Cooperação internacional

O intocável

Embora o líder mafioso dos anos 1920-1930 tenha-se notabilizado por crimes de corrupção e homicídio e pelo comércio ilegal de bebidas durante a Lei Seca (Volstead Act), sua queda deveu-se a algo mais prosaico: sonegação fiscal.

Por Vladimir 

O filme “Os intocáveis” conta a história dos agentes do Internal Revenue Service (IRS), órgão correspondente à nossa Receita Federal, que caçaram Al Capone (1899-1947). Embora o líder mafioso dos anos 1920-1930 tenha-se notabilizado por crimes de corrupção e homicídio e pelo comércio ilegal de bebidas durante a Lei Seca (Volstead Act), sua queda deveu-se a algo mais prosaico: sonegação fiscal.

Condenado em 1931 a 11 anos de prisão e multa de 50 mil dólares e a pagar impostos sonegados de 215 mil dólares, o famoso gângster de Chicago acabou atrás das grades, onde foi diagnosticado com sífilis. O declínio de sua saúde física e mental ratificou a derrocada do seu império criminoso. Morreu aos 48 anos.

Sua condenação só foi possível devido a uma reinterpretação constitucional, consumada pela Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS) no caso United States v. Sullivan, de 1927. Até então, não estava claro se o produto de atividades ilícitas tinha de ser declarado à tributação. A SCOTUS então decidiu que dinheiro sujo também deveria ser declarado e podia ser tributado. O ministro Oliver Wendell Holmes Jr. acentuou na ocasião que o privilégio contra a autoincriminação, previsto na 5ª Emenda à Constituição norte-americana, não ia tão longe. Em 1961, no caso James v. United States, a Suprema Corte americana reafirmou o precedente, que tem parentesco com a máxima latina pecunia non olet.

Para o tribunal dos EUA, seria uma incongruência taxar ganhos lícitos de trabalhadores e empresários e isentar de tributação os lucros de atividades criminosas. A incidência de tributos sobre dinheiro sujo aumentava a arrecadação e facilitava a ação do Estado contra criminosos em geral.

Sigilo bancário: da criminalizarão à flexibilização

Uma das formas mais eficientes de encontrar sonegadores é mediante a flexibilização do sigilo bancário, o que significa transferir os dados e o dever de sigilo de um órgão a outro da Administração Pública ou ao Ministério Público.

A proteção ao sigilo bancário como hoje o conhecemos remonta a 1934, quando foi editada a primeira lei suíça que criminalizava sua violação. Embora o sigilo continue sendo a alma do negócio financeiro em todo o mundo, oitenta anos depois, até mesmo a Suíça retrocedeu. Melhor dizendo: avançou. Assombrada pela história de seu complexo bancário durante o nazismo e pressionada pelo Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento (OCDE) e por processos penais contra bancos e banqueiros suíços nos Estados Unidos, a Confederação Helvética passou a cooperar com Estados estrangeiros para impedir que seu sistema financeiro continuasse a ser um “tax haven”, um paraíso fiscal e financeiro, capaz de hospedar fortunas de sonegadores e as riquezas surrupiadas por políticos corruptos da África e da América Latina.

Seguindo o exemplo de outras democracias, especialmente a partir de 2003, a Suíça engajou-se na luta contra a corrupção e a lavagem de dinheiro. Inúmeras “informações espontâneas” – uma espécie de notícia-crime internacional – passaram a ser enviadas a países como o Brasil, quando autoridades suíças identificavam fortunas suspeitas depositadas em suas instituições financeiras. Conte nos dedos quantos brasileiros já foram flagrados com contas na Suíça nos últimos 15 anos. Faltarão mãos. É muita gente.

Em 2013, a Suíça resolveu aderir à Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Fiscal, de 1988 (Multilateral Convention on Mutual Administrative Assistance on Tax Matters), emendada por um protocolo de 2010. O Brasil assinou tal tratado em 2011, mas ainda não o ratificou. Cerca de 60 países são partes. A convenção, formalizada sob os auspícios da OCDE e do Conselho da Europa (CoE), abrange a troca de informações sobre devedores de tributos e contribuições previdenciárias, regula a comunicação direta de atos processuais relativos a tais tributos (art. 17) e permite a remessa direta de documentos entre os órgãos nacionais competentes, sem intervenção de uma autoridade central de cooperação. Trata-se, enfim, de um acordo internacional para reprimir a sonegação fiscal e restringir os “tax havens“.

