Por Vladimir Aras
Uma cidadã brasileira por direito de nascimento (jus soli) corre risco de ser extraditada para os Estados Unidos.
Por motivos que procuro explicar noutro post (“Extradição e entrega de brasileiros“), o artigo 5º, inciso LI, da Constituição de 1988 veda a extradição de brasileiros natos. Para os naturalizados, a extradição é possível se o procurado tiver cometido crime antes da naturalização, ou se houver praticado narcotráfico, antes ou depois de adquirir a nacionalidade brasileira.
Brasileira nata, Cláudia Cristina Sobral (também conhecida como Cláudia Hoerig) casou-se com cidadão americano. Depois foi acusada de matá-lo. Vale para ela a presunção de inocência (art. 5º, CF). O homicídio de que ela é suspeita aconteceu em Newton Falls, Estado de Ohio, em 12 de março de 2007, tendo como vítima Karl Hoerig, oficial condecorado da Força Aérea dos Estados Unidos (USAF).
No mesmo ano, Hoerig foi denunciada (indictment) perante o grande júri do condado de Trumbull.
Em função da aquisição voluntária da cidadania americana, Hoerig teria perdido a nacionalidade brasileira (art. 12, §4º, da CF). Tal situação de fato foi reconhecida por decisão do Ministério da Justiça, tomada no processo administrativo nº 08018.011847/2011-01, do qual resultou a portaria abaixo transcrita:
PORTARIA Nº 2.465, DE 3 DE JULHO DE 2013
O MINISTRO DE ESTADO DA JUSTIÇA, usando da atribuição conferida pelo art. 1 do Decreto n 3.453, de 9 de maio de 2000, publicado no Diário Oficial da União de 10 de maio do mesmo ano, tendo em vista o constante dos respectivos processos administrativos que tramitaram no âmbito do Ministério da Justiça, resolve:
DECLARAR a perda da nacionalidade brasileira da pessoa abaixo relacionada, nos termos do art. 12, §4º, inciso II, da Constituição, por ter adquirido outra nacionalidade na forma do art. 23, da Lei n 818, de 18 de setembro de 1949:
CLAUDIA CRISTINA SOBRAL, que passou a assinar CLAUDIA CRISTINA HOERIG, natural do Estado do Rio de Janeiro, nascida em 23 de agosto de 1964, filha de Antonio Jorge Sobral e de Claudette Claudia Gomes de Oliveira, adquirindo a nacionalidade norte-americana (Processo nº 08018.011847/2011-01).
Segundo o Ministério da Justiça, Hoerig optou voluntariamente pela nacionalidade estadunidense em 28 de setembro de 1999, quando jurou lealdade e fidelidade aos Estados Unidos, tendo com isto renunciado à cidadania brasileira. Para casar-se nos EUA, uma pessoa não precisa naturalizar-se. De acordo com as seções §316 e §319 da Immigration and Nationality Act (INA), o estrangeiro que pretende naturalizar-se deve declarar lealdade àquele país (oath of allegiance) nestes termos:
“I hereby declare, on oath, that I absolutely and entirely renounce and abjure all allegiance and fidelity to any foreign prince, potentate, state, or sovereignty, of whom or which I have heretofore been a subject or citizen; that I will support and defend the Constitution and laws of the United States of America against all enemies, foreign and domestic; that I will bear true faith and allegiance to the same; that I will bear arms on behalf of the United States when required by the law; that I will perform noncombatant service in the Armed Forces of the United States when required by the law; that I will perform work of national importance under civilian direction when required by the law; and that I take this obligation freely, without any mental reservation or purpose of evasion; so help me God.”
Diz o art. 22, inciso I, da Lei 818/1949, que perde a nacionalidade o brasileiro que, por naturalização voluntária, adquirir outra nacionalidade, mediante processo administrativo conduzido pelo Ministério da Justiça.
Diante disso dessa possibilidade, os Estados Unidos pediram ao STF a extradição de Hoerig do Brasil para aquele país (PPE n. 694, rel. min. Luiz Roberto Barroso). O pedido de prisão para fins extradicionais foi sustado na Corte Suprema, em função da interposição de mandado de segurança perante o STJ, contra a decisão do Ministro da Justiça, no qual foi concedida liminar.
A causa pendente de decisão no STJ funciona como questão prejudicial ao pronunciamento do STF no pedido de extradição. Eis o principal fundamento da liminar do STJ, que suspendeu os efeitos da Portaria 2.465/2013, do Ministro da Justiça:
Na hipótese, entendo relevantes os fundamentos jurídicos da impetração e da mais alta indagação a questão a ser dirimida oportunamente pela Primeira Seção desta Corte, relacionada a necessidade de manifestação inequívoca e objetiva do interessado para a declaração da perda da cidadania brasileira em caso de opção por outra nacionalidade (STJ, MS 20.439/DF, 1ª Seção, rel. min. Napoleão Nunes Maia Filho).
Caso o STJ denegue o mandado de segurança impetrado por Hoerig (MS 20.439/DF), caberá ao STF decidir se ela será a primeira (ex-)brasileira nata a ser extraditada, o que só será possível após a confirmação da perda de sua nacionalidade originária.
O parecer do MPF perante o STJ foi pela concessão da ordem, em favor da impetrante.
hoerig interpolHoerig também impetrou no STF o HC 119.221/DF, contra o Ministro da Justiça e a Interpol/Brasil, feito que tem o min. Luiz Roberto Barroso como relator. Ao que parece, pretende-se que não tenha efeito o mandado internacional de captura por aggravated murder (homicídio qualificado), crime previsto na seção 2903.1 do Código de Ohio, lançado contra ela na base de dados pública da Interpol (red notice), como se vê aqui.
Definida a questão da nacionalidade de Hoerig, o pedido extradicional no STF poderá ser julgado, com uma de duas soluções:
Se a procurada for tida como brasileira, o pedido norte-americano será indeferido de pronto, com base no artigo 5º, LI, da CF. Ademais, o artigo 7º do Tratado brasilo-americano estabelece que “Não há obrigação para o Estado requerido de conceder a extradição de um seu nacional. A autoridade executiva do Estado requerido, de acôrdo com as leis do mesmo, poderá, entretanto, entregar um nacional do referido Estado se lhe parecer apropriado“.
Caso Hoerig perca a cidadania brasileira, responderá a processo extradicional no STF (art. 102, CF), na forma do Tratado de Extradição entre o Brasil e os Estados Unidos (Decreto 55.750/1965), complementado pela Lei 6.815/1980 e pelo Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal. Porém, o STF condicionaria sua entrega ao compromisso formal do governo norte-americano de não aplicar a pena de morte ou a prisão perpétua (Extradição 1201/Estados Unidos, Pleno, rel. Celso de Mello, j. em 17/02/2011), uma vez que obrigações internacionais assumidas pelo Brasil e a Constituição brasileira de 1988 vedam tais sanções penais (art. 5º, XLVII).
O devido processo legal extradicional funciona assim como um modo de tutelar garantias fundamentais da pessoa procurada, de modo que nenhum indivíduo localizado e preso no Brasil, para fins de extradição, será entregue a outra nação para lá ser submetido à pena de morte (leia mais em “O efeito cliquet e a pena de morte“).
Se não for extraditada, a suspeita deve responder no Brasil pelo crime de que é acusada, segundo a regra aut dedere aut iudicare (“extradite ou processe”) e o artigo 7º, inciso II, alínea ‘b’, do Código Penal (extraterritorialidade condicionada da lei penal brasileira), podendo ser condenada ou absolvida. Somente um júri poderá dizer quem matou Karl Hoerig.
Caso parecido ocorreu em 1999 com o brasileiro Márcio Scherer, que matou um brasileiro no Hotel Waldorf Astoria em Nova York, fugiu para o Brasil, foi julgado no Rio de Janeiro e condenado pelo crime de roubo com resultado morte (latrocínio) (STJ, HC 28.464/RJ, rel. min. Gilson Dipp). Crime no exterior, julgamento no Brasil (art. 7º, CP).
Se definida a jurisdição criminal brasileira para o caso Hoerig, o juízo competente será o federal (art. 109, incisos III, IV e X da CF) da capital do Estado onde por último a suspeita residiu no Brasil antes do crime (art. 88 do CPP), onde se seguirá o rito do júri (arts. 406 a 497 do CPP), já que se tem, em tese, um crime doloso contra a vida.
Diferentemente do Brasil (um só CP e um só CPP), as 50 unidades federativas norte-americanas e o Estado associado de Porto Rico têm seus próprios códigos penais e processuais penais.
Lá, os processos do júri normalmente são julgados por um conselho de sentença formado por 12 pessoas, que decidem por unanimidade, ao passo que aqui são só 7 os jurados, decidindo por maioria.
Em Ohio, a pena para o “aggravated murder” é de prisão perpétua ou pena de morte (seções 2903.01 e 2929.02 do Código local), executada mediante injeção letal. A figura equivalente no nosso Código Penal é o homicídio qualificado, previsto no art. 121, §2º, com pena de 12 a 30 anos de reclusão. Nisto, estamos em companhia dos europeus, que também rejeitam a pena capital.
Outra diferença: conforme a seção §2901.13 do Código do Estado de Ohio (Statute of limitations for criminal offenses), o crime de homicídio não prescreve.
O caso ocorreu em 2007, mas, devido à disputa sobre a nacionalidade, o processo penal brasileiro ainda não começou. A prescrição ocorre em 20 anos, a contar da data do fato (art. 109, I, CP). E já se passaram 7 anos.
No Brasil, somente são imprescritíveis crimes de competência do TPI (art. 29 do Estatuto de Roma de 1998), o crime de racismo (art. 5º, XLII, CF) e a ação de grupos armados, civis ou militares contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLIV, CF).
Por que só o racismo? Homicídio também deveria ser imprescritível. Ou não?