Cooperação Internacional

Estudos sobre extradição (2): nacionalidade brasileira e extradição

Um estrangeiro que cometa crime ou outro ilícito no Brasil é expulsável.

Por Vladimir Aras

A Constituição Federal de 1988 proíbe a extradição de nacionais, mesmo que tenham cometido crimes fora do País (art. 5º, LI, CF), e não tolera a pena criminal de banimento para brasileiros que tenham praticado crimes aqui (art. 5º, XLVII, `d`, CF), mas não impede a expulsão de estrangeiros que no Brasil sejam condenados pela prática de crime (art. 68 da Lei 6.815/1980).

Um estrangeiro que cometa crime ou outro ilícito no Brasil é expulsável. Um estrangeiro que tenha cometido crime no exterior e esteja em nossa jurisdição é extraditável. Brasileiros não podem ser expulsos nem banidos para o exterior.

Segundo o artigo 50 do Código Criminal do Império de 1830, a pena de banimento privava para sempre “os réos dos direitos de cidadão brasileiro“, e os inibia “perpetuamente de habitar o territorio do Imperio“, estatuindo que “Os banidos, que voltarem ao territorio do Imperio, serão condemnados á prisão perpetua“. Vê-se claramente que o banimento tinha natureza distinta da extradição. O banimento de brasileiros era uma pena (punição) que não existe mais no Brasil.

Já a extradição é um procedimento (processual) de cooperação internacional em matéria penal entre países. Existia no Brasil a extradição entre Estados brasileiros, regulada, por exemplo, pelo art. 19, inciso III, e pelo art. 39, §8, da Constituição de 1934. Isto desapareceu. Modelo semelhante de extradição interestadual se vê ainda hoje em sistemas federais como os dos Estados Unidos (18 U.S. Code §3182) e do México.

Mas aqui tratamos da extradição “internacional”. Como regra, um brasileiro jamais pode ser extraído do território nacional. A Constituição de 1988 estabelece a inextraditabilidade absoluta de cidadãos natos, a chamada exceção de nacionalidade.

A primeira Constituição a vedar a extradição de cidadãos brasileiros para o exterior foi a de 1934 (art. 113, §31), seguida pelas Cartas de 1937 (art. 122, §12), 1946 (art. 141, §33), 1967 (art. 150, §19) e 1969 (art. 153, §19). As Cartas de 1824 e 1891 foram silentes. No entanto, em harmonia com a antiga tradição portuguesa, nosso País já não extraditava seus nacionais mesmo no Império. Colhe-se como exemplo o Tratado de Amizade, Limites, Comércio, Navegação e Extradição, entre o Brasil e a Bolívia (Decreto 4.280/1868), firmado em 27 de março de 1867, cujo artigo 25 dispunha que a extradição não terá lugar “se o criminoso reclamado fôr cidadão do paiz a cujo governo se fizer a reclamação“.

Contudo, na vigência da Constituição de 1891, primeira carta republicana, a Lei Federal 2.416, de 28 de junho de 1911 passou a permitir a extradição de nacionais, situação que perdurou até 1934, quando foi instituída pela primeira vez na lei fundamental. Tal vedação constitucional vige, portanto, há 80 anos. Mas era assim:

Lei 2.416, de 28 de junho de 1991

Regula a extradição de nacionaes e estrangeiros e o processo e julgamento dos mesmos, quando, fóra do paiz, perpetrarem algum dos crimes mencionados nesta lei

O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil:
Faço saber que o Congresso Nacional decretou e eu sancciono a seguinte lei:

Art. 1º E’ permittida a extradição de nacionaes e estrangeiros:

§ 1º A extradição de nacionaes será concedida quando, por lei ou tratado, o paiz requerente assegurar ao Brazil a reciprocidade de tratamento.

§ 2º A falta de reciprocidade não impedirá a extradição no caso de naturalização posterior ao facto que determinar o pedido do paiz onde a infracção for commettida.

Hoje, brasileiros natos não podem ser extraditados. Mas brasileiros naturalizados, estrangeiros e apátridas podem ser extraditados para Estados estrangeiros, para responderem a investigação ou a processo penal por crime praticado no estrangeiro (extradição instrutória) ou para cumprimento de pena aplicada no exterior em razão de crime lá cometido (extradição executória).

Compete ao Supremo Tribunal Federal (STF) autorizar ou não a extradição passiva requerida por governo estrangeiro (art. 102, CF), e ao Poder Executivo federal efetivar, ou não, a entrega do extraditando ao país requerente, conforme a Lei 6.815/1980. Assim, o procedimento compreende uma fase judicial (STF) e outra administrativa, esta perante o Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça e o Ministério das Relações Exteriores, que tramitam o pedido e avaliam certas condições de admissibilidade.

Segundo o artigo 12 da Constituição em vigor, são brasileiros natos os nascidos na República Federativa do Brasil, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país (jus soli); os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço da República Federativa do Brasil (jus sanguinis e nascimento no exterior ex facto officii); e os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, desde que sejam registrados em repartição brasileira competente ou venham a residir na República Federativa do Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira (jus sanguinis).

Para esses que gozam de nacionalidade originária, a extradição é vedada. Quanto aos brasileiros naturalizados, a extradição só é possível:

a) se o naturalizado tiver praticado qualquer crime comum (por oposição aos crimes políticos ou aos de opinião) antes da naturalização; ou

b) se o naturalizado houver comprovadamente cometido crime de narcotráfico, mesmo depois da naturalização.

Para naturalizar-se, o estrangeiro residente deve iniciar procedimento perante a Polícia Federal. A decisão cabe ao Ministério da Justiça, nos termos dos artigos 111 a 121 da Lei 6.815/1980. O marco referencial da naturalização é o do momento da entrega do certificado de cidadania brasileira ao estrangeiro. A cerimônia de entrega é presidida pelo juiz da 1ª Vara Federal da cidade onde reside o estrangeiro. Só então “nasce” o brasileiro naturalizado, que poderá ser extraditado por crimes praticados antes desta data.

Estranhamente, o constituinte criou regra mais gravosa apenas para o naturalizado que seja autor de crime de tráfico de drogas, inclusive o cometido depois da naturalização. Poderia ter instituído a mesma exceção para delitos igualmente graves, como o terrorismo, o homicídio, o tráfico de pessoas e a corrupção, condutas estas nocivas à comunhão nacional. Porém, a Assembleia Nacional Constituinte de 1987 parece ter sido capturada pelo tal ideário da guerra global contra as drogas. A propósito, o ministro Sepúlveda Pertence criticou tal opção, asseverando que se deu “em homenagem à crença ingênua na eficácia do Direito Penal para deter a trágica expansão universal do consumo de tóxicos” (STF, Extradição 541/Itália, Pleno, voto do ministro, item 30, j. em 7/11/1991).

Outra questão se coloca: a Constituição exige que a extradição de naturalizados se dê “na forma da lei”. Que lei? Há três interpretações possíveis:

a) uma: bastaria a aplicação da lei geral (Lei 6.815/1980) ou do tratado extradicional específico para regular a extradição de brasileiros naturalizados; ou

b) outra: seria necessária uma lei especial para regular a extradição de naturalizados; ou

c) terceira: seria necessária uma lei especial apenas para a comprovação do envolvimento de brasileiro naturalizado com o tráfico de drogas, para fins de extradição.

Fico com a primeira solução, pois na prática a CF equiparou a situação de tais brasileiros naturalizados à dos estrangeiros em matéria extradicional, cabendo utilizar a Lei 6.815/1980 ou o tratado pertinente, que, nesses casos, terá força de lei federal ordinária.

Não se pode esquecer que o artigo 77, inciso I, da Lei 6.815/1980, editada sob a Constituição de 1969, e quase inteiramente recepcionada pela Carta de 1988, estipula que não se concedia a extradição de brasileiro, “salvo se a aquisição dessa nacionalidade verificar-se após o fato que motivar o pedido“. Ou seja, a extradição de brasileiro naturalizado rege-se pelo Estatuto do Estrangeiro, pelo tratado aplicável e pelo Regimento Interno do STF.

A questão residual diz com a necessidade de comprovação do envolvimento do naturalizado com o tráfico de drogas. Em homenagem ao princípio favor comissionis e à regra do reconhecimento mútuo das decisões judiciais, tal comprovação cabe ao Estado estrangeiro (requerente), e não ao STF, que examina pedidos de extradição mediante procedimento de contenciosidade limitada. Não se pode pretender a abertura de um incidente probatório no Brasil para comprovar, apenas para fins de extradição, que o naturalizado cometeu crime de narcotráfico no exterior. A ser assim, melhor negar a extradição e instituir ação penal aqui mesmo contra o brasileiro naturalizado, para a persecução do crime de narcotráfico. De fato, no sentido da lei brasileira, comprovação desta ordem (“comprovado envolvimento”) só pode haver após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII). E não me parece que foi isto o que pretendeu o constituinte quando, ao restringir a vedação absoluta à extradição, claramente quis facilitar a rendição de narcotraficantes naturalizados brasileiros.

Porém, em 1992, na Extradição 541/Itália, o STF decidiu que essa norma constitucional não tem aplicabilidade imediata, e que é preciso editar lei para estabelecer esse juízo de comprovação do envolvimento de brasileiro naturalizado no crime em questão:

Extradição: brasileiro naturalizado antes do crime de trafico internacional de entorpecentes no qual se suspeita de sua participação: razões do indeferimento. […] II. Extradição de brasileiro naturalizado anteriormente ao crime, no caso de “comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes, na forma da lei” (CF, art. 5., LI, parte final): pressupostos não satisfeitos de eficácia e aplicabilidade da regra constitucional. 1. Ao princípio geral de inextraditabilidade do brasileiro, incluído o naturalizado, a Constituição admitiu, no art. 5, LI, duas exceções: a primeira, de eficácia plena e aplicabilidade imediata, se a naturalização é posterior ao crime comum pelo qual procurado; a segunda, no caso de naturalização anterior ao fato, se se cuida de trafico de entorpecentes: aí, porém, admitida, não como a de qualquer estrangeiro, mas, sim, “na forma da lei”, e por “comprovado envolvimento” no crime: a essas exigências de caráter excepcional não basta a concorrência dos requisitos formais de toda extradição, quais sejam, a dúplice incriminação do fato imputado e o juízo estrangeiro sobre a seriedade da suspeita. 2. No “sistema belga”, a que se filia o da lei brasileira, os limites estreitos do processo extradicional traduzem disciplina adequada somente ao controle limitado do pedido de extradição, no qual se tomam como assentes os fatos, tal como resultem das pecas produzidas pelo Estado requerente; para a extradição do brasileiro naturalizado antes do fato, porem, que só a autoriza no caso de seu “comprovado envolvimento” no trafico de drogas, a Constituição impõe a lei ordinária a criação de um procedimento especifico, que comporte a cognição mais ampla da acusação, na medida necessária a aferição da concorrência do pressuposto de mérito, a que excepcionalmente subordinou a procedência do pedido extraditório: por isso, a norma final do art. 5º, LI, CF, não é regra de eficácia plena, nem de aplicabilidade imediata. 3. O reclamado juízo de comprovação do envolvimento do brasileiro naturalizado na prática delituosa cogitada compete privativamente a Justiça brasileira e não, a do Estado requerente […] (STF, Pleno, Ext 541, Relator Min. NÉRI DA SILVEIRA, Relator p/ Acórdão: Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, julgado em 07/11/1992).

Com tal decisão burocratizante, o STF estabeleceu artificialmente um óbice não previsto pelo legislador constituinte, o que tornou letra morta o dispositivo introduzido pela Constituição de 1988. Como o precedente data de 1992, é bem possível que, noutra composição, a Suprema Corte revisite a matéria para dar-lhe interpretação mais consentânea com a sua finalidade, uma que dê eficácia ao princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais entre nações democráticas. O contraditório e a aferição da culpabilidade do extraditando competem ao juiz natural da causa, no Estado estrangeiro. Só este poderá dizer se há, ou não, comprovado envolvimento de determinada pessoa com narcotráfico. 

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