Buritis

Era uma vez no Oeste (de Minas)

Todos ficaram admirados da coragem de Earp, que proibiu o rancheiro Smith de aproximar-se daquela cidade do meio-oeste durante 6 meses.

por Vladimir Aras

– “Esta cidade é pequena demais para nós dois” -, disse o destemido xerife Wyatt Earp ao facínora John Smith. 

Todos ficaram admirados da coragem de Earp, que proibiu o rancheiro Smith de aproximar-se daquela cidade do meio-oeste durante 6 meses.

Corta. Fim do roteiro ficcional. Isto foi “No Tempo das Diligências”. A vida real é um pouco diferente.

A frase em questão não foi pronunciada no Velho Oeste nem partiu da boca de um agente da lei norte-americano. Ela foi escrita, lida e ouvida na pequena Buritis, situada no noroeste mineiro e habitada por 20 mil almas. 

A pedido de uma mulher residente naquela comarca, a juíza Lisandre Figueira proibiu o irmão da vítima, tido como seu agressor, de frequentar a cidade de Buritis pelo prazo de 6 meses. Depois de a decisão ser divulgada pela Rede Globo domingo passado (“é pro Fantástico?”), a polêmica se instaurou no País. “A juíza acertou ou errou?” era a pergunta mais ouvida nos fóruns e nas faculdades de Direito de todo o far west.

Para começo de conversa, a medida protetiva aplicada pela juíza de Buritis está prevista no artigo 22, inciso II e inciso III, alínea ‘c’, da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e não me parece inconstitucional.

Muitos estudiosos, rápidos no gatilho – mas pouco precisos na mira -, andaram dizendo que a magistrada exorbitou porque teria aplicado pena de banimento ao réu. Não é só na roça que há bullshit. A pena de banimento é proibida pela Constituição (art. 5º, XLVII, alínea ‘d’, CF/88). Mas o que a juíza Figueira fez foi aplicar a Lei Maria da Penha, norma perfeitamente compatível com a ordem constitucional e válida para “The Good, the Bad and the Ugly”.

A pena de banimento foi banida do ordenamento jurídico brasileiro há muito tempo, e a juíza das Minas Gerais não a ressucitou. O Código Criminal do Império de 1830 assim distinguia as penas de “banimento”, “degredo” e “desterro”:

a pena de banimento privava para sempre o réu dos direitos de cidadão brasileiro e o proibia de habitar o território do Império (art. 50). Se ousasse voltar aos domínios de S. Alteza Imperial, o réu seria condenado à prisão perpétua.
a pena de degredo obrigava o réu a residir no lugar determinado pela sentença, sem dele poder sair durante o tempo fixado pelo juiz (art. 51). A sentença deveria ser cumprida fora da comarca de domicílio da vítima.
a pena de desterro obrigava o réu a deixar o distrito da culpa, o seu domicílio e o do ofendido, ficando proibida sua entrada durante o tempo marcado na sentença (art. 52).
Em todos os casos, o degredado, o desterrado e o banido ficavam privados do exercício dos direitos políticos de cidadão brasileiro, enquanto durassem os efeitos da condenação (art. 53 do CCI), o que evidencia seu caráter de sanção penal, em moldes semelhantes ao que hoje ocorre depois da condenação criminal transitada em julgado (art. 15, inciso III, da Constituição de 1988).

No Código Penal de 1890 (Decreto 847) – o primeiro da República, curiosamente, editado antes da Constituição de