Vladimir Aras

Feitiços e fetiches: o habeas tranca-inquérito

O caso levado a julgamento perante a 6ª Turma do STJ ocorreu em São Simão, um município de 20 mil habitantes, às margens do Rio Paranaíba, a sudoeste de Goiânia.

Foto: Wikipédia
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Para o STJ, encomendar um “despacho” ou um feitiço para fazer mal a outrem não constitui crime de ameaça, pois o mal prometido deve ser injusto, grave, sério e verossímil. “A ameaça deve ter potencialidade de concretização, sob a perspectiva da ciência e do homem médio” (STJ, 6ª Turma, HC 697.581/GO, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 07/03/2023, unânime).

O caso levado a julgamento perante a 6ª Turma do STJ ocorreu em São Simão, um município de 20 mil habitantes, às margens do Rio Paranaíba, a sudoeste de Goiânia. O juízo da Comarca atendeu a uma representação da Polícia Civil e deferiu busca e apreensão na residência da paciente, que era a Secretária de Saúde do município goiano. Dita senhora “teria contratado uma mulher que supostamente exerce a função de ‘macumbeira’, com o intuito de que esta efetuasse ‘rituais’ visando a morte” de várias autoridades da cidade. Entre os alvos estava o promotor de Justiça, o presidente da Câmara de Vereadores, um repórter investigativo e o delegado de Polícia.

No entendimento do STJ, não se provou conduta da paciente “direcionada a causar temor nas vítimas”. Não haveria, segundo a Corte, “indício de que a profissional contratada para realizar o trabalho espiritual procurou um dos ofendidos, a mando da paciente, para atemorizá-los”. Ademais, não teria havido “nenhuma menção a respeito da intenção da ré em infundir temor.” Apenas foi narrada “a contratação de trabalho espiritual” para “eliminar diversas pessoas” na cidade (STJ, 6ª Turma, HC 697.581/GO, Rel. Min. Laurita Vaz, j. em 07/03/2023).

Quando eu era promotor de Justiça na comarca de Feira de Santana, ali pelo final dos anos 1990, investigamos um caso similar, com enquadramento penal diverso. Uma alta autoridade local teria contratado um trabalho espiritual a um “macumbeiro” da cidade de Rui Barbosa para “calar a boca”, isto é, matar três vereadores da oposição, que queriam a abertura de uma comissão de investigação na Câmara Municipal. O episódio ficou conhecido como o “caso do Bode Preto” e foi contado na imprensa, pelo jornalista Edson Borges e depois mostrado no Fantástico, da Rede Globo.

Para o sucesso daquela empreitada “mortífera”, Senhor de Mestre Chico – este era o nome do profissional “espiritual” – mandou que o cliente comprasse um bode inteiramente preto, sem qualquer mancha de outra cor. Só assim a encomenda funcionaria. Os alvos eram os vereadores Messias Gonzaga, Roberto Tourinho e Antônio Carlos Coelho.

Graças a Deus a encomenda não funcionou e nem funcionaria. Segundo o que se dizia na época, o tal bode preto destinado ao sacrifício teria sido comprado com dinheiro público, uns 2.500 reais desviados do Centro de Abastecimento da cidade… Era esse o mote da apuração do Ministério Público baiano: suposto peculato para fins “espirituais”.

Num texto de 2017, Yvonne Maggie analisou outro caso de suposta magia, também julgado pela 6ª Turma do STJ, um tema envolto em preconceitos de toda a ordem. Neste episódio corrido em São Paulo, o crime era de extorsão mediante grave ameaça de ocorrência de consequências “espirituais” negativas. Foi afastada a alegação defensiva de “ineficácia absoluta da grave ameaça de mal espiritual”, pois a vítima, “em razão de sua crença religiosa, acreditou que a recorrente poderia concretizar as intimidações de ‘acabar com sua vida’, com seu carro e de provocar graves danos aos seus filhos”. (STJ, RESP 1.299.021/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. em 14/02/2017, unânime).

Estando assim coagida, a vítima entregou a vantagem econômica indevida à autora da extorsão, o que corresponde ao crime do art. 158 do Código Penal, que exige a prática de violência ou de grave ameaça.

A vítima relata que, depois de pagar vultosas quantias por atendimentos espirituais, “pediu por favor para que ela parasse”, mas que a recorrente “passou a proferir ameaças dizendo: ‘acabo com sua vida e com seu carro’. Disse que a ré começou a ameaçar também seus filhos. Em certo dia, a ré a levou até um cemitério, onde encontrou dois bonecos amarrados, dizendo que eram os filhos da vítima e que caso não fosse dado mais dinheiro, “pegava qualquer um deles e acabava com eles’ “(fl. 174). A ameaça de mal espiritual, em razão da garantia de liberdade religiosa, não pode ser considerada inidônea ou inacreditável. (STJ, RESP 1.299.021/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. em 14/02/2017).

Segundo o STJ, no caso de 2017, “a vítima agiu coagida pela grave ameaça e efetuou o pagamento das vultosas quantias exigidas pela denunciada”. A ofendida esclareceu, em depoimento judicial, que as ameaças da ré, para ela eram sérias e que se sentiu “muito intimidada”. Ou seja, a acusada “submeteu a vítima a constrangimento ilegal, mediante grave ameaça espiritual que revelou-se (sic) idônea ao fito de atemorizá-la e compeli-la a realizar o pagamento de vantagem econômica indevida.” Por isso, disse a Corte, “a ameaça de mal espiritual, em razão da garantia de liberdade religiosa, não pode ser considerada inidônea ou inacreditável.”

Para a vítima e boa parte do povo brasileiro, existe a crença na existência de força ou forças sobrenaturais, manifestada em doutrinas e rituais próprios, não havendo falar que são fantasiosas e que nenhuma força possuem para constranger o homem médio. Os meios empregados foram idôneos, tanto que ensejaram a intimidação da vítima, a consumação e o exaurimento da extorsão. (STJ, RESP 1.299.021/SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, j. em 14/02/2017).

O que os dois casos têm em comum? No processo de São Paulo, houve grave ameaça para obtenção de vantagem econômica (art. 158 do CP); no de Goiás, a grave ameaça seria o crime em si (art. 147 do CP). No primeiro, o STJ levou em conta o efeito da intimidação sobre a vítima. No segundo caso, na via estreita do habeas corpus, não houve relato sobre a reação das pessoas ameaçadas nem informações sobre se as “ameaças espirituais” para elas eram críveis, segundo suas próprias visões de mundo.

O critério adotado no primeiro julgado (São Paulo, 2017) parece mais consentâneo à percepção duma “pessoa média” brasileira. Eu não acredito nisso; você não acredita. Mas muita gente – e são milhões de brasileiros –, seja por dúvida (“No creo en las brujas…”), seja por fé religiosa, se amedronta e faz ou deixa de fazer algo em função do medo do mal. Há mais coisas entre o céu e a terra do que imaginamos, disse William Shakespeare.

De fato, como reconheceu o STJ em 2017: “Para a vítima e boa parte do povo brasileiro, existe a crença na existência de força ou forças sobrenaturais (…) não havendo falar que são fantasiosas e que nenhuma força possuem para constranger o homem médio.” Por isso, me parece que a necessidade de examinar provas deveria ter obstado a concessão do habeas corpus em favor da paciente de Goiás.

A Terceira Seção do STJ também já examinou o tema dos “feitiços” num conflito de competência oriundo da região de Dourados, no Mato Grosso do Sul. Tratava-se de um suposto homicídio praticado por um indígena contra outro. Discutia-se se a competência seria federal ou estadual, nos temos do art. 109, inciso XI, da Constituição. O Tribunal entendeu que o alegado crime “não teve conotação de disputa de seus direitos indígenas”, relacionando-se à “crença pessoal do autor” de que teria praticado o homicídio em razão de um “feitiço” que a vítima teria feito “para causar a morte do réu” (STJ, AgRg no CC 149.964/MS, Rel. Min. Felix Fischer, 3ª Seção, j. em 22/03/2017). aspectos antropológicos dessas práticas dos povos autóctones brasileiros e das crenças em torno delas são muito interessantes.

A mesma motivação apareceu noutro homicídio praticado por indígena na região de Ponta Porã/MS, num conflito de competência decidido monocraticamente. Na opinião do juiz de Direito, que foi descartada pelo STJ, tinha-se “um homicídio motivado por suposto ‘feitiço’ – prática mística própria da cultura indígena da região, podendo ser considerada, pois, como um direito indígena coletivo” (STJ, CC 149.964/MS, Rel. Min. Nefi Cordeiro, 3ª Seção, j. em 21/03/2016).

Ao escrever este texto, lembrei doutro processo judicial no qual me defrontei com um “despacho”. Na Bahia, também chamam de “bozó”. Fui designado para um júri em Irará, terra do grande Tom Zé. Chegando lá, os jurados estavam alvoroçados, com medo de realizar a sessão (no sentido jurídico), pois havia uma oferenda na porta do fórum. Era um feitiço “tranca-júri”. Encomendam uns desses por aí, o que mostra as crenças do “homem médio” brasileiro, fundadas ou infundadas, não importa. O que importa é que, no tema religião, temos de respeitar as crenças de todos. Um dia conto a história num livro sobre “causos” do júri. Agora só vou dizer que o clima pesou no julgamento. Os jurados ficaram abalados. Seria caso de desaforamento?

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