Por Vladimir Aras
Rui Barbosa era polêmico mas fenomenal. Sua inteligência e paixão, aliadas a um assombroso domínio do vernáculo, produziram páginas magníficas da literatura jurídica e da crônica política brasileiras.
O 5 de novembro de 2019 marcou os 170 anos de nascimento desse jurista formidável, que honrou a tribuna como senador e advogado, orgulhou a Bahia e “estremeceu a Pátria”.
É uma pena que conheçamos tão pouco de seu gênio e costumemos repetir quase sempre a mesma frase sua sobre o triunfo das nulidades. Sim, como vemos nos altos foros e nas casas de leis, elas triunfam aqui, ali e em quase todos os rincões do Brasil.
Vencem nos foros brasilienses, prosperam nos gabinetes das capitais, refestelam-se às custas da fortuna da Nação e da vida das vítimas. Mas essas nulidades haverão de ser devidamente entregues ao olvido. Ganharão todas elas seus rodapés sombrios nas páginas rotas deste tempo ruim, de falta de justiça e de homens justos, tempo que haverá de passar.
Não só de amargura, boçalidade, corrupção e desalento somos feitos. Nossa nação tem fibra, fervor e força; é resiliente, robusta e rica. Somos o Brasil, “florão da América.” É isso o que me vem ao espírito quando releio discursos e conferências desse grande brasileiro. E na mesma hora esqueço as falsas lições de quem não sabe o que é justiça e muda de opinião ao sabor de vistosas oportunidades.
Há pouco mais de um século, no dia 20 de março de 1919, no Teatro Lírico do Rio de Janeiro, o inesquecível senador e jurista Rui Barbosa deixou-nos uma bela lição sobre o que somos e sobre o que não devemos ser como país.
Na eleição presidencial que ocorreria em 13 de abril de 1919, Rui disputava o Palácio do Catete com o senador paraibano Epitácio Pessoa. Aquela era uma eleição incomum. Rodrigues Alves, o presidente eleito no ano anterior, não tomou posse porque fora vitimado pela gripe espanhola em janeiro de 1919. A pandemia de H1N1 se abateu sobre o planeta ainda durante a 1ª Guerra Mundial e cobrou a vida de milhões de pessoas. A eleição brasileira foi convocada e dois senadores se tornaram os principais contendores. O mundo passava pelo rescaldo da 1ª Grande Guerra e da Revolução Bolchevique, de 1917.
Um dado muito curioso marcou a sucessão brasileira daquele ano. Um dos postulantes não estava no Brasil durante o processo eleitoral nem no dia da eleição. Epitácio Pessoa, que acabou sendo eleito presidente com mais de 70% dos votos, achava-se fora do País, como chefe da delegação brasileira à Conferência de Paz de Paris, da qual resultou a formalização do Tratado de Versalhes de 1919 e a criação da Liga das Nações. Somente em julho daquele ano, o presidente eleito chegou ao Brasil.
Estando na capital francesa durante a campanha, Epitácio Pessoa, o candidato do establishment, não precisou comparecer a comícios (“meetings”, como alguns diziam) nem teve de pedir votos. Sequer teve de sufragar o próprio nome. Com o predomínio do voto de cabresto e do coronelismo, o resultado das urnas já era conhecido antes de 13 de abril de 1919. Pessoa seria o presidente do Brasil.
Como ex-ministro do STF e ex-Procurador-Geral da República, credenciais não lhe faltavam, mas o jogo de cartas marcadas incomodava a oposição, encabeçada por Rui Barbosa, e era um dos indícios do nosso subdesenvolvimento.
Durante a campanha, Rui mostrou-se indignado com o atraso reinante no Brasil e com nossa péssima imagem aos olhos do mundo. Naquele meeting no Teatro Lírico da antiga capital federal, Rui assim se dirigiu aos seus compatriotas:
“O BRASIL NÃO É ISSO
Mas, senhores, se é isso o que eles vêem, será isto, realmente, o que nós somos? Não seria o povo brasileiro mais do que esse espécimen do caboclo mal desasnado, que não se sabe ter de pé, nem mesmo se senta, conjunto de todos os estigmas de calaçaria e da estupidez, cujo voto se compre com um rolete de fumo, uma andaina de sarjão e uma vez d’aguardente? Não valerá realmente mais o povo brasileiro do que os conventilhos de advogados administrativos, as quadrilhas de corretores políticos e vendilhões parlamentares, por cujas mãos corre, barateada, a representação da sua soberania?