Conforme o artigo 21, §§3º e 4º, dessa Convenção, o Estado requerido deve recorrer aos poderes de que dispõe para obter as informações solicitadas pelo Estado requerente, mesmo que o Estado requerido não necessite dessas informações para os seus próprios fins tributários. Dados bancários, por exemplo. Além disso, o tratado estipula que o Estado requerido não pode recusar-se “a prestar informações unicamente porque estas são detidas por um banco, outra instituição financeira, um mandatário ou por uma pessoa agindo na qualidade de agente ou fiduciário, ou porque essas informações são conexas com os direitos de propriedade de uma pessoa.” Um significativo abalo no caráter absoluto do sigilo bancário e fiscal, nas relações internacionais.

Como se vê no seu artigo 22, §4, o tratado reformado em 2010 também autoriza o uso das informações assim obtidas para a persecução de crimes graves, nomeadamente corrupção, financiamento ao terrorismo, lavagem de dinheiro e ilícitos cometidos por organizações criminosas, desde que os fatos sejam típicos (crimes) nas duas jurisdições e que haja prévia autorização do Estado requerido. Ou seja, “as informações obtidas por uma Parte poderão ser utilizadas para outros fins, quando a utilização de tais informações para esses fins seja possível, de acordo com a legislação da Parte que forneceu as informações e a autoridade competente desta Parte autorize essa utilização”. Temos aí uma manifestação do princípio da especificidade ou especialidade, que condiciona certos usos, mas não os impede. Vemos também uma regra de comunhão documental: as provas podem servir para a apuração de infrações administrativas (tributárias) e também penais.

Previsão semelhante pode ser vista no Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e o Governo dos Estados Unidos da América relativo à Assistência Mútua entre as suas Administrações Aduaneiras, assinado em Brasília, em 20 de junho de 2002 (Decreto 5.410/2005). Tal tratado, que também regula a comunicação direta entre as autoridades competentes (art. 7º), faculta a utilização das informações fornecidas pelas respectivas aduanas para instrução de procedimentos criminais sempre que houver autorização prévia do Estado requerido ou quando o empréstimo da prova decorrer de obrigação legal no Estado requerente (art. 9º, §§1º e 3º).

Acordos internacionais como os dois acima mencionados não violam o art. 181 da Constituição, que determina que “O atendimento de requisição de documento ou informação de natureza comercial, feita por autoridade administrativa ou judiciária estrangeira, a pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada no País dependerá de autorização do Poder competente“. A transição documental sempre será avalizada pelo órgão competente brasileiro, a própria Receita Federal nos casos acima indicados.

A normativa internacional neste campo não se esgota aí. O Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), organismo intergovernamental, criado em 1989, dedicado à luta contra a lavagem de dinheiro (Anti-Money Laudering – AML), o financiamento do terrorismo (Counter-Terrorist Financing – CFT) e a proliferação de armas de destruição em massa (Weapons of Mass Destruction – WMD) também tem regras que revelam a necessidade de facilitar o acesso a dados protegidos pelo sigilo bancário e seu compartilhamento, nos planos doméstico e internacional.

De fato, a Recomendação 37.c e 37.d do GAFI (na versão revisada de fevereiro de 2012), relativa à cooperação internacional no contexto AML/CFT/WMD, estabelece que o Estado requerido não deve recusar o cumprimento de um pedido de assistência jurídica (mutual legal assistance) apenas pelo fato de o crime relacionar-se a infrações tributárias; ou ainda pela só circunstância de as instituições financeiras serem obrigadas a manter sigilo.

Esses e outros atos de soft law e de direito convencional revelam haver uma ação coordenada, no plano global, para impedir a evasão fiscal, reduzir a sonegação, dificultar a corrupção, a lavagem de dinheiro, o financiamento ao terrorismo e a proliferação de armas de destruição em massa, o que engloba limitações à produção e à comercialização de armas químicas, biológicas, radiológicas, nucleares e explosivos (QBRNe).

Este é o contexto externo. Como o tema vem sendo tratado no Brasil?

O acesso direto da Receita Federal a dados bancários de contribuintes

Enquanto no resto do mundo, o sigilo bancário sofre baixas, no Brasil, continua a ser intocável, quase uma garantia sacrossanta. E você deve imaginar a razão. Uma pista: não é por causa do zé-ninguém.

O sigilo bancário não está expresso na Constituição de 1988, mas muitos insistem em vê-lo ali, no inciso X do artigo 5º, como decorrência do direito à intimidade e à vida privada. Pode ser. Mas, mesmo assim, não há no texto constitucional nenhuma proteção absoluta ao sigilo bancário.

Sua flexibilização pode ocorrer nas hipóteses previstas no artigo 1º, §4º, da Lei Complementar 105/2001, para a apuração de qualquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou da ação penal, e especialmente nos crimes de terrorismo, narcotráfico, tráfico de armas, sequestro extorsivo, crimes contra a Administração Pública, a ordem tributária e o Sistema Financeiro Nacional, lavagem de dinheiro e nos delitos praticados por organizações criminosas.

Evidentemente, esse rol é exemplificativo, uma vez que pode haver o afastamento do sigilo bancário para a apuração de qualquer crime, ou mesmo de qualquer ilícito civil, ou ainda em ações de direito de família e sucessões, e em matéria administrativa.

Regra geral, somente autoridades judiciárias e comissões parlamentares de inquérito podem determinar a quebra de sigilo bancário. Todavia, no exercício de suas atribuições, o Banco Central do Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) e a Receita Federal do Brasil (RFB) têm acesso direto a esses dados financeiros. Teoricamente, o Ministério Público Federal também teria, por força do artigo 8º, §2º, da Lei Complementar 75/1993, mas disto não cuidarei aqui.

O foco agora é o artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, que foi regulamentado pelo Decreto 3.724/2001. Ali se permite aos auditores fiscais da RFB e aos agentes fiscais dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios o acesso direto a informações bancárias, desde que haja procedimento administrativo instaurado:

Art. 6º. As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Num caso qualquer, a RFB intimará o contribuinte para fornecer seus dados bancários, sempre que necessário for. Em caso de recusa ou omissão por parte do contribuinte, o auditor emitirá a Requisição de Informações sobre Movimentação Financeira (RMF) dirigida aos bancos, para assim instruir o procedimento instaurado pelo Fisco. Não há divulgação dos dados bancários, uma vez que as informações obtidas pela RFB ficarão protegidas pelo sigilo fiscal. Portanto, não há quebra, mas transferência de dados sigilosos, que assim permanecem.

Por quase uma década, o Fisco assim procedeu. Todavia, em dezembro de 2010, no julgamento do RE 389.808/PR, o STF decidiu, por 5 votos a 4, que somente autoridades judiciárias e CPIs podem requisitar informações bancárias às instituições financeiras. Marco Aurélio (relator), Gilmar Mendes, Celso de Mello, Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski formaram a maioria. Os ministros Dias Toffoli, Ellen Gracie, Ayres Britto e Cármen Lúcia ficaram vencidos. Joaquim Barbosa, que acaba de deixar o STF, não estava presente. Eis a ementa:

SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte. (STF, Pleno, RE 389808, Relator Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 15/12/2010).

Não discuto se a Corte obedeceu ao artigo 97 da CF, segundo o qual “Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público“. Se esse artigo da Constituição valesse para o STF, seriam necessários 6 votos para a declaração de inconstitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar 105/2001. Portanto, tenho para mim que a Suprema Corte não realizou controle oponível erga omnes.

Tanto é assim que nos tribunais regionais federais ainda tem prevalecido a tese da viabilidade do acesso direto pela Receita. Em 2013, o TRF-2 rejeitou a Arguição de Inconstitucionalidade 0003952-38.2013.4.02.0000 TRF-2 levantada contra o art. 6º da Lei Complementar 105/2001:

ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 6º DA LEI COMPLEMENTAR 105/2001. QUEBRA DE SIGILO. INOCORRÊNCIA. TRANSFERÊNCIA DE DADOS. RE 389.808/PR COM EFEITOS “INTER PARTES” E “EX TUNC”. PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS. POSSIBILIDADE DE DISPENSA DE ORDEM JUDICIAL.
 1. Trata-se de incidente de Arguição de Inconstitucionalidade suscitado pela 1ª Turma Especializada deste Tribunal Federal Regional quanto ao artigo 6º da Lei Complementar nº 105/2001.
 2. A questão central discutida cinge-se na eventual ofensa ao art. 5º, XII, da CF em face do aludido dispositivo legal permitir que as autoridades e os agentes fiscais tributários examinem, através de requisição direta às instituições financeiras e sem autorização judicial, documentos, livros e registros relativos a informações sobre movimentações financeiras diretamente.
 3. Não há uma quebra da privacidade, mas sim uma transferência de dados – e também do dever de sigilo – a outro órgão da Administração, uma vez que não está autorizado por lei a levar a público seu conteúdo, permanecendo as informações sigilosas no âmbito administrativo da Receita Federal, que deve utilizar tais informações apenas para o cumprimento das finalidades da Administração Pública.
 4. O provimento do RE 389808-PR, no qual o Tribunal Pleno acolheu, por maioria, a tese do Ilustre Ministro Marco Aurélio em favor da impossibilidade de quebra de sigilo bancário pela Secretaria da Receita Federal sem autorização judicial, foi firmado em votação apertada (quatro votos vencidos), em sede de controle difuso de constitucionalidade, gerando efeitos somente inter partes e ex tunc, existindo posicionamentos díspares a respeito da matéria. Assim, não houve um exame definitivo da matéria no âmbito do STF, devendo ser observado o Princípio da Presunção da Constitucionalidade das Leis.
 5. Arguição de Inconstitucionalidade rejeitada.

