Por Vladimir Aras
Entre os fujões mais famosos dos últimos anos estão o falecido empresário Paulo César Farias, o piloto Jorge Tenório Bandeira de Melo, a advogada Jorgina Maria de Freitas Fernandes, o cirurgião plástico Hosmany Ramos, o também médico Roger Abelmassih, o banqueiro Salvatore Cacciola e mais recentemente o político Henrique Pizzolato, condenado pelo STF na AP 470. Se fossem brasileiros ou estivessem no Brasil, poderiam estar nesta lista Julian Assange, da WikiLeaks, e Edward Snowden, que revelou o programa de espionagem Prism da NSA.
Entre os foragidos famosos, o que anda sumido há mais tempo é Roger Abdelmassih. Condenado a 278 anos de prisão por 56 estupros que cometeu em sua clínica de fertilização, em São Paulo, o ex-médico fugiu do Brasil tão logo recebeu do STF uma liminar em habeas corpus. Estávamos na antevéspera de Natal de 2009, e a liminar no HC 102.098/SP (aqui) foi um presente e tanto para um sujeito que desgraçou a vida de numerosas vítimas e suas famílias. Especula-se que Abelmassih estaria no Líbano ou na Síria, mas pode estar em qualquer lugar. Seu nome consta da lista de difusões vermelhas da Interpol (aqui).
Já seu colega Hosmany Ramos, que cumpria pena em São Paulo por roubo, sequestro e outros crimes, fugiu para a Islândia em 2008 e foi de lá extraditado de volta para o Brasil, mesmo não havendo tratado de extradição entre Brasília e Reykjavik. Bastou uma promessa de reciprocidade. O dr. Hosmany estava em saída temporária (art. 122 da LEP) quando deu no pé.
O banqueiro Salvatore Cacciola, que respondia a processos na Justiça Federal do Rio de Janeiro foi beneficiado por uma liminar em habeas corpus concedida pelo ministro Marco Aurélio, do STF, em 14/jul/2000. Foi no HC 80288/RJ (aqui). Na ocasião, S. Exa. acreditou na boas intenções do paciente, que escapou para a Itália assim que pode. A decisão fora a crônica de uma fuga anunciada. Veja:
“Por derradeiro, no tocante à possibilidade de o Paciente deixar o Brasil, também inexiste base maior para chegar-se à posição limite, que é a referente à custódia antes de a culpa estar formada. De início, qualquer acusado pode evadir-se, pode deixar o distrito da culpa, arcando com as consequências próprias. O que varia é a forma de locomoção. É certo que o Paciente é de nacionalidade italiana, sendo naturalizado brasileiro. Todavia, possui raízes no País, para aqui tendo vindo em tenra idade e se estabelecido, constituindo família e se projetando no campo profissional escolhido. O receio de viagem sem volta ao exterior – já que a Itália, tal como o Brasil, de regra não agasalha extradição de nacional – pode ser neutralizado por outros meios, notando-se a eficiência de nossa Polícia de Portos. A não se sopesar esse aspecto, ter-se-á que, de um modo geral, estando o estrangeiro envolvido em um processo-crime, a preventiva será sempre medida a ser imposta. Quanto ao fato de o Paciente estar respondendo a processo, ou mesmo ter sido condenado, a repercussão é indevida. A prestação de contas à Justiça, sem a evidência de uma periculosidade maior, faz-se processo a processo, não cabendo adotar esdrúxula reciprocidade, isso considerada a preventiva. Levando em conta este fundamento, esgotam-se as premissas do decreto de prisão, e aí constata-se que, a princípio, mostrou-se extravagante a preservação da custódia, mesmo porque verificado grande hiato entre os primeiros procedimentos criminais alusivos à espécie e a decretação”(STF, HC 80288/RJ MC, rel. min. Marco Aurélio, d. em 14/07/2000).
