Direito Internacional

Kadafi e o atentado de Lockerbie

Em dez/1988, um avião da extinta companhia aérea Pan Am foi destruído sobre a cidade escocesa de Lockerbie, na Escócia

por Vladimir Aras

Costuma-se dizer que o ditador Muammar Kadafi está ligado a inúmeros crimes horrendos, dentro e fora da Líbia. Além das torturas e homicídios cometidos contra seus concidadãos ao longo dos seus 40 anos de tirania e dos crimes contra a humanidade praticados este ano contra populações civis, na recente revolta líbia, há sérios motivos para crer que o coronel Kadafi teria ordenado um dos mais terríveis atentados do século XX.

Em dez/1988, um avião da extinta companhia aérea Pan Am foi destruído sobre a cidade escocesa de Lockerbie, na Escócia. A derrubada do voo 103, que partira de Londres com destino a Nova Iorque, pôs no chão um Boeing 747, matando todos os seus 259 passageiros e 11 pessoas em solo. O Procurador-Geral escocês (Lord Advocate) Colin Boyd, resumiu a tragédia: “400 pais perderam um filho ou filha, 46 pais perderam seu único filho, 65 esposas tornaram-se viúvas, 11 maridos perderam suas mulheres, 140 filhos perderam ao menos um dos pais e 7 crianças ficaram completamente órfãs”. Muitos dos passageiros da aeronave foram lançados ao vazio pela explosão para uma queda de 9.400m que durou até dois minutos.

A investigação realizada pela polícia da Escócia com ajuda de agências norte-americanas identificou Abdel Basset Ali al-Megrahi e Al Amin Khalifa Fhimah, agentes dos serviços de segurança líbios, como autores do atentado, e descobriu que eles usaram explosivos plásticos (Semtex) com um detonador improvisado (IED). A Promotoria escocesa pediu e o Sheriff de South Strathclyde, Dumfries e Galloway – na Escócia alguns juízes de primeiro grau são chamados de xerifes – ordenou a prisão e extradição dos líbios.

Em 1991, os dois suspeitos foram denunciados pela Promotoria escocesa (leia aqui a denúncia – indictment). Ainda não se sabia, mas os dois seriam julgados na Holanda, por um tribunal especial formado por juízes escoceses. A corte foi dotada de personalidade jurídica própria e prerrogativas e imunidades semelhantes às de uma legação diplomática.

A idéia de constituição de tal tribunal partiu do professor Robert Black, da Universidade de Edimburgo. Kadafi se recusara a extraditar os suspeitos para o Reino Unido. Em jan/1992, o Conselho de Segurança das Nações Unidas determinou a entrega de ambos à Escócia. Como o governo manteve a recusa de extraditar os acusados, em abril daquele ano o CS/ONU baixou uma nova resolução proibindo vôos para a Líbia e a venda de armas e aeronaves ao país.

Em 1994, o FBI ofereceu uma recompensa de US$ 4 milhões pela captura de Al-Megrahi e Fhimah. Nenhum bounty hunter teve sucesso. Foi a própria Líbia que, sob pressão comercial dos Estados Unidos, resolveu cumprir as Resoluções 731 (1992), 748 (1992) e 883 (1993) da ONU e entregou os acusados à Justiça escocesa em abr/1999, mais de dez anos depois da tragédia.

Embora líbios natos, os réus foram extraditados por Trípoli e transferidos para Camp Zeist, perto de Utrecht, na Holanda. Graças a um tratado bilateral assinado em set/1998 pelos Países Baixos e o Reino Unido (leia aqui), pela primeira vez na História um tribunal nacional foi instalado em outro país para a realização de um julgamento criminal: uma corte escocesa de 3 juízes, reuniu-se na Holanda, ouviu testemunhas de 13 países em 8 idiomas, e julgou 2 réus líbios segundo as leis da Escócia, num crime contra avião de uma companhia aérea norte-americana, cuja explosão em voo vitimou pessoas de 21 nacionalidades. A acusação deste extraordinário caso coube aos promotores Alistair Campbell e Alan Turnbull, do Crown Office and Procurator Fiscal Service (COPFS), o Ministério Público escocês.

O julgamento da Corte Escocesa na Holanda durou vários meses, ao custo de 60 milhões de libras esterlinas. Fhimah foi absolvido, entre outros motivos porque seus advogados provaram um firme álibi. O réu estava na Suécia no dia do atentado. Já Al-Megrahi foi considerado culpado. Leia aqui a sentença proferida em jan/2001.

Embora condenado a prisão perpétua pela High Court of Justiciary at Camp Zeist, Al-Megrahi foi solto em ago/2009 por determinação do Ministro da Justiça da Escócia que entendeu existentes “razões humanitárias”. Perícias médicas comprovaram que o terrorista padecia de câncer de próstata em fase terminal e que morreria em poucos meses.

 

Al-Megrahi está vivo até hoje, isto é, se Kadafi não mandou queimar este arquivo durante a revolta popular que enfrenta desde fevereiro/2011. Se for capturado com vida, Al-Megrahi será julgado nos Estados Unidos, como quer o presidente Barack Obama. Neste caso, seu destino também pode ser a morte.

Al-Megrahi pode ser inocente?

O professor Robert Black acredita na inocência de Al-Megrahi e afirmou mais de uma vez (lei aqui post em seu blog) que as provas apresentadas pela Promotoria escocesa contra o sentenciado eram insuficientes para a condenação. Como a investigação sobre o atentado foi realizada por serviços secretos de vários países, a defesa do líbio alegou que várias das provas disponíveis não lhe foram reveladas, especialmente as recolhidas pela CIA.

várias teorias conspiratórias em torno do caso, que reforçam a suspeita de que o evento de Lockerbie foi marcado por um erro judiciário:

a) Uma das versões indica que o avião teria sido destruído pelo palestino Abu Talb e pelo jordaniano Marwan Abdel Razzaq Khreesat, a soldo do Irã;

b) Outra teoria também aponta para o Irã. Em jul/1988, o encouraçado USS Vincennes, da Marinha dos Estados Unidos que cruzava o Estreito de Ormuz, lançou mísseis contra o voo 655 da Iran Air, um Airbus A-300 com 290 passageiros a bordo que ia de Teerã a Dubai. O governo americano informou que o avião civil foi confundido com um F-14 em procedimento de ataque. O aiatolá Khomeini teria prometido vingança;

c) Outra versão surgiu com Lester Coleman, ex-informante da DEA, a agência antidrogas dos Estados Unidos. Segundo declarou em juízo, a aeronave fora destruída durante uma operação (undercover operation) contra o narcotráfico que teria dado errado. Uma maleta com drogas, parte da investigação americana, teria sido substituída pela bomba que destruiu o avião.

Nenhuma dessas teses foi provada. Mais recentemente, a suspeita de ligação do regime líbio com o ataque de Lockerbie voltou a ganhar força. Com os protestos populares em todo o Magreb, o ministro da Justiça de Kadafi, Mustafa Abdel-Jalil, renunciou e contou a um jornal sueco ter provas de que o líder líbio ordenou pessoalmente a derrubada do vôo 103 da Pan Am.

Qualquer que seja a verdade sobre este tenebroso mistério, não há dúvidas de que houve um crime e uma violação à Convenção das Nações Unidas para a Repressão de Atos Ilícitos contra a Segurança da Aviação Civil, assinada em Montreal em 23 de dezembro de 1971. Promulgada pelo Decreto 72.383/73, esta Convenção é obrigatória também para o Brasil e determina que os Estados Partes adotem “penas severas” para reprimir tais atos terroristas (art. 3º).

Se tivesse ocorrido no Brasil, o atentado de Lockerbie seria de competência federal (art. 109, inciso IX, da Constituição) e o MPF teria de denunciar os réus com base na legislação penal comum: crimes de homicídio e atentado contra a segurança de transporte aéreo, previstos no art. 121, §2º e art. 261, §1º, c/c o art. 262 do CP.

Embora o País seja signatário de quase todas as convenções internacionais anti-terrorismo, inclusive a interamericana (Convenção de Barbados de 2002), não estamos preparados para a persecução criminal de tais delitos, uma vez que nos falta experiência e estrutura operacional e não há lei penal específica. Na verdade, discute-se se seria necessária uma lei penal anti-terror ou se a legislação atual bastaria para enfrentar os casos de terrorismo. Sediaremos a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos de Verão em 2014 e 2016. A prevenção e a prontidão do País cabem à Presidência da República e ao Congresso Nacional. Rezemos para que tudo corra bem. Esta história ainda não foi escrita.

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