por Vladimir Aras
Calma nos dois lados. Não se alegrem nem se exasperem. O Dia do Fico é o 9 de janeiro de 1822 e agora, neste 31 de
dezembro de 2010, termo final de seu governo, o presidente Lula
não anunciou um terceiro mandato. Mas anteontem deu uma entrevista que pode soar como um desafio às cortes de Lisboa Brasília, Roma e Estrasburgo, tal qual Pedro I fez há 188 anos com os lusitanos:
“Não existe represália da
Itália. O Brasil é soberano… Nós já ganhamos maioridade; cada um
faz o que quiser; o Brasil toma a decisão que quiser“.
Esta frase resume uma das últimas polêmicas que Luís Inácio Lula da Silva enfrentará como presidente da República. O tema é o caso
Battisti. Quando se referiu ao “Brasil”, Lula falava de si mesmo. Para entender o imbroglio à italiana, leia o post “A Cesare o que é de Cesare: arrivederci” que escrevi em abr/2010 quando o STF autorizou a extradição de Battisti para a Itália.
A declaração de Lula foi registrada pelo jornal A Tarde, de Salvador, em 29/dez. O presidente Lula, que entrará para a história deste País por vários motivos, poderia poupar este arranhão a sua estrondosa
popularidade, que se espraia por todo o mundo. O Brasil é soberano, sim. Mas não faz “o que quer”. Faz o que lhe permitem a Constituição e os tratados internacionais.
Em
abr/2010, o STF decidiu mandar Battisti de volta para casa, de onde
fugiu e onde lhe espera uma condenação à prisão
perpétua. Em março/2011, Battisti completará quatro
anos no cárcere brasileiro. Se for extraditado, Roma terá de
assumir o compromisso de comutar a sanção para no máximo 30 anos.
Esta é a tradição brasileira. O presidente Lula está com a bola no
pé, na marca do pênalti. Esperou até a
undécima hora para decidir o destino de Battisti e pediu uma
avaliação jurídica à sua assessoria. Ninguém sabe o que o
Advogado-Geral da União Luís Inácio Adams
-cujo nome chegou a ser cogitado para o STF na vaga
do ministro aposentado Eros Grau -,
recomendou ao seu xará presidente. No momento em que
escrevo, o parecer da AGU ainda não foi divulgado, mas todos
especulam que o pronunciamento servirá para legitimar a concessão
de asilo político a Cesare Battisti. – “Eu não fico.
Mas ele fica“, teria dito Lula (esta citação eu
inventei). Esta história ainda vai render. Qualquer que seja o
desfecho (fica-não-fica, extradita-não-extradita), Lula deixará
para a presidente Dilma Roussef um enorme abacaxi a
parmigiana. Se o governo disser que Battisti fica,
isto não implicará sua soltura imediata. O STF mandou prendê-lo
conforme a CF e a Lei 6.815/80; só STF pode mandar
soltá-lo. O recesso da corte termina em fevereiro.
Neste meio tempo, a Itália poderá preparar suas razões para
questionar a decisão presidencial. Seguramente, o advogado Nabor
Bulhões argumentará que o tratado bilateral ítalo-brasileiro (Decreto
863/1993) não admite
gambiarras. O espaço de discricionariedade da
presidência da República é muito estreito
e está devidamente delimitado pelos arts. 3º a 6º do
tratado, que lista todas as justificativas para a não entrega do
foragido. Nenhuma delas é aplicável a Battisti. Por outro lado, a
concessão de refúgio está descartada,
porque o STF já invalidou a decisão do Ministro da Justiça. Resta o
asilo político (art. 4º, inciso X, da
CF). Razões humanitárias ou enfermidade grave não são motivos
válidos para a recusa; acarretam apenas o adiamento
da entrega do extraditando ao Estado requerente
(art. 15, §3, do tratado). Outra pedra no caminho que
não leva a Roma Em março/2010, Battisti foi
condenado no Brasil por uso de passaporte
falso. O processo correu na 2ª Vara Federal do Rio
de Janeiro e o juiz mandou que ele cumpra 2 anos de reclusão em
regime aberto. Isto não impede sua extradição (vide o caso
Ramiréz-Abadía), mas pode retardá-la (art. 15, §1, do tratado). É a
chamada entrega diferida: o réu seria extraditado,
mas não agora. De todo modo, a existência dessa
condenação criminal por delito praticado no Brasil pode dificultar
ainda mais uma solução jurídica
legítima para a permanência de Battisti no País.
Existe a rotina da expulsão de
estrangeiros condenados por crime no Brasil, nos termos do art. 68
do Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/80):
Art.
68. Os órgãos do Ministério Público remeterão ao Ministério da
Justiça, de ofício, até trinta dias após o trânsito em julgado,
cópia da sentença condenatória de estrangeiro autor
de crime doloso ou de qualquer crime contra a
segurança nacional, a ordem política ou social, a economia popular,
a moralidade ou a saúde pública, assim como da folha de
antecedentes penais constantes dos autos. (
Parágrafo único. O Ministro da Justiça, recebidos os
documentos mencionados neste artigo, determinará a instauração de
inquérito para a expulsão do
estrangeiro.
Um dos motivos para
a expulsão (que não se confunde com a extradição) é a prática de
“fraude a fim de obter a sua entrada ou
permanência no Brasil” (art. 65,
parágráfo único, letra ‘a’, da Lei 6.815/80). Parece ser o caso de
Battisti, pois o passaporte falso por ele usado (fraude)
destinou-se a assegurar sua entrada de forma incógnita no País,
para aqui permanecer em situação de clandestinidade. Vale dizer: se
não for mandado direto para a Itália em função da extradição
autorizada pelo STF, Battisti poderá ser expulso do
Brasil por decisão do Ministério da Justiça,
como normalmente acontece com qualquer
estrangeiro. Não sabemos se com este será
diferente. Em jogo não estão posições de esquerda ou de direita. Em
jogo, está uma posição de Direito. O que importa é a legalidade e o
princípio pacta sunt servanda. O
Brasil assumiu um compromisso com a Itália. O
Congresso o aprovou. O STF decidiu que o tratado é válido e que a
extradição é cabível. No cenário global de luta contra o crime,
nenhum presidente da República pode agir por voluntarismo, por
melhor que seja o seu histórico e sua história. Se não quiser
cumprir o tratado, o Brasil deverá denunciá-lo
(art. 22, §4, do acordo), mas a rescisão unilateral
do vínculo internacional só produzirá efeito seis meses após a
ciência da Itália enão terá eficácia retroativa
(tempus regit actum). Nem isto
livra Battisti. A decisão de extraditar ou não extraditar não está
no campo da cortesia internacional (comitas
gentium), ou da boa vizinhança. Trata-se de um
verdadeiro dever de colaborar para a
persecução de um crime (art. 1º do tratado), independentemente de
colorações ideológicas, em linha com os princípios da legalidade e
da justiça penal universal. Cuida-se também de um dever de
cooperação voluntariamente assumido
pelo Estado brasileiro. É cumpri-lo ou esperar as represálias
italianas. Quando precisarmos extraditar um criminoso brasileiro
que se esconda na Itália, ouviremos um sonoro não. Portanto,
ainda que Lula decida que hoje, 31/dez, é o Dia do
Fico para Cesare Battisti, a última palavra
continuará sendo do Supremo Tribunal Federal, no que diz respeito à
legalidade de sua decisão e sua adequação ao tratado de extradição
e à Lei 6.815/80. Para o bem de (quase) todos e a felicidade geral
das nações, nosso príncipe regente
presidente deve dizer às cortes que o italiano não
fica.