por Vladimir Aras
Está certo que as cadeias brasileiras são piores que a “kitchenette do capeta”. O condenado vira hóspede do inferno. Isto precisa mudar. Mas não dá para concordar com o exagero de certas teses defensivas que querem limpar a barra de autores de crimes graves a qualquer custo. Há alguns limites civilizatórios que não é possível ultrapassar. Toda hora inventam uma nova carochinha, uma justificativa mais estapafúrdia que a outra para “passar a mão na cabeça do réu”. – “Tadinho! É só um homicida”. Já chega de cafuné processual no Brasil! Veja isto:
Em 1º/mar, o STF teve de julgar uma tese bizarra. No HC 105.478/MT, a Defensoria Pública da União (DPU) pretendia absolver A.C.S., condenado por narcotráfico (art. 33 da Lei 11.343/2006) e corrupção ativa (art. 333 do CP). Para não ser preso em flagrante por tráfico de drogas, esse pacato cidadão de Porto Alegre do Norte/MT ofereceu propina de 10 mil reais ao policial militar que o revistou.
O Ministério Público recorreu da decisão de absolvição parcial proferida pelo juízo local e obteve êxito no Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Foi a vez do réu buscar as vias recursais para eliminar a condenação por corrupção, mas sem sucesso; seu recurso especial foi rejeitado pelo STJ, e então a questão foi alçada ao STF em habeas corpus impetrado pela DPU. Segundo a Defensoria, a oferta de dinheiro ao policial para que não fosse efetuada a prisão do traficante era “mero ato de autodefesa”, resultado do “desespero” do réu diante da iminência da prisão. Não estou inventando nada! Nem é primeiro de abril ainda. Believe it! A tese foi esta aí. Confira a notícia publicada na página do STF:
2ª Turma rejeita HC a homem que ofereceu dinheiro a policial por “autodefesa”
Por unanimidade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) indeferiu pedido da Defensoria Pública da União em Habeas Corpus (HC 105478) que pretendia absolver A.C.S., condenado por tráfico de drogas e corrupção ativa, da segunda condenação. O relator, ministro Gilmar Mendes, rejeitou a tese da defesa, segundo a qual oferecer dinheiro a policial para que não fosse efetuado o flagrante configuraria “ato de autodefesa”.
A. foi condenado pela Vara Única da Comarca de Porto Alegre do Norte (MT) a seis anos de reclusão, por tráfico, e absolvido da denúncia de corrupção ativa. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJ-MT), ao examinar recurso do Ministério Público, modificou a sentença para incluir a condenação também por corrupção.
No HC, a Defensoria Pública sustenta que a oferta de dinheiro para evitar o flagrante é gesto de autodefesa, pois o autor, surpreendido pela autoridade policial, “entrou em pleno desespero e, unicamente com intenção de evadir-se do local para preservar sua liberdade, ofereceu a quantia já apreendida pelo policial para que este permitisse sua fuga”. A defesa observa que o dinheiro, apreendido juntamente com as drogas, já estava em poder dos policiais. “A condenação imposta pelo tráfico é mais que suficiente para garantir a reprimenda do paciente”, afirma a inicial.
O fundamento da defesa era o de que o ato estaria respaldado pelo artigo 5º, inciso LXIII da Constituição Federal, que garante ao preso o direito de permanecer calado. “O artigo reconhece o direito do agente de negar, de infirmar os fatos, de silenciar-se, mas não de oferecer dinheiro”, afirmou o ministro.
Ainda não acredita? Leia aqui a petição inicial do HC e aqui o parecer do MPF, que se manifestou pela denegação da ordem, em manifestação da lavra do SPGR Mario Gisi.
Neste caso, rechaçado de forma unânime e acachapante pela 2ª Turma do STF (graças ao bom Deus e ao relator Gilmar Mendes), chegamos aos píncaros do paroxismo das estratégias processuais estrambóticas. A tese era a da inexigibilidade de conduta diversa. Já se disse que vivemos num país hipergarantista, de garantismo hiperbólico (a expressão é do professor Douglas Fischer), a pátria do “coitadismo penal”. Mas agora foi demais! A ideia é a seguinte: o traficante não teria outra alternativa para salvar sua pele. Tinha de subornar o policial. A situação desesperadora “exigia” que o traficante corrompesse o sargento da PM. Alguém consegue explicar essa lógica tortuosa aos seus filhos e netos?!
Diria um servidor público honesto: – “Tenha santa paciência, seu traficante! Onde já se viu querer subornar um policial?”. E, olhando para o defensor público impetrante, esse mesmo funcionário do Estado exclamaria: – “O senhor só pode estar de brincadeira!”.
No mundo ideal imaginado pelo criativo defensor, um outro servidor público menos honesto poderia ter dito. – “Passe a grana para cá, mano. Embolso o dinheirinho como mandam a ‘jurisprudência’ e a Lei de Gerson. Afinal, cabe ao Estado assegurar a ampla defesa do réu. E eu, como representante do Estado, fico com a grana e você fica com sua liberdade. Siga seu rumo e não peque mais…”. Depois, completaria sem constrangimento: – “Mas se precisar se ‘defender’ de novo, não se acanhe! Estamos aí”.
Será que mais alguém aventurou-se ou aventurar-se-á a tirar do bolso esta tese revolucionária? Não coram? Espero que lhes falte coragem e lhes sobre juízo e que outros ousados estrategistas desistam disto. A “estória” não convenceu os ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello, Carlos Ayres Britto, Ellen Gracie e Joaquim Barbosa. Ufa!
Roubo (no bom sentido) a frase de um colega espirituoso, o Hélio Telho, de Goiás. Dentro em breve, haverá o habeas corpus 007, o que dá licença para matar. Em ampla defesa, é claro. Se o réu correr o risco de ser preso em flagrante por um crime qualquer, poderá exercer plenamente sua autodefesa e mandar um maiguiri no tórax do policial ou um soco megaton na cara do fiscal…
Se fosse vitoriosa a tese, teria surgido um novo “direito” fundamental: o de subornar a Polícia. Chega de malabarismos argumentativos, por favor! A corda é bamba e o poço é fundo.