Corrupção

O foro especial nas ações de improbidade administrativa

Este é um tema recorrente (!) nos tribunais brasileiros, o que é um mau sinal. Se temos de debater, corriqueiramente, a que corte compete julgar nossos homens públicos, é porque são rotineiros os casos de corrupção ou malfeitorias em que um bom número desses agentes políticos se vê envolvido.

Por Vladimir Aras

Qual o foro competente para o julgamento das autoridades políticas (governadores, prefeitos, ministros e secretários de Estado) por atos de improbidade administrativa (Lei 8.429/1992)?
 
Este é um tema recorrente (!) nos tribunais brasileiros, o que é um mau sinal. Se temos de debater, corriqueiramente, a que corte compete julgar nossos homens públicos, é porque são rotineiros os casos de corrupção ou malfeitorias em que um bom número desses agentes políticos se vê envolvido.
 
Tratei en passant deste tema no post “O foro especial dos Secretários de Estado” (aqui), cujo objetivo era discutir o juízo competente em casos criminais, situação que suscita alguma controvérsia.
 
Porém, no campo da improbidade administrativa, matéria regulada pela Lei 8.429/92, para mim não há dúvida alguma. Apesar da tese de que os agentes políticos não se sujeitam à Lei de Improbidade Administrativa, tal posição do STF é restrita a certas autoridades, como o presidente da República e seus ministros nos casos conexos, pois estes estão sujeitos ao processo de impeachment, de acordo com a Lei 1.079/50, que regula o processo dos impropriamente chamados “crimes de responsabilidade”, na verdade infrações político-administrativas.
 
Noutra ocasião, o STF também decidiu que compete à própria Corte julgar os seus ministros por improbidade administrativa (QO Pet 3211/DF, rel. min. Marco Aurélio, j. 13/03/2008). Este entendimento foi compartilhado pelo STJ em relação aos juízes de outras cortes superiores e de tribunais de segundo grau, passando a observar-se a mesma regra do foro especial criminal para as ações de improbidade contra tais magistrados (Ag. na Reclamação 2115/AM, rel. Teori Zavascki, j. em 16/12/2009).
 
Tais soluçõesem prol do foro especial cível para o presidente da República, ministros e desembargadoresnão se estendem, porém, aos prefeitos municipais ou aos secretários estaduais, como se depreende da Reclamação 2138/DF (rel. orig. Min. Nelson Jobim, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 13.6.2007) e da PET 3923 QO/SP (rel. Min. Joaquim Barbosa, 13.6.2007).
 
Observe-se ainda que na Reclamação 2790/SC (STJ, Corte Especial, rel. Teori Zavaschi, j. em 02/12/2009), o STJ atribuiu prerrogativa de foro especial aos governadores de Estado nas ações de improbidade. Segundo o relator, haveria ali uma “competência implícita complementar do STJ“, uma forma elegante de afirmar que a Corte ampliou um privilégio processual, em detrimento do princípio geral da igualdade.
 
Contudo, em pronunciamento monocrático de abril de 2012, a ministra Rosa Weber, do STF,afirmou que parlamentares federais respondem por improbidade em primeiro grau:
 
“(…) a ação de improbidade administrativa, de natureza cível, não está, como decidida pelo Plenário desta Suprema Corte, sujeita à competência do Supremo Tribunal Federal, mesmo quando ajuizada contra parlamentar federal.” (STF, Pet 3.040/MA, rel. min. Rosa Weber, decisão monocrática, d. em 16.04.2012).
 
Considerando que a regra no Estado de Direito é a isonomia entre todos os cidadãos – privilegiados ou não -, creio ser correto afirmar que os secretários estaduais, os ministros de Estado e os governadoresestão sujeitos à Lei de Improbidade Administrativa.
 
