Por Vladimir Aras
Radhabinod Pal (1886-1967) foi um dos 11 juízes responsáveis por julgar um dos mais importantes processos penais da história do direito internacional. Pal é também o personagem mais interessante de “Tokyo Trial” (O julgamento de Tóquio), série lançada em dez/2016 pela Netflix, que aborda as dificuldades, dilemas e interesses em jogo no procedimento decisório do Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente (International Military Tribunal for the Far East).
Seu extenso voto divergente de mais de mais de 1.2oo páginas traz todas as inquietações de Pal sobre o imperialismo, as razões da guerra e sobre a própria legitimidade do Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente. Suas perplexidades jurídicas e históricas são bem retratadas na série, que tem o ator indiano Irrfan Khan, em ótima performance no papel de Pal.
Reverenciado no Japão pela forma independente como atuou na corte, Pal explicaria anos depois, em visita a Tóquio: “Não votei por simpatia ao Japão ou por ódio ao Ocidente. Defendi aquilo que acreditava ser correto e justo, nem mais nem menos“.
Pal nasceu na Índia, no território do atual Bangladesh, durante o domínio colonial inglês. Magistrado da corte de apelação de Calcutá, em 1946, Pal foi convidado a integrar o Tribunal Internacional Militar para o Extremo Oriente. Não podia recusar a designação. Somente três países asiáticos compunham a Corte: Índia, Filipinas e China.
Há 71 anos, em 19 de janeiro de 1946, o general Douglas MacArthur criou formalmente o tribunal especial de Tóquio (para alguns, um tribunal de exceção) e aprovou o seu regimento interno (Charter of the International Military Tribunal for the Far East). Uma das consequências da rendição, a Corte teria competência para julgar os crimes de guerra cometidos por oficiais militares e políticos japoneses de alta hierarquia durante a 2ª Guerra Mundial.
Inspirado no Tribunal de Nuremberg, instalado na Alemanha em novembro de 1945 para decidir a sorte dos chefes nazistas, o Tribunal do Extremo Oriente também foi constituído ex post factum (depois dos fatos que lhe caberia julgar) pelas nações aliadas, cujas tropas estavam estacionadas no Japão sob comando de MacArthur.
O juiz australiano William Webb foi escolhido para presidi-lo. Joseph B. Keenan, procurador-chefe da Divisão Criminal do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, foi indicado pelo presidente Harry Truman para liderar a equipe da Promotoria.
Formado por 11 juízes de diferentes nacionalidades, mas sobretudo por juristas e militares indicados pelas potências vencedoras da guerra, o Tribunal funcionou de abril de 1946 a novembro de 1948 e julgou 28 líderes políticos e militares japoneses pelas atrocidades cometidas durante o conflito.
Diferentemente do que se passa num tribunal brasileiro, os juízes tiveram longos debates a portas fechadas (in camera) sobre as intrincadas questões de fato e de direito que apreciariam. Em seu voto divergente, o juiz Pal questionou a legitimidade do julgamento. O Tribunal de Tóquio representava o “sham employment of legal process for the satisfaction of a thirst for revenge“, isto é, uma impostura de processo judicial para a satisfação de suposta sede de vingança. Uma justiça dos vencedores estabelecida para julgar os vencidos. Na sua visão, aquele era um tribunal ilegítimo porque crimes de guerra igualmente graves cometidos pelas forças aliadas não foram submetidos a julgamento.
O juiz holandês Bert Röling, professor da Universidade de Utrecht, criticou a própria composição do tribunal: “I think that not only should there have been neutrals in the court, but there should have been Japanese also.” Não o integravam magistrados japoneses nem juízes de nações que se mantiveram neutras durante a guerra.
Röling compartilhava em parte a posição de Pal sobre a falta de acusações a respeito de fatos igualmente graves, como o uso de bombas incendiárias contra áreas urbanas de Tóquio e Yokohama, entendendo que eram visíveis no território japonês as violações às leis de guerra cometidas pelos Aliados na campanha do Pacífico.
Foi o que se deu na terrível Operação Meetinghouse, de 9 e 10 de março de 1945, que contou com uma frota de mais de 300 aviões B-29 e produziu em Tóquio mais de cem mil mortos e desabrigou cerca de um milhão de pessoas, “uma guerra sem misericórdia”, como a descreveria o historiador John Dower.
Naquela ocasião, a Força Aérea americana usou bombas de napalm e fósforo branco que arrasaram a capital japonesa, cujas construções eram predominantemente de madeira. A respeito desses eventos, disse o juiz Röling:”of course, in Japan we were all aware of the bombings and the burnings of Tokyo and Yokohama and other big cities. It was horrible that we went there for the purpose of vindicating the laws of war, and yet saw every day how the Allies had violated them dreadfully“.
Questionar a legitimidade, a legalidade e a competência do Tribunal de Tóquio também foi a linha seguida por vários defensores, sobretudo japoneses e americanos, que atuaram no julgamento. George A. Furness, advogado formado em Harvard e que representou o ministro das Relações Exteriores Mamoru Shigemitsu, sustentou que os juízes, embora probos, não tinham condições objetivas de imparcialidade:”we say that regardless of the known integrity of the individual members of this tribunal they cannot, under the circumstances of their appointment, be impartial; that under the circumstances this trial, both in the present day and in history, will never be free from substantial doubt as to its legality, fairness and impartiality“.
Dos 28 acusados, todos japoneses, dois morreram durante o processo e um foi considerado inimputável por insanidade. Dentre os demais réus sete foram condenados à morte por enforcamento, dois submetidos a penas privativas de liberdade entre 7 e 20 anos e dezesseis réus enfrentaram prisão perpétua.
O crime de agressão
Naquele julgamento, ao menos as questões da legalidade e da anterioridade da lei penal eram relevantes.
Uma das preliminares levantadas durante o julgamento diz respeito à tipificação do crime de agressão no direito internacional, como uma conduta ilícita atribuível a uma pessoa, e não a um Estado.
Até o começo do século XX, o recurso à guerra não era proibido pelo direito internacional, e os Estados podiam valer-se de força militar como instrumento de política internacional.
O Pacto da Sociedade das Nações de 1919 (Tratado de Versalhes), promulgado no Brasil pelo Decreto 13.990, de 12 de janeiro de 1920, representou um ponto de inflexão. Na forma do art. 10, os Estados-membros obrigaram-se “a respeitar e manter contra toda agressão externa a integridade territorial e a independência política presente de todos os Membros da Sociedade”.
A proibição da guerra de agressão fora objeto do Pacto de Paris, de 1928 (Pacto Briand-Kellogg), ou Tratado de Renúncia à Guerra. Em seus três artigos, os Estados Partes se comprometeram a não recorrer à guerra para a solução das controvérsias internacionais e a ela renunciavam como instrumento de política nacional nas suas mútuas relações (art. 1), e também se obrigaram à superação ou à resolução de controvérsias ou conflitos por meios pacíficos (art. 2).
Futuras potências aliadas (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, França) e países que viriam a formar o Eixo (Itália, Alemanha e Japão) ratificaram o Pacto Briand-Kellog em 1928. A adesão brasileira ao tratado só ocorreu quase seis anos depois. Seu texto foi promulgado pelo presidente Getúlio Vargas, como chefe do governo provisório dos Estados Unidos do Brasil, por meio do Decreto 24.557, de 3 de abril de 1934.
Depois da 2ª Guerra Mundial, a proibição do uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de outro Estado tornou-se objeto do art. 2.4 da Carta das Nações Unidas. Duas exceções foram previstas: uso da força em legítima defesa individual ou coletiva (art. 51); e uso da força mediante autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas (art. 42).
Tais regras aplicavam-se a condutas dos Estados, como sujeitos de direito internacional público.
O crime de agressão como vedação da conduta de uma pessoa natural foi tipificado pela primeira vez no direito internacional pelo Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, cujo art. 6º lhe conferia jurisdição para julgar crimes contra a paz, “namely, planning, preparation, initiation or waging of a war of aggression, or war in violation of international treaties, agreements or assurances, or preparation in a common plan or conspiracy for the accomplishment of any of the foregoing.”
Este dispositivo inspirou o art. 5.a da Carta de Tóquio, de 19 de janeiro de 1946.
Article 5. Jurisdiction over persons and offences
The Tribunal shall have the power to try and punish Far Eastern war criminals who as individuals or as members of organizations are charged with offences which include Crimes against Peace.
The following acts, or any of them, are crimes coming within the jurisdiction of the Tribunal for which there shall be individual responsibility:
Crimes against Peace:
Namely, the planning, preparation, initiation or waging of a declared or undeclared war of aggression, or a war in violation of international law, treaties, agreements or assurances, or participation in a common plan or conspiracy for the accomplishment of any of the foregoing;”
Embora o conceito de guerra de agressão estivesse em debate desde as primeiras décadas do século XX, com ressalva da legítima defesa e outras formas de intervenção militar, o crime de agressão, como uma violação armada à soberania, à independência política ou à integridade territorial de outro Estado, só veio a ser devida e definitivamente tipificado no direito internacional pelo Estatuto de Roma, de 1998 (promulgada pelo Decreto 4.388/2002), que criou o Tribunal Penal Internacional, e, sobretudo, pela Emenda de Kampala, aprovada na conferência realizada em Uganda em 2010, ainda não internalizada no Brasil:
Article 8 bis
Crime of aggression
1. For the purpose of this Statute, “crime of aggression” means the planning, preparation, initiation or execution, by a person in a position effectively to exercise control over or to direct the political or military action of a State, of an act of aggression which, by its character, gravity and scale, constitutes a manifest violation of the Charter of the United Nations.
2. For the purpose of paragraph 1, “act of aggression” means the use of armed force by a State against the sovereignty, territorial integrity or political independence of another State, or in any other manner inconsistent with the Charter of the United Nations. Any of the following acts, regardless of a declaration of war, shall, in accordance with United Nations General Assembly resolution 3314 (XXIX) of 14 December 1974, qualify as an act of aggression:
Nos termos do art. 8-bis do Estatuto de Roma, entende-se por crime de agressão, a invasão ou ataque por parte das forças armadas de um Estado contra o território de outro; ocupações militares, mesmo que temporárias; qualquer forma de anexação territorial por meio da força; o bombardeio do território de um Estado por outro Estado; o bloqueio de portos ou do litoral de um Estado pelas forças armadas de outro; e o envio, por um Estado, de forças irregulares ou mercenários armados ao território de outro Estado para prática de ações militares.
Com a aprovação da Emenda de Kampala pelo 30º país signatário, o que se deu em junho de 2016, com a entrada do Estado da Palestina, o TPI poderá exercer jurisdição sobre o crime de agressão, desde que, após 1º de janeiro de 2017, a Assembleia dos Estados Partes do Estatuto de Roma confirme a ativação da cláusula, o que deve ocorrer em dezembro de 2017. Assim, o ingresso da Palestina não deu eficácia automática à Emenda de Kampala.
Quem julga os vencedores?
A arte nos leva a refletir sobre o que foi feito pela Justiça internacional nos últimos 70 anos para que crimes tão terríveis não mais ocorram, como se repetiram no Vietnã, no Irã, no Iraque, no Kuwait, no Afeganistão, na ex-Iugoslávia e noutras partes do globo.
Neste enredo do extremo oriente, a justiça ainda é longínqua, e o planeta continua a ver esse flagelo renovar-se na Guerra da Síria, nação milenar de onde partiram fluxos migratórios de milhões de pessoas, que fogem daquele terrível conflito dos dias de hoje em busca da paz noutros países do Oriente Médio e da Europa.
Nestes dias, vi um tocante anime (ou animê) sobre um dos crimes de guerra mais atrozes e repugnantes da História: os bombardeios atômicos às cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki em agosto de 1945, no final da 2ª Guerra Mundial. Os dois lançamentos, realizados pelos Estados Unidos, com autorização do presidente democrata Harry Truman (1884-1972), teriam servido para tornar desnecessária a invasão do Japão em terra, acelerar a rendição do imperador Hirohito (1901-1989) e encerrar a campanha do Pacífico.
Na manhã de 6 de agosto de 1945, o bombardeiro B-29 americano batizado Enola Gay lançou sobre Hiroshima uma bomba de urânio apelidada Little Boy. A explosão fez 140 mil vítimas, pessoas comuns.
Três dias depois, outra bomba atômica, a Fat Man, feita de plutônio, devastou Nagasaki, matando 40 mil pessoas. O artefato também foi lançado por um B-29.
Apesar de as potências aliadas, que derrotaram o Eixo na Europa e no Pacífico terem constituído duas cortes, uma em Nuremberg (Alemanha) e a outra em Tóquio (Japão), para julgar líderes nazistas e seus aliados no extremo oriente, nenhum tribunal internacional jamais julgou as autoridades responsáveis pela morte de centenas de milhares de civis inocentes, dizimados pelo primeiro ataque nuclear do planeta e pelas bombas incendiárias que caíram sobre várias cidades japonesas.
Este animê retrata os minutos finais de Hiroshima. Naquelas chamas, encerrou-se a 2ª Guerra Mundial e teve início a Guerra Fria.
Ao denunciar os réus ao Tribunal de Tóquio, o promotor-chefe Keenan disse à imprensa: “War and treaty-breakers should be stripped of the glamour of national heroes and exposed as what they really are—plain, ordinary murderers“.
Não sei se Pal estava certo ao dissentir dos veredictos de Tóquio. Os juízes do Tribunal do Extremo Oriente que formaram a maioria tinham razões ponderáveis para decidir como decidiram. Nos livros, nas crônicas, na literatura jurídica ou nos processos judiciais, ser herói ou tirano depende de quem narra o fato ou de quem escreve a História. Ou de quem os julga.