Por Vladimir Aras
Lembro-me bem. Estava na sede da Promotoria de Justiça de Feira de Santana fazendo atendimentos. O telefone tocou. Meu irmão, esbaforido (ou era espavorido?), me mandou ligar a televisão. “A Terceira Guerra Mundial começou“, disse ele. Não acreditei no que via. Era um evento hollywoodiano. Naquele momento parecia que os russos tinham atacado Nova Iorque. Seria o fim.
Mas foi o começo de uma nova era: a era do terror, a era das guerras assimétricas. Não mais países contra países; agora nações digladiavam com organizações terroristas. Começava a GWOT – Global War on Terror, a guerra mundial contra o terror. Um cowboy texano daria o primeiro tiro.
O regime global antiterror vinha sendo construído havia alguns anos, mas em setembro de 2001 o enfoque mudou. Desde 1963, sob os auspícios da ONU, a comunidade internacional elaborara 12 instrumentos universais para a prevenção e supressão do terrorismo. A isto se somavam as várias resoluções do Conselho de Segurança da ONU com o mesmo propósito. Este era o caminho baseado na força do Direito. Depois dos atentados de 2001, os Estados Unidos se tornaram mais cooperativos em matéria de persecução penal transnacional, inclusive em casos de lavagem de dinheiro e crime organizado. Mas o direito internacional passou a importar muito pouco. Como se viu no caso Hamdan v. Humsfeld (548 US 557), julgado pela Suprema Corte americana em 2006, até as Convenções de Genebra haviam sido “rasgadas” pelo governo Bush. Optou-se pela força dos exércitos.
O tenebroso ataque às Torres Gêmeas de Nova Iorque matou umas 3 mil pessoas. Depois disso centenas, talvez milhares, de vítimas indiretas da catástrofe morreram em razão de doenças provocadas pela poeira tóxica que inalaram após o desabamento do World Trade Center. Neste aniversário de uma década, a contabilidade é macabra: mais de 6 mil soldados norte-americanos morreram em combate no Iraque e no Afeganistão. Outros 32 mil foram feridos ou mutilados e uns 40 mil passaram a sofrer de estresse pós-traumático em virtude das campanhas no Oriente Médio. Um preço muito alto a pagar.
E as vítimas do “outro lado”, quem as conta? Entre os provavelmente culpados — como Osama bin Laden — e os seguramente inocentes — as populações civis atingidas por ataques aéreos e pelos bombardeios e tiroteios em solo — as baixas de guerra já chegam à casa das dezenas de milhares. Enquanto um país inteiro – a Somália, bem ali perto – morre de fome, uma fortuna incalculável é queimada pelo complexo industrial-militar norte-americano. Matam em nome das vítimas do 11 de setembro. Talvez a maior homenagem que se lhes poderia prestar hoje seria o fim da guerra.
Alguns entes terroristas visam a abalar a democracia, eliminar direitos fundamentais e limitar liberdades públicas. Paradoxalmente, as práticas estatais dos Estados beligerantes parecem ter levado a isto.
A legislação de emergência aprovada nos dias que se seguiram ao 11 de setembro reduziu várias garantias individuais. O USA Patriot Act (Uniting and Strengthening America by Providing Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism Act), sancionado a toque de caixa em 26 de outubro de 2001, é o exemplo acabado de uma lei passional. No calor dos eventos, permitiu a interceptação de comunicações sem ordem judicial e “escutas itinerantes” ou “errantes” (roving wiretaps). Os cidadãos americanos tiveram sua privacidade ameaçada por um Estado espião. Os suspeitos estrangeiros começaram a ser tratados como combatentes inimigos ilegais e foram privados das garantias previstas no direito internacional humanitário de Genebra. Muitos foram abduzidos nos chamados voos secretos da CIA. Outros tantos foram mantidos encarcerados em Guantánamo sem acusação formal. Vários desses prisioneiros de guerra não puderam ter acesso aos órgãos judiciários federais ordinários. As comissões militares funcionavam como tribunais de exceção, nos quais se admitia tortura, eufemisticamente chamada de harsh investigation technique. A tortura visava à confissão, tal como na Idade Média. Mas já estávamos no século XXI.
Essas técnicas coercitivas de interrogatório incluíam privação de sono, sujeição do prisioneiro a manter-se de pé até a exaustão física, prisão em celas sem aquecimento, encarceramento em ambientes hiper-iluminados, e simulação de afogamento (water boarding). As “provas” assim colhidas seriam analisadas pelas comissões militares constituídas pelo governo Bush, que suprimia a jurisdição dos tribunais civis. Segundo uma das ordenanças militares baixadas pelo Executivo logo após os ataques de 11 de setembro de 2011 (Military Commission Order no. 1), seria permitido o uso de provas secretas contra o acusado, em casos de risco para a segurança nacional ou para a integridade de informantes, testemunhas e membros do serviço secreto e das forças de segurança. Em certos casos, o defensor público militar poderia ter acesso a tais provas, mas estaria proibido de revelar seu conteúdo e natureza ao acusado.
Depois da violação do direito internacional e do direito constitucional, vieram os “vants”, os veículos aéreos não-tripulados. Inicialmente utilizados para mapear terrenos, esses aviõezinhos de controle remoto tornaram-se úteis instrumentos para lançamento de bombas sobre alvos em terra. Como num videogame…
Mesmo assim, com tamanho poderio militar e de vigilância eletrônica, os Estados Unidos ainda não conseguiram vencer as milícias afegãs nem pacificaram o Iraque. O Paquistão é o novo campo de batalha, embora não declarado. Um trilhão de dólares foram gastos até agora em guerras, espionagem (inclusive com o uso do fantasmagórico Echelon), operações secretas e em segurança interna e assistência médica para veteranos. Saddam Hussein e Osama bin Laden estão mortos, mas o sectarismo terrorista continua incólume.
O terrorismo começa onde finda o diálogo. Dez anos depois, vê-se claramente que alguma coisa está errada. Talvez seja o próprio conflito armado. Toda guerra é também uma forma de terror.