Por Vladimir Aras
No Chile, devido às altas temperaturas de Verão e à necessidade de economia energética, o governo central estimula que todos os engravatados trabalhem sem o (in)útil adereço no pescoço. Já no Brasil estamos prestes a implantar o fundamentalismo em termos de dress code. Em Santiago, o ministro da Energia avisou: “En verano, quítate la corbata“. Aqui, o STJ determinou que mulheres só podem ingressar no prédio do “Tribunal da Cidadania” (sic) usando burkas. Oops. Isto não é aqui, não. Deixa ver. Ah, achei! O que o STJ fez foi estabelecer uma lista de calçados femininos “recomendados” e “não recomendados”. Nada de chinelos e sandálias, por exemplo. Veja aqui o que pode e o que não pode.
Não ficou claro se tamancos barulhentos são permitidos nos vastos espaços da Corte. O toc-toc-toc pode irritar o autor do index “sapatorum” prohibitorum, que, como se vê, é estilisticamente muito sensível.
Falando em latim, lembrei-me de uma advertência muito apropriada para este tema: Ne sutor ultra crepidam. Significa “Não vá o sapateiro além das sandálias”. Segundo Plínio, o Velho, a frase teria sido dita pelo célebre Apeles a um sapateiro, a quem ele pedira uma avaliação sobre o calçado que pintara numa obra para a corte de Alexandre Magno. Em bom português: só fale do que você entende. Ministro de tribunal superior não tem de cuidar dos sapatos dos seus jurisdicionados. Isto é tema de modelistas e fashionistas. Corredor de tribunal não é passarela. E o STJ tem mais o que fazer em prol do cidadão, que já está cansado de ser chutado que nem sapato velho
E falando em sapatos, lembrei do caso do juiz do Trabalho, de Cascavel, no Paraná, que em 2007 suspendeu uma audiência porque o reclamante, Seu Joanir Pereira, não estaria com o calçado apropriado para a solenidade do ambiente. Usava chinelos. Choveram tamancadas e bicudas no juiz. A Justiça do Trabalho, ainda mais no interior, atende muita gente sem recursos para o básico. Depois do soneto mal executado, veio a emenda. E ficou pior. Para costurar uma saída honrosa, o juiz Abscôncio Zapatero resolveu presentear o obreiro com um par de sapatos. Novos? Não, usados! O trabalhador, com toda a razão, subiu nos tamancos e rejeitou o generoso presente. Leia aqui.
É, amigo, além de becas e togas, o guarda-roupas de Têmis esconde vendas que não lhe permitem enxergar coisas mais escabrosas do que um cidadão vestido fora-da-lei.
Essa outra história eu não vi, mas me contaram. Há alguns anos tentaram proibir certas vestimentas num fórum da capital. Os desavisados chegavam lá, prontos para entrar, mas eram barrados no baile do Judiciário, tão cioso da pompa e dos salamaleques. Felizmente, não estamos na Inglaterra. Lá ainda hoje usam perucas nas sessões dos tribunais. Imagine ter de usar uma wig longa durante a canícula do Verão baiano.
“Proibido entrar de chinelos, bermudas e camisetas”, avisava um cartaz na porta do tribunal. “Gravata obrigatória nas sessões”, alertava outro. O cidadão, parte no processo, voltava desconsolado. Mas, por uma dessas maravilhas da criatividade e da livre iniciativa, alguém teve a ideia de alugar roupas formais para os incautos. Numa banquinha, perto do prédio judicial, podia-se obter desde gravatas até trajes completos. Problema resolvido, em troca de alguns trocados. O caimento dos modelitos nunca era perfeito. Mas isto era um problema menor, tamanho P.
No meu caso, nem esta chance tive. Eu ainda era estudante de Direito na Católica. Primeira semana de aula, final dos anos 1980. Na companhia de alguns colegas, fomos ao Tribunal de Justiça da Bahia, onde, desde 1949, estão os restos mortais de Rui Barbosa. O mausoléu foi inaugurado naquele ano em comemoração ao primeiro centenário do seu nascimento. Na sua cripta se lê: “Estremeceu a pátria, viveu no trabalho e não perdeu o ideal”. Ali, imaginava eu, era uma casa de homens justos e sensatos. Afinal, era a corte sucessora do primeiro Tribunal das Américas, fundado em 1609, com o nome de Tribunal da Relação da Bahia.
Trezentos e oitenta anos depois da criação da Corte, entrei pela primeira vez na sala de sessões de uma das Câmaras Cíveis do Fórum Rui Barbosa, ali no Campo da Pólvora. Eu estava ávido por conhecimentos jurídicos. Contudo, minha primeira lição não foi sobre textos de lei, mas sobre os têxteis e a lei.
Assim que entrei, o “capinha” me olhou de longe. Fiquei intrigado com aquele clone do Batman me fitando. De repente, ele veio de lá, com seu manto negro esvoaçante, e foi direto na minha jugular:
— “Onde está sua gravata, rapaz?”, perguntou o morceguinho, com um sorriso entredentes. E emendou: – “Aqui não é permitido permanecer com vestimentas inapropriadas”.
—“Mas eu sou estudante!”, gaguejei, atônito.
— “Não adianta, meu jovem. Estou cumprindo ordens. O código de vestimentas tem de ser cumprido. Ou põe gravata ou te ponho fora”, sentenciou.
Fui sumariamente expulso do recinto. Sem direito a defesa, nem contraditório. E sem o devido processo legal. O procurador de Justiça presente não deu um pio. Os advogados que aguardavam suas sustentações orais nem se mexeram. O vetusto desembargador Asmodeu Tailor não gostava que maltrapilhos assistissem às sessões de sua Câmara Cível. O magistrado era grave como um túmulo. “Talvez seja um desses sepulcros caiados de que falou Jesus em Mateus 23:27“, pensei comigo.
Não importava. O certo é que, para ele, fosse quem fosse, homem só podia ficar na assistência se trajasse terno e gravata. E eu estava de calça jeans, sapatos fechados e camisa social. Quase nu.