Chapada Diamantina

O bom ladrão

Como era de praxe durante as férias forenses de janeiro, tínhamos de suprir as deficiências de lotação e fazer o périplo pelas cidades diamantinas para despachar os autos com carga ao Ministério Público Estadual

Por Vladimir Aras

Era o verão de 1994. A maioria das comarcas da belíssima Chapada Diamantina, na Bahia, estavam sem promotor e sem juiz. Defensor público ainda hoje é um luxo impensável. Naqueles anos então nem se falava. Do lado oriental da Chapada, estava eu, recém-ingresso no Ministério Público da Bahia, turma de 1993. Do outro lado, no rumo de Brasília, estava Almiro Sena Soares Filho, titular da comarca de Seabra, colega que neste mês de janeiro foi nomeado para o cargo de Secretário de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do Estado.

Como era de praxe durante as férias forenses de janeiro, tínhamos de suprir as deficiências de lotação e fazer o périplo pelas cidades diamantinas para despachar os autos com carga ao Ministério Público Estadual. Aviar diligências, denunciar suspeitos, preparar alegações finais. Dar conta do que houvesse. Minha base era a pequena Utinga, na Chapada Setentrional, sede da comarca de mesmo nome que acabara de ser instalada e que englobava os municípios de Wagner – antiga Cachoeirinha, que prosperou após a fundação em 1906 do Instituto Ponte Nova, por presbiterianos norte-americanos da Missão Central do Brasil – e a minúscula Bonito, situada 990 metros acima do nível do mar e que já despontava na produção de café e, acreditem, morangos.

Naquele mês, num canícula insuportável, percorri um trecho da BA-122 e depois parte da BR-242 (a famosa Bahia-Brasília, então totalmente esburacada) num Gol preto, placa MK-9999, ano 1993, comprado de segunda mão poucos dias antes. O carro não tinha ar, mas tinha um imprescindível aerofólio traseiro, “tunagem” essencial para fazer bonito no sertão.

Ao alcançar a rodovia federal, tomei o rumo da capital das Lavras Diamantinas, a bela Lençóis, antiga cidade garimpeira que chegou a sediar um vice-consulado francês em pleno século XIX. Num salto de mais de um século no tempo, naquele recesso forense de 1994, eu teria de visitar as comarcas de Andaraí, Lençóis, Palmeiras, Iraquara e Souto Soares, e atuar como auxiliar na Promotoria de Seabra, ali pertinho do centro geodésico da Bahia, onde fica o majestoso Morro do Pai Inácio. Esquecendo os buracos e os perigos da estrada, a viagem pelos contrafortes, planaltos e vales da Diamantina era uma agradável aventura. Jacas e melancias sempre à mão. Cachoeiras e riachos ao alcance de uma caminhada. Paisagens lindíssimas no horizonte. Simpáticos caroneiros na estrada. Junto comigo levava Alceu Valença, Geraldo Azevedo e Almir Satter. La Belle de Jour e Tocando em Frente eram minhas companheiras preferidas. Não vou mentir. De vez em quando também punha Leandro e Leonardo e Abba para tocar. Não era CD nem mp3. Só tinha fita cassete. E era bom.

Sempre gostei muito de Lençóis. Um tio materno fora juiz de Direito na cidade. Numa das férias de infância que lá passei, minha mãe achou uma cobra dentro do forno da casa. Ninguém teve tempo de ver se era uma jiboia ou uma sucuri, constritoras “do bem”, ou se era uma mortal jararaca. Só sei que o susto foi enorme. Anos antes, eu estivera na cidade numa excursão da Escola Experimental, na qual estudei nos anos 1980. Naquela viagem quase morri afogado ao escorregar sem querer pelo tobogã do Rio Mucugezinho. Um terror. Não sei a professora Amabília Almeida, a “Bila”, saudosa diretora da escola, me perdoou a travessura. Não me afoguei mas ela quase teve um treco.

Voltei mais de uma década depois. Ao chegar ao centro de Lençóis, então habitada por umas 8 mil almas deste mundo e outras tantas do outro, fui direto para a sede da Delegacia de Polícia, para verificar como andavam os inquéritos. Na verdade, os casos não andavam. Ficavam parados e modorrentos à espera de um impulso miraculoso. Aliás, ali quase nada se movia, salvo as águas do Rio Serrano, despencando da encosta por entre os grotões. A cidade ainda não tinha despertado definitivamente para o ecoturismo e o turismo de aventura como hoje. O aeroporto nem existia. Havia poucas pousadas e ainda era possível hospedar-se no hoje ótimo hotel Canto das Águas por preços módicos. O cenário era de uma vilinha tirada de uma novela de Dias Gomes.

Como em muitas cidades do interior, na época a delegacia funcionava sob o prédio da Prefeitura Municipal, na parte posterior, numa das muitas ladeiras lençoenses. Acho que era um tradição portuguesa. A própria Salvador tivera edifício assim. No subsolo do Palácio Tomé de Souza, sede da Câmara Municipal da primeira capital do Brasil, funcionara a cadeia pública da época colonial. Era a Casa de Câmara e Cadeia, fundada no século XVI. Lençóis tivera algo semelhante. Em cima ficava o governo municipal; embaixo os que governam sem leis. Engraçado é que esse pessoal às vezes troca de lugar e corremos o risco de nem notar a diferença.

Dei a volta no paço municipal e lá fui eu, todo enfatiotado no meu paletó barato e calorento, conversar com o delegado. Eu era 105 gramas mais gordo que o ex-senador Marco Maciel. Venci o vento e a ladeira mas logo percebi que o setor policial do prédio estava fechado. Chamei e ninguém atendeu, embora fosse uma tarde de segunda-feira. Eu sabia que ali havia uma carceragem e me esgoelei tentando atrair a atenção do carcereiro. Finalmente, ouvi uma voz tímida ao fundo. Com ar austero – como convinha a um menino de 23 anos que de repente virara “autoridade” – troquei algumas palavras com a pessoa e lhe pedi educadamente que viesse abrir a porta e o portão externo de ferro para que eu entrasse.

– Eu posso até fazer isso, doutor… Mas se fizer estarei descumprindo ordem do juiz. Eu tô proibido de sair daqui -, ele respondeu.

Intrigado, indaguei o porquê. Ele me disse:

– O pessoal do plantão me deixou aqui para eu tomar conta da delegacia. Sou o único preso da cidade, doutor.

Era mesmo! Porém, ele continuou assim por pouco tempo. A população carcerária de Lençóis logo seria reduzida a zero. Quando cheguei ao fórum, pedi o processo do Zé (era um furto qualquer), examinei a papelada e pedi ao juiz da comarca vizinha que mandasse soltar o detido. Por bom comportamento, é claro. E também por razões humanitárias. Um calor daquele ninguém aguentava. Já era castigo suficiente.

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