado do Espírito Santo. O réu ainda não foi julgado. Sua tese é de legítima defesa.

Contei aqui no Blog (“Nem vem que não tem”) que, no Rio de Janeiro em 2011, a imunidade diplomática foi usada como estratégia para facilitar a fuga de Antônio Francisco Bonfim Lopes, o “Nem“. Os bandidos, suspeitos de narcotráfico, usaram um carro com placas diplomáticas da República Democrática do Congo. Felizmente não funcionou. Os policiais militares foram mais espertos. O governo nem precisou pagar a recompensa prometida pela prisão do suposto “diplomata” congolês. 

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