Contudo, há outro precedente do STJ em sentido contrário, em que aquele tribunal invocou o julgado na Reclamação 2790/SC:
 
CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. AGENTES POLÍTICOS. POSSIBILIDADE. PRECEDENTE DA CORTE ESPECIAL. SECRETÁRIOS DE ESTADO. COMPETÊNCIA. PRERROGATIVA DE FORO. CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. COMPETÊNCIAS IMPLÍCITAS COMPLEMENTARES. REMESSA AO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. 1. Trata-se de Ação Civil Pública contra os recorridos em razão da prática de atos de improbidade administrativa, descritos como dispensa indevida de licitação, desvio de verbas públicas, autorização de despesas não previstas em lei e desvio de finalidade na implementação do ‘Programa do Leite’, com prejuízo aos cofres públicos no valor de aproximadamente R$ 10 milhões. 2. Após sentença de procedência, o acórdão acolheu a alegação de inaplicabilidade de Lei de Improbidade Administrativa aos agentes políticos e, em relação aos demais, anulou a sentença por cerceamento de defesa. O Recurso Especial pugna pela reforma do acórdão nesses dois pontos. 3. A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça decidiu pela submissão dos agentes políticos à Lei de Improbidade Administrativa (Rcl 2.790/SC, Corte Especial, Relator Ministro Teori Albino Zavascki, DJe 4.3.2010). 4. Todavia, o mesmo precedente estabelece privilégio de foro aos agentes políticos em ações de improbidade – com base em construção amparada em julgado do STF -, na relevância do cargo de determinados sujeitos, no interesse público ao seu bom e independente exercício e na idéia de competências implícitas complementares. 5. A Constituição do Estado do Rio Grande do Norte prevê prerrogativa de Foro a Secretários de Estado. 6. Recurso Especial parcialmente provido para reconhecer a aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa aos recorridos, agentes políticos, com remessa, de ofício, dos autos ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte para que julgue a demanda em competência originária. (STJ, REsp 1.235.952-RN, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, 02.06.2011, v.u.).
 
Tinha e tenho minhas dúvidas sobre o acerto de tal decisão. Nos feitos cíveis — e a ação de improbidade tem esta natureza – em regra não há foros privilegiados. O princípio da igualdade processual aqui é presente. Já deixamos há muito de lidar com juízos excepcionais, como aquele que beneficiava os cidadãos britânicos durante a era colonial e os primeiros anos do Império do Brazil. Não há mais o “juiz conservador da Nação Britânica”, que protegia os súditos de Albion da Justiça tupiniquim. Por igual, não deve haver, em plena democracia, foros distintos para altas autoridades no âmbito cível.
 
Pois bem. Em 13/março/2014, o STF voltou a debruçar-se sobre se existe, ou não, o foro especial nas ações de improbidade. Ao julgar o conflito de atribuições consubstanciado na ACO 2356, proposta pela PGR em face do Ministério Público do Estado da Paraíba, a ministra Cármen Lúcia decidiu que os governadores de Estadorespondem em primeira instância por atos de improbidade administrativa, tendo dito:
 
“Ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2797 e 2860, da relatoria do ministro Sepúlveda Pertence [aposentado], o Plenário deste Supremo Tribunal declarou inconstitucionais os parágrafos 1º e 2º do artigo 84 do Código de Processo Penal, alterados pela Lei 10.628/2002, concluindo-se pela natureza cível da ação de improbidade administrativa […]. A competência instituída na alínea ‘a’ do inciso I do artigo 105 da Constituição da República para processar e julgar originariamente os governadores respeita aos crimes comuns e aos de responsabilidade”.
 
De fato, na ADI 2797, a Corte assim se pronunciou:
 