Consumada a fuga, o MPF e a Polícia Federal puseram-se em marcha para obter a extradição do banqueiro Cacciola, que estava supostamente protegido na península italiana, devido à sua dupla nacionalidade. Seja por descuido ou por ignorância geográfica, Cacciola foi dar um passeio em Mônaco e acabou preso pela polícia local, graças à inclusão de seu nome na difusão vermelha da Interpol. De novo, o Brasil valeu-se do compromisso de reciprocidade para convencer autoridades estrangeiras a extraditar um brasileiro, o que se consumou em 2008, com o aval da Justiça monegasca. E Cacciola voltou ao País.
Anos antes, em 1993, o ex-piloto Jorge Bandeira de Melo, um dos ícones do caso Collor, fugiu do Brasil para a Argentina. Em 1995, foi extraditado pela Justiça argentina e respondeu no Brasil à AP 307/DF (aqui), no STF, junto com o ex-presidente e hoje senador Fernando Collor de Mello.
Lá se aplica regra semelhante à americana, constante do 18 USC §3184 (aqui). O acordo anglo-brasileiro só veio a ser firmado em 1995 (aqui), o que abriu tal via cooperativa entre as duas nações. Porém, o governo brasileiro conseguiu formalizar um acordo de extradição ad hoc (special extradition arrangement) com o Reino Unido, cuja cópia obtive graças à Lei de Acesso à Informação (veja aqui). Tal arranjo acabou por precipitar outra fuga de PC, desta vez para a Tailândia. Rastreado em Bangkok, o ex-tesoureiro de Fernando Collor foi preso em novembro de 1993 (aqui), mas não foi extraditado; foi sumariamente deportado e entregue à Polícia Federal brasileira, num procedimento aparentemente irregular.
O caso Jorgina Maria de Freitas Fernandes é um dos mais conhecidos em matéria extradicional. A ex-advogada foi condenada a 14 anos de reclusão pela Justiça do Rio de Janeiro por uma fraude milionária contra a Previdência Social, cometidas com o ex-juiz Nestor José do Nascimento e o advogado Ilson Escócia da Veiga. Enredada, Jorgina fugiu para a Costa Rica e foi de lá extraditada em 1998, com base em compromisso de reciprocidade, após ser localizada pelo repórter Roberto Cabrini (aqui).
E quanto ao foragido da hora, Henrique Pizzolato? O ex-diretor do Banco do Brasil teria fugido do País com destino à Itália. A Procuradoria-Geral da República requereu ao STF várias medidas sucessivas (veja aqui a petição da PGR) para fazer valer a autoridade do acórdão condenatório proferido pelo STF na AP 470, por peculato, quadrilha e lavagem de dinheiro.
Num caso como este, além do retorno voluntário do procurado, há quatro medidas legais cabíveis:
Nova York. Fonte: unmultimedia.org (Teddy Chen).
Réplica do Tratado de Kadesh (na atual Síria) adorna um dos corredores do prédio das Nações Unidas em Nova York. Fonte: unmultimedia.org (Teddy Chen).
A primeira delas é a mais tradicional e milenar: a extradição. O mais antigo dos tratados de extradição de que se tem notícia é o Tratado de Kadesh, de 1259 a.C, firmado entre o faraó Ramsés II do Egito e o rei Hatusil III, dos hititas, que governava a atual Anatólia e partes da Mesopotâmia e Palestina. A versão egípcia do acordo é mantida no complexo religioso de Karnak, em Luxor, e a versão hitita, em idioma acádio, foi descoberta na Turquia no início do século XX, e está hoje no Museu Arqueológico de Istambul. Uma cópia deste texto pode ser vista na sede da ONU, em Nova York (foto).
O instituto evoluiu e agora existem formas simplificadas de extradição, além da extradição voluntária e mecanismos mais modernos, como o mandado de detenção europeu (euro-ordem), criado pela Decisão-quadro 2002/584/JAI do Conselho da União Europeia, de 13 de Junho de 2002, que entrou em vigor há 10 anos em 1º de janeiro de 2004. Algo semelhante se desenha no Cone Sul, com a adoção, mediante o Acordo de Foz do Iguaçu de 2010, do mandado Mercosul de captura. Porém, a boa e velha extradição ainda hoje é o método usual de apreensão de fugitivos na maior parte do globo.