Na apelação criminal 0013930-55.2009.404.7200/SC, o TRF-4 seguiu a mesma linha, entendendo que “inexiste inconstitucionalidade ou ilicitude na obtenção de documentação bancária pela autoridade fazendária, em sede de procedimento administrativo-fiscal, com a observância do disposto no artigo 6º da Lei Complementar n. 105/2001“, declarando ser “lícita, para fins de oferecimento da denúncia, a prova obtida de acordo com a disposição legal“.

Em 2009, no RE 1.134.665/SP (rel. Luiz Fux), a 1ª Seção do STJ pacificou o tema na Corte, quando decidiu pela legalidade da requisição direta de informações pela autoridade fiscal às instituições bancárias, sem prévia autorização judicial.

Porém, em novembro de 2013, no AGRESP 1.402.649/BA, a 6ª Turma do STJ decidiu que a RFB pode obter diretamente informações protegidas pelo sigilo bancário, mas não pode repassá-las ao Ministério Público para persecução criminal. Ou seja, para a Corte, “Os dados obtidos pela Receita Federal mediante requisição direta às instituições bancárias em sede de processo administrativo tributário sem prévia autorização judicial não podem ser utilizados no processo penal“. A ideia é de que “A quebra do sigilo bancário para investigação criminal deve ser necessariamente submetida à avaliação do magistrado competente, a quem cabe motivar concretamente seu decisum“. Assim, a prova obtida pela RFB e transferida ao MPF foi tida como ilícita e determinou-se sua retirada dos autos, porque não teria sido obedecido o artigo 5º, inciso XII, da CF.

O STJ voltou a decidir o tema em junho de 2014, quando a 6ª Turma da Corte repetiu o entendimento externado em 2013:

Os dados obtidos pela Receita Federal com fundamento no art. 6º da LC 105/2001, mediante requisição direta às instituições bancárias no âmbito de processo administrativo fiscal sem prévia autorização judicial, não podem ser utilizados para sustentar condenação em processo penal. Efetivamente, afigura-se decorrência lógica do respeito aos direitos à intimidade e à privacidade (art. 5º, X, da CF) a proibição de que a administração fazendária afaste, por autoridade própria, o sigilo bancário do contribuinte, especialmente se considerada sua posição de parte na relação jurídico-tributária, com interesse direto no resultado da fiscalização. Apenas o Judiciário, desinteressado que é na solução material da causa e, por assim dizer, órgão imparcial, está apto a efetuar a ponderação imprescindível entre o dever de sigilo – decorrente da privacidade e da intimidade asseguradas aos indivíduos em geral e aos contribuintes, em especial – e o também dever de preservação da ordem jurídica mediante a investigação de condutas a ela atentatórias. Nesse contexto, diante da ilicitude da quebra do sigilo bancário realizada diretamente pela autoridade fiscalizadora sem prévia autorização judicial, deve ser reconhecida a inadmissibilidade das provas dela advindas, na forma do art. 157 do CPP, de acordo com o qual “São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. Precedente citado do STF: RE 389.808-PR, Tribunal Pleno, DJe 9/5/2011. Precedente citado do STJ: RHC 41.532-PR, Sexta Turma, DJe 28/2/2014; e AgRg no REsp 1.402.649-BA, Sexta Turma, DJe 18/11/2013. (STJ, 6ª Turma, REsp 1.361.174-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 3/6/2014).

O STJ assim procedeu apesar de o mencionado inciso XII regular questão diversa (“comunicação de dados”) e não se referir à transferência de dados bancários, sem qualquer espécie de violação de segredo. A decisão do STJ também surpreende diante da clareza do artigo 1º, §3º, inciso IV, da Lei Complementar 105/2001, segundo o qual não equivale à quebra de sigilo bancário “a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa“.

Diga-se ainda que cindir a tutela ao direito à privacidade em “para fins penais” e “para fins tributários” não faz o menor sentido. Ou há a proteção legal-judicial para ambas as finalidades, que sempre demandariam prévia intervenção judicial, ou não há. A decisão do STJ cria regime artificial de tutela, com discrimen irrazoável.

Por igual, o STJ negou vigência ao artigo 83 da Lei 9.430/1996 – que regula a representação fiscal para fins penais da RFB ao MPF -, assim como ignorou, sem argumentar ou fundamentar, o artigo 9º da LC 105/2001, que assim dispõe:

“Artigo 9º. Quando, no exercício de suas atribuições, o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários verificarem a ocorrência de crime definido em lei como de ação pública, ou indícios da prática de tais crimes, informarão ao Ministério Público, juntando à comunicação os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos.”

A interação entre órgãos domésticos (cooperação interna) e entre nações diversas (cooperação internacional), inclusive para o intercâmbio de informações e dados sensíveis, é fundamental para a proteção das sociedades nacionais e da comunidade global contra crimes graves. Dados sigilosos (bancários ou fiscais) assim devem permanecer, mesmo quando transitam entre órgãos estatais distintos. No fim das contas, é sempre o mesmo Estado que os detém, para uso em proveito do interesse público e a aferição de condutas lesivas à sociedade.

Não é à toa que a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida, ou UNCAC na sigla em inglês), em vigor no Brasil, prevê em seu artigo 31, §7º, que “cada Estado Parte deverá habilitar os seus tribunais ou outras autoridades competentes para ordenarem a apresentação ou a apreensão de documentos bancários, financeiros ou comerciais. Os Estados Partes não poderão invocar o sigilo bancário para se recusarem a aplicar as disposições do presente número” (assim na tradução oficial da República Portuguesa).

Para facilitar a luta contra a corrupção, o artigo 40 da Convenção de Mérida estabelece também que “No caso de investigações criminais internas relativas a infracções estabelecidas em conformidade com a presente Convenção, cada Estado Parte deverá assegurar que o seu sistema jurídico interno contenha mecanismos adequados para superar os obstáculos que possam decorrer da aplicação de leis em matéria de sigilo bancário” (idem).

Ainda nesse escopo, o artigo 46, §8º, da UNCAC, em matéria de cooperação internacional, estatui que o sigilo bancário não pode ser invocado como motivo para que o Estado Parte requerido se recuse a cumprir pedido de assistência jurídica mútua relacionado à corrupção e aos demais delitos previstos na Convenção.

O conceito de sigilo bancário evoluiu em todo o mundo. Paraísos fiscais vêm sendo extintos. Até a Suíça mitigou-o. Contudo, ao que parece, continua a ser tratado como tabu no Brasil, a partir de interpretações do texto constitucional não almejadas pelo Poder Constituinte nem suportadas pelo interesse público.

Conclusão

A decisão do STF no RE 389.808/PR (rel. min. Marco Aurélio) tem grande impacto sobre as atividades da Receita Federal e pode repercutir sobre as funções da Comissão de Valores Mobiliários e do COAF, órgãos que tutelam interesses fundamentais da economia e da sociedade, de forma responsável, sem exposição das pessoas fiscalizadas a escárnio ou à curiosidade pública.

O fato de o STJ ter restringido também o escopo da Lei Complementar 105/2001, em detrimento da atividade de persecução penal do Ministério Público é igualmente grave. Foi o que ocorreu no AGRESP 1.402.649/BA (rel. min. Maria Thereza de Assis Moura).

O assunto ainda não está encerrado, uma vez que em 2009 o STF admitiu repercussão geral no RE 601.314/SP RG (rel. Ricardo Lewandowski), para decidir acerca da constitucionalidade da requisição direta de informações bancárias pelo Fisco, sem autorização judicial.

Tais posturas de dois tribunais superiores brasileiros mostram quão distanciados da realidade jurídica global nós ainda estamos. Como vimos acima, nos anos 1920, a Suprema Corte americana deu um passo fundamental para que, pouco tempo depois, mafiosos como Al Capone fossem investigados e punidos, na forma da lei, sem malabarismos exegéticos. Aqui, quase um século adiante, ainda nos debatemos com a simples questão da transferência de sigilo entre órgãos estatais (da RFB ao MPF), num cenário no qual países conhecidos pelo rigor de suas leis de sigilo bancário tem-no abrandado em prol da cooperação global contra a sonegação e também contra graves formas de delinquência.

Em suma, o sigilo bancário é um direito individual (fundamental?), mas não pode ser lido como um dogma ou ser tido como bem intangível. Diante da interpretação que alguns tribunais fazem de nosso Direito, é lícito imaginar que, se Alphonsus Gabriel Capone tivesse vivido no Brasil, teria vida longa e próspera e uma extensa e bem-sucedida carreira criminosa. Nessa outra história, ele é que seria o intocável.  

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