III. Foro especial por prerrogativa de função: extensão, no tempo, ao momento posterior à cessação da investidura na função dele determinante. Súmula 394/STF (cancelamento pelo Supremo Tribunal Federal). Lei 10.628/2002, que acrescentou os §§ 1º e 2º ao artigo 84 do C. Processo Penal: pretensão inadmissível de interpretação autêntica da Constituição por lei ordinária e usurpação da competência do Supremo Tribunal para interpretar a Constituição: inconstitucionalidade declarada. 1. O novo § 1º do art. 84 CPrPen constitui evidente reação legislativa ao cancelamento da Súmula 394 por decisão tomada pelo Supremo Tribunal no Inq 687-QO, 25.8.97, rel. o em. Ministro Sydney Sanches (RTJ 179/912), cujos fundamentos a lei nova contraria inequivocamente. 2. Tanto a Súmula 394, como a decisão do Supremo Tribunal, que a cancelou, derivaram de interpretação direta e exclusiva da Constituição Federal. 3. Não pode a lei ordinária pretender impor, como seu objeto imediato, uma interpretação da Constituição: a questão é de inconstitucionalidade formal, ínsita a toda norma de gradação inferior que se proponha a ditar interpretação da norma de hierarquia superior. 4. Quando, ao vício de inconstitucionalidade formal, a lei interpretativa da Constituição acresça o de opor-se ao entendimento da jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal – guarda da Constituição -, às razões dogmáticas acentuadas se impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua missão de intérprete final da Lei Fundamental: admitir pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição – como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia -, só constituiria o correto entendimento da Lei Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao contrário, submetido aos seus ditames. 5. Inconstitucionalidade do § 1º do art. 84 C.Pr.Penal, acrescido pela lei questionada e, por arrastamento, da regra final do § 2º do mesmo artigo, que manda estender a regra à ação de improbidade administrativa.
 
IV. Ação de improbidade administrativa: extensão da competência especial por prerrogativa de função estabelecida para o processo penal condenatório contra o mesmo dignitário (§ 2º do art. 84 do C Pr Penal introduzido pela L. 10.628/2002): declaração, por lei, de competência originária não prevista na Constituição: inconstitucionalidade. 1. No plano federal, as hipóteses de competência cível ou criminal dos tribunais da União são as previstas na Constituição da República ou dela implicitamente decorrentes, salvo quando esta mesma remeta à lei a sua fixação.2. Essa exclusividade constitucional da fonte das competências dos tribunais federais resulta, de logo, de ser a Justiça da União especial em relação às dos Estados, detentores de toda a jurisdição residual. 3. Acresce que a competência originária dos Tribunais é, por definição, derrogação da competência ordinária dos juízos de primeiro grau, do que decorre que, demarcada a última pela Constituição, só a própria Constituição a pode excetuar. 4. Como mera explicitação de competências originárias implícitas na Lei Fundamental, à disposição legal em causa seriam oponíveis as razões já aventadas contra a pretensão de imposição por lei ordinária de uma dada interpretação constitucional. 5. De outro lado, pretende a lei questionada equiparar a ação de improbidade administrativa, de natureza civil (CF, art. 37, § 4º), à ação penal contra os mais altos dignitários da República, para o fim de estabelecer competência originária do Supremo Tribunal, em relação à qual a jurisprudência do Tribunal sempre estabeleceu nítida distinção entre as duas espécies. 6. Quanto aos Tribunais locais, a Constituição Federal – salvo as hipóteses dos seus arts. 29, X e 96, III -, reservou explicitamente às Constituições dos Estados-membros a definição da competência dos seus tribunais, o que afasta a possibilidade de ser ela alterada por lei federal ordinária.
 
V. Ação de improbidade administrativa e competência constitucional para o julgamento dos crimes de responsabilidade. 1. O eventual acolhimento da tese de que a competência constitucional para julgar os crimes de responsabilidade haveria de estender-se ao processo e julgamento da ação de improbidade, agitada na Rcl 2138, ora pendente de julgamento no Supremo Tribunal, não prejudica nem é prejudicada pela inconstitucionalidade do novo § 2º do art. 84 do C.Pr.Penal. 2. A competência originária dos tribunais para julgar crimes de responsabilidade é bem mais restrita que a de julgar autoridades por crimes comuns: afora o caso dos chefes do Poder Executivo – cujo impeachment é da competência dos órgãos políticos – a cogitada competência dos tribunais não alcançaria, sequer por integração analógica, os membros do Congresso Nacional e das outras casas legislativas, aos quais, segundo a Constituição, não se pode atribuir a prática de crimes de responsabilidade. 3. Por outro lado, ao contrário do que sucede com os crimes comuns, a regra é que cessa a imputabilidade por crimes de responsabilidade com o termo da investidura do dignitário acusado. (STF, Pleno, ADI 2797, relator min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgado em 15/09/2005).
 
Deste modo, o STF, ainda que em decisão monocrática da ministra Cármen Lúcia, desautorizou a posição adotada pelo STJ na Reclamação 2790/SC (STJ, Corte Especial, j. 02/12/2009), de relatoria do ministro Teori Zavaschi, que agora também integra a Suprema Corte. Desautorizou também o julgado do STJ no REsp 1.235.952-RN (STJ, 2ª Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, 02.06.2011).
 
Realmente, o STJ decidira, em relação aos governadores e secretários de Estado, que tais autoridades responderiam por improbidade administrativa perante aquela Corte, num caso de competência “implícita” complementar, como se vê aqui:
 
CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA. AÇÃO DE IMPROBIDADE CONTRA GOVERNADOR DE ESTADO. DUPLO REGIME SANCIONATÓRIO DOS AGENTES POLÍTICOS: LEGITIMIDADE. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO: RECONHECIMENTO. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA DO STJ. PROCEDÊNCIA PARCIAL DA RECLAMAÇÃO.
 
1. Excetuada a hipótese de atos de improbidade praticados pelo Presidente da República (art. 85, V), cujo julgamento se dá em regime especial pelo Senado Federal (art. 86), não há norma constitucional alguma que imunize os agentes políticos, sujeitos a crime de responsabilidade, de qualquer das sanções por ato de improbidade previstas no art. 37, § 4.º. Seria incompatível com a Constituição eventual preceito normativo infraconstitucional que impusesse imunidade dessa natureza.
 
2. Por decisão de 13 de março de 2008, a Suprema Corte, com apenas um voto contrário, declarou que “compete ao Supremo Tribunal Federal julgar ação de improbidade contra seus membros” (QO na Pet. 3.211-0, Min. Menezes Direito, DJ 27.06.2008). Considerou, para tanto, que a prerrogativa de foro, em casos tais, decorre diretamente do sistema de competências estabelecido na Constituição, que assegura a seus Ministros foro por prerrogativa de função, tanto em crimes comuns, na própria Corte, quanto em crimes de responsabilidade, no Senado Federal. Por isso, “seria absurdo ou o máximo do contra-senso conceber que ordem jurídica permita que Ministro possa ser julgado por outro órgão em ação
diversa, mas entre cujas sanções está também a perda do cargo. Isto seria a desestruturação de todo o sistema que fundamenta a distribuição da competência” (voto do Min.Cezar Peluso).
 
3. Esses mesmos fundamentos de natureza sistemática autorizam a concluir, por imposição lógica de coerência interpretativa, que norma infraconstitucional não pode atribuir a juiz de primeiro grau o julgamento de ação de improbidade administrativa, com possível aplicação da pena de perda do cargo, contra Governador do Estado, que, a exemplo dos Ministros do STF, também tem assegurado foro por prerrogativa de função, tanto em crimes comuns (perante o STJ), quanto em crimes de responsabilidade (perante a respectiva Assembléia Legislativa). É de se reconhecer que, por inafastável simetria com o que ocorre em relação aos crimes comuns (CF, art. 105, I, a), há, em casos tais, competência implícita complementar do Superior Tribunal de Justiça.
 
4. Reclamação procedente, em parte. (STJ, Corte Especial, Recl 2790/SC, rel. Teori Zavascki, j. em 2/12/2009).
 
Entretanto, as ministras Rosa Weber (PET 3040/MA, de 2012) e Cármen Lúcia (ACO 2356, de 2014), ambas do STF, dão sinais na direção oposta, fazendo surgir a expectativa de que a Suprema Corte seguirá a linha que adotou na ADIN 2797, e afirmará que as autoridades políticas, como governadores e secretários de Estado, respondem em primeira instância pelos atos de improbidade administrativa da Lei 8.429/1992.
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