Se o foragido “Tício” está na Itália, o pedido de entrega terá por base o Tratado de Extradição firmado em 1989 entre os dois países (Decreto 863/1993). Vale lembrar que a regra da inextraditabilidade de nacionais não é absoluta. Muitos países extraditam seus nacionais, a exemplo da Argentina, Colômbia e Estados Unidos. A Itália adota posição intermediária. O artigo 26 da Constituição italiana, o art. 13 do Codice Penal e os artigos 697-709 do Codice de Procedura Penale permitem a extradição de nacionais, desde que haja essa possibilidade em tratado: “L’estradizione del cittadino può essere consentita soltanto ove sia espressamente prevista dalle convenzioni internazionali”.
O artigo 6º do tratado ítalo-brasileiro não proíbe expressamente a extradição de nacionais, pois cuida deste tema como fator de “recusa facultativa”, desde que se observe a reciprocidade. Contudo, como o Estado brasileiro não admite a extradição de brasileiros natos (art. 5º, LI, CF), a Itália (e qualquer outro país em situação semelhante) pode recusar-se a entregar o seu nacional.
Não sendo possível levar a cabo a extradição, surge a segunda opção: a homologação da sentença penal brasileira na Itália, ou noutro país de interesse. A condenação proferida pela Justiça brasileira poderá ser executada no exterior. Não confunda este procedimento com a transferência de pessoas condenadas, instituto de cunho humanitário para o qual temos uma dezena de acordos específicos. Veja a lista aqui.
Como premissas para a adoção de tal solução, é preciso que os Estados soberanos interessados sejam partes da Convenção de Palermo (ou de qualquer outro tratado que contenha disposição semelhante) e que a legislação do Estado requerido permita expressamente a execução de decisões penais estrangeiras transitadas em julgado, para todos os fins. No Brasil, diante do artigo 9º do CP, esta possibilidade é limitada ao cumprimento de sentenças criminais para fins civis (reparação) e para a aplicação de medidas de segurança, após a homologação pelo STJ (art. 105, inciso I, letra i, CF), o que reclama do Congresso
Nacional um projeto para adaptação de nosso código aos tratados de que somos parte.
Art. 10. A sentença estrangeira pode ser homologada no Brasil para produzir os mesmos efeitos de condenação previstos pela lei brasileira, inclusive para a sujeição à pena, medida de segurança ou medida socioeducativa e para a reparação do dano.
§1º A homologação depende:
A terceira opção para alcançar um foragido no exterior está no instituto da transferência de procedimentos penais. Também não está regulada claramente no direito interno brasileiro, embora aqui exista por incorporação de textos internacionais (como Viena, Palermo e Mérida) e, em situação algo semelhante, por aplicação direta do princípio aut dedere aut iudicare (extradite ou processe).
Assim, teoricamente, um crime cometido no Brasil (e aqui em fase de investigação, julgamento ou recurso) pode ser submetido à Justiça estrangeira, nos termos do tratado de extradição entre os Estados partes, segundo a cláusula aut dedere aut iudicare, ou conforme um compromisso de reciprocidade. Normalmente, os modernos tratados de extradição contêm expressamente esta regra, que impõe que o Estado requerido, quando recusar a extradição de um seu nacional, assuma a obrigação de processá-lo perante suas cortes de Justiça (dever internacional de persecução). É o que determinam, por exemplo, o artigo 6º, §1 do Tratado de Extradição de 1989 entre Brasil e Itália (aqui), e o artigo 44, §11, da Convenção de Mérida, aprovada no Brasil pelo Decreto 5.687/2006 (aqui):
Art. 44. Extradição
Quando há investigado ou réu foragido, o Ministério Público ou a Polícia costumam providenciar a inclusão do mandado de prisão expedido contra o fugitivo na base de dados de difusões vermelhas (red notices), para que seja ele preso em qualquer Estado Parte da Interpol e, então, extraditado para o Brasil.
A via ilegal: abdução internacional
Provas ilicitamente obtidas não são válidas no processo penal, o que acarreta a nulidade das provas derivadas e de eventual sentença proferida com base nelas. Esta é uma regra que comporta exceções, conforme o artigo 157 do CPP. Imaginemos outra situação: e se o próprio acusado for “ilicitamente obtido”? Haverá sanção processual à altura? Em regra, um criminoso (ou suposto criminoso) só pode ser compelido a deixar um país para submeter-se a jurisdição estrangeira mediante extradição.
Deportação e expulsão não podem ser usadas como sucedâneos ou substitutos da extradição. Isto está muito claro nos artigos 63 e 75, inciso I, da Lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro). Vide, a propósito, o que escrevi sobre o cidadão norte-americano Jesse James Hollywood (aqui), deportado do Brasil para os Estados Unidos em 2005 logo após sua prisão em Saquarema, no Rio de Janeiro, onde vivia com o nome falso de Michael Costa Giroux. Seu caso deu origem ao filme Alpha Dog (2006), no qual é representado pelo ator Emile Hirsch.
Apesar de tais soluções serem proibidas no Brasil, alguns países costumam valer-se destas e de outras vias alternativas.
Em cidades da fronteira do Brasil com o Paraguai, dizem que é costume usar uma outra modalidade de entrega: a extradição por empurrão. Não é piada. O procurado seria posto na linha de fronteira e empurrado para o outro lado, onde policiais nacionais estariam à sua espera. Esta é uma forma extremamente simplificada (e ilegal) de extradição.
Sua congênere é a chamada “extraordinary rendition“. Usual na persecução de terroristas, esta espécie de abdução internacional é mais comum do que se pensa, tratando-se de uma clara violação do devido processo legal. Uma extraordinary rendition, rendição extraordinária, transferência clandestina, exfiltração ou simplesmente entrega ilegal é uma modalidade moderna das abduções internacionais, que são empregadas há anos à margem do direito internacional. Vejamos alguns casos marcantes:
a) captura e abdução de Adolf Eichmann, por forças do Mossad e do Shin Bet, serviços de segurança israelenses. O ex-oficial nazista foi levado ilegalmente da Argentina para Israel em 1960. Diante do protesto argentino, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 138 (aqui) determinando a repatriação de Eichmann, o que não ocorreu, e o nazista foi julgado em Jerusalém, condenado à morte e executado na forca em 1962. Com base em seu julgamento, Hannah Arendt escreveu o seu “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal“.
Na jurisprudência americana, os episódios mais famosos de validação de abduções internacionais são o do ex-ditador panamenho Manuel Noriega e o do médico mexicano Humberto Álvarez-Machain.
No caso Noriega, também houve semelhante ilegalidade, uma vez que o ex-homem forte panamenho foi capturado em janeiro de 1990 após deixar a Nunciatura Apostólica, na Cidade do Panamá, onde se havia refugiado. Levado a força para os Estados Unidos, no curso da chamada “Operation Just Cause“, que dá nome à invasão do Panamá de 1989, Noriega foi julgado na Flórida em 1992 e condenado por narcotráfico, extorsão e lavagem de dinheiro, tendo sido depois extraditado para a França, onde respondeu a acusações de lavagem de dinheiro. Em 2011, foi de novo extraditado, desta vez de Paris para o Panamá, para responder por homicídio.
A questão que fica é: como se percebe dos casos Noriega e Álvarez-Machain, nos Estados Unidos, e Eichmann, em Israel, pessoas procuradas pela Justiça criminal podem ser julgadas nesses países mesmo tendo sido “ilegalmente obtidas”, com desrespeito à soberania estrangeira e/ou ao devido processo legal extradicional. No Brasil, isto seria possível?
Embora não haja nenhuma regra em nossa legislação processual sobre este ponto ou qualquer precedente de tribunal superior, a resposta é certamente não. O fundamento é o princípio da legalidade (art. 5º, II, e art. 37, CF), que rege a Administração Pública brasileira, sendo certo que as abduções internacionais, inclusive as extraordinary renditions, violam a legalidade internacional.
Tais dispositivos se completam com o artigo 7º, §§1º a 3º, da Convenção Americana de Direitos Humanos: