Por Vladimir Aras
Interceptação telefônica (popularmente chamada de “grampo”) é uma medida de investigação excepcional. Desde 1996, só é admitida para a persecução de crimes graves (os apenados com reclusão), sempre respeitados os princípios da legalidade e da proporcionalidade, e o devido processo legal.
Porém, o STJ saiu deste roteiro. Em jun/2011, o tribunal decidiu que, “em situações excepcionais, é possível interceptação telefônica em investigação de natureza civil” (sic). Ai, meu Deus, o que vou dizer aos meus alunos de processo penal? Desta vez a estripolia (“katchanga”) não foi da 6ª Turma do STJ. Quem trouxe essa novidade ao mundo jurídico foi a 3ª Turma do STJ, que, como se vê, não tem competência criminal. O caso chegou àqueles colegiado porque o juiz da 4ª Vara de Família da Comarca de Campo Grande/MS determinou a uma operadora de telefonia que implantasse escuta. O motivo era nobre: localizar um pai que havia dado sumiço no filho, a fim de inviabilizar contato com a mãe. Uma tentativa de alienação parental.
Ao receber a ordem de interceptação oriunda de juiz materialmente incompetente, os advogados da companhia telefônica impetraram habeas corpus (HC 203.405/MS) para evitar constrangimento ilegal ao funcionário da empresa. Não adiantou. O TJ/MS manteve a ordem, o parecer do SPGR foi pela denegação do habeas corpus, e o STJ desconversou. Acompanhando o voto do relator, o respeitável ministro Sidnei Beneti, os demais magistrados da 3ª Turma decidiram que o HC não era cabível porque o direito em risco pertencia ao pai (a privacidade) e não ao funcionário da empresa de telefonia e que não se via ameaça de prisão. Ora, ora, mas e a incidência no crime de desobediência e no delito do artigo 10 da Lei 9.296/96 pelo destinatário da decisão judicial enviada à companhia telefônica? Esse risco penal não lhe dava direito ao HC? Por muito menos, esse mesmo STJ anula operações da Polícia Federal, igualmente escudadas em nobilíssimos motivos.
Leiam a notícia tal como divulgada no site do tribunal:
“É possível a intercepção telefônica no âmbito civil em situação de extrema excepcionalidade, quando não houver outra medida que resguarde direitos ameaçados e o caso envolver indícios de conduta considerada criminosa. A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar habeas corpus preventivo em que o responsável pela execução da quebra de sigilo em uma empresa telefônica se recusou a cumprir determinação judicial para apurar incidente de natureza civil.
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) julgou correta a decisão do juízo de direito de uma vara de família, que expediu ofício para investigar o paradeiro de criança levada por um familiar contra determinação judicial. O gerente se negou a cumprir a ordem porque a Constituição, regulamentada neste ponto pela Lei 9.296/96, permite apenas a interceptação para investigação criminal ou instrução processual penal.
O TJMS considerou que é possível a interceptação na esfera civil quando nenhuma outra diligência puder ser adotada, como no caso julgado, em que foram expedidas, sem êxito, diversas cartas precatórias para busca e apreensão da criança. O órgão assinalou que o caso põe em confronto, de um lado, o direito à intimidade de quem terá o sigilo quebrado e, de outro, vários direitos fundamentais do menor, como educação, alimentação, lazer, dignidade e convivência familiar.
Para o tribunal local, as consequências do cumprimento da decisão judicial em questão são infinitamente menos graves do que as que ocorreriam caso o estado permanecesse inerte. Segundo o relator no STJ, ministro Sidnei Beneti, a situação inspira cuidado e não se trata pura e simplesmente de discussão de aplicação do preceito constitucional que garante o sigilo.
Embora a ordem tenha partido de juízo civil, a situação envolve também a necessidade de apurar a suposta prática do delito previsto pelo artigo 237 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): “Subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar substituto.”
O ministro destacou que o responsável pela quebra do sigilo não demonstrou haver limitação na sua liberdade de ir e vir e não há informação no habeas corpus sobre o início de processo contra ele, nem sobre ordem de prisão cautelar. “Não toca ao paciente, embora inspirado por razões nobres, discutir a ordem judicial alegando direito fundamental que não é seu, mas da parte”, ressaltou o ministro.
“Possibilitar que o destinatário da ordem judicial exponha razões para não cumpri-la é inviabilizar a própria atividade jurisdicional, com prejuízo para o Estado Democrático de Direito”, afirmou o ministro. Tendo em vista não haver razões para o receio de prisão iminente, a Terceira Turma não conheceu do pedido de habeas corpus impetrado pela defesa.”
A ementa do acórdão do HC 203.405/MS ficou assim:
HABEAS CORPUS . QUEBRA DO SIGILO TELEFÔNICO. PROCESSO CIVIL. INDÍCIOS DE COMETIMENTO DE CRIME. SUBTRAÇÃO DE CRIANÇA. DESCUMPRIMENTO DE ORDEM JUDICIAL POR FUNCIONÁRIO DE COMPANHIA TELEFÔNICA, APOIADO EM ALEGAÇÕES REFERENTES AO DIREITO DA PARTE NO PROCESSO. INEXISTÊNCIA DE FUNDADO RECEIO DE RESTRIÇÃO IMINENTE AO DIREITO DE IR E VIR. NÃO CONHECIMENTO.
1.- A possibilidade de quebra do sigilo das comunicações telefônicas fica, em tese, restrita às hipóteses de investigação criminal ou instrução processual penal. No entanto, o ato impugnado, embora praticado em processo cível, retrata hipótese excepcional, em que se apuram evidências de subtração de menor, crime tipificado no art. 237 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
2.- Não toca ao paciente, embora inspirado por razões nobres, discutir a ordem judicial alegando direito fundamental que não é seu, mas da parte processual. Possibilitar que o destinatário da ordem judicial exponha razões para não cumpri-la é inviabilizar a própria atividade jurisdicional, com prejuízo para o Estado Democrático de Direito.
3.- Do contexto destes autos não se pode inferir a iminência da prisão do paciente. Nem mesmo há informação sobre o início do processo ou sobre ordem de prisão cautelar. Ausentes razões que fundamentariam o justo receio de restrição iminente à liberdade de ir e vir, não é cabível o pedido de habeas corpus.
4.- Habeas corpus não conhecido. (STJ, 3ª Turma, rel. min. Sidnei Beneti, j. 28/06/2011).
O artigo 5°, inciso XII, da Constituição não permite dúvidas. A escuta telefônica só pode ser autorizada pelo juiz criminal competente. Nunca por um juiz de família. E só para finalidades persecutórias criminais.
Se o pretexto era investigar o delito do art. 237 do ECA, bastava mandar o caso para a Promotoria criminal, e o Ministério Público providenciaria a interceptação do telefone do pai fujão, mediante o devido processo legal, na vara adequada. Existem vários juízes criminais em Campo Grande. Qual então era a dificuldade de acionar um deles? Qual o problema de buscar provimento da autoridade competente? O crime do art. 237 do ECA admite escuta, desde que autorizada por juiz criminal:
Art. 237. Subtrair criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda em virtude de lei ou ordem judicial, com o fim de colocação em lar substituto:
Pena – reclusão de dois a seis anos, e multa.
Esta decisão da 3ª Turma do STJ é um exemplo vivo da desculpologia que viceja nos tribunais. A Constituição e a lei importam pouco. O que vale mesmo é o voluntarismo do julgador, o seu gosto pessoal por uma decisão neste ou naquele sentido, ou um senso de justiça paeticular. A justificativa para decidir “assim” ou “assado” vem depois, ainda que para isto seja preciso afastar o texto literal do artigo 5°, XII, da CF, e o artigo 1° da Lei 9.296/96 “(Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.”). É, como dizem, uma “katchanga real”.
Além da alternativa óbvia de cumprir o artigo 40 do CPP (“Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia”), o juiz da Vara de Família podia ter resolvido o problema de maneira menos intrusiva e perfeitamente legal. Em lugar de interceptar, sem poder, chamadas telefônicas do réu-pai-foragido, bastava ter determinado à operadora de telefonia monitorar as estações rádio-base (ERBs), as antenas de telefonia, utilizadas nas chamadas realizadas e recebidas pelo genitor recalcitrante.
O monitoramento do movimento do suspeito ou procurado, a partir de ERBs, não se confunde com a interceptação de suas comunicações. Nesta (a escuta), tem-se uma devassa do conteúdo dialógico das chamadas originadas e recebidas, e é isto que a Constituição quis proteger, em nome do direito à intimidade. No monitoramento de ERBs, prática investigativa não coberta pelo artigo 5°, XII, da CF, busca-se apenas descobrir o paradeiro do procurado. Não há neste caso qualquer revelação de diálogos do investigado, o que caracterizaria escuta. A informação das ERBs utilizadas pelo suspeito, quando o celular está ativo, permite que a Polícia identifique com grande precisão o local onde a pessoa buscada se encontra. O acompanhamento do alvo pode ser realizado simultaneamente ao uso da linha, e a triangulação dos sinais permite apontar o local onde está ou esteva o aparelho.
Havia, ainda, outra opção, também menos intrusiva que a interceptação. O juiz pode ordenar que seja monitorada a movimentação financeira do procurado, em tempo real, para que a instituição bancária da qual o suspeito é cliente informe imediatamente à Polícia os locais onde a pessoa a ser capturada usou seus cartões de crédito e débito, quase em tempo real.
Para localizar a criança e seu pai, a Justiça sul-matogrossense podia valer-se de uma ou outra dessas medidas (geolocalização por celular ou telemonitoramento bancário). Jamais a interceptação telefônica, ainda mais, se decretada numa vara de família.
Escutem: em escutas a regra é clara. Qualquer juiz sabe, não é “Arnaldo”?