Deverão, com efeito, as outras nações, a cujo grande conselho comparecemos, medir o nosso valor pelo dessa troça de escaladores do poder, que o julgam ter conquistado, com a submissão de todos, porque, em um lance de roleta viciada, empalmaram a sorte e varreram a mesa?
Não. Não se engane o estrangeiro. Não nos enganemos nós mesmos. Não! O Brasil não é isso. Não! O Brasil não é o sócio de clube, de jogo e de pândega dos vivedores, que se apoderaram da sua fortuna, e o querem tratar como a libertinagem trata as companheiras momentâneas da sua luxúria.
Não! O Brasil não é esse ajuntamento coletício de criaturas taradas, sobre que possa correr, sem a menor impressão, o sopro das aspirações, que nesta hora agitam a humanidade toda.
Não! O Brasil não é essa nacionalidade fria, deliqüescente, cadaverizada, que receba na testa, sem estremecer, o carimbo de uma camarilha, como a messalina recebe no braço a tatuagem do amante, ou o calceta, no dorso, a flor-de-lis do verdugo.
Não! O Brasil não aceita a cova, que lhe estão cavando os cavadores do Tesouro, a cova onde o acabariam de roer até aos ossos os tatus-canastras da politicalha. Nada, nada disso é o Brasil.
O QUE É O BRASIL
O Brasil não é isso. É isto. O Brasil, senhores, sois vós. O Brasil é esta assembléia. O Brasil é este comício imenso de almas livres. Não são os comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesoiro. Não são os mercadores do Parlamento. Não são as sanguessugas da riqueza pública. Não são os falsificadores de eleições. Não são os compradores de jornais. Não são os corruptores do sistema republicano. Não são os oligarcas estaduais. Não são os ministros de tarraxa. Não são os presidentes de palha. Não são os publicistas de aluguer. Não são os estadistas de impostura. Não são os diplomatas de marca estrangeira.
São as células ativas da vida nacional. É a multidão que não adula, não teme, não corre, não recua, não deserta, não se vende. Não é a massa inconsciente, que oscila da servidão à desordem, mas a coesão orgânica das unidades pensantes, o oceano das consciências, a mole das vagas humanas, onde a Providência acumula reservas inesgotáveis de calor, de força e de luz para a renovação das nossas energias.
É o povo, em um desses movimentos seus, em que se descobre toda a sua majestade.”
Essa magnífica passagem foi registrada em “A questão social e política no Brasil. Discurso proferido por Rui em 20 de março de 1919 no Teatro Lírico do Rio de Janeiro“. In: Pensamento e ação de Rui Barbosa, Coleção Biblioteca Básica Brasileira, 1999, p. 370-371.
O senador Rui iniciou seu libelo sobre a questão social e política no Brasil com uma referência a Jeca Tatu, personagem do livro Urupês, de Monteiro Lobato, que fora publicado em 1918. Depois, sua conferência ganha espírito, potência e cores, numa exaltação a nossos valores. Infelizmente, há cem anos como hoje, a oração de Rui foi debalde. Mas uma hora o gênio desse que foi um de nossos patriarcas se fará ouvir.
Quando vemos nossas instituições corroídas e desacreditadas, arrastando-se em erros, simonias e conchavos, atrasando-se em esquemas, comedeiras e conúbios espúrios, lembremos da viva exortação de Rui e a tenhamos como inspiração, como estímulo, como encorajamento, como norte. Haverá melhores dias. O Brasil não é isto…
O senador Renan Calheiros, então presidente do Senado, sob o busto de Rui Barbosa, patrono da Câmara Alta. (Fonte: Internet).
[Artigo publicado originalmente no site JOTA em 5 de novembro de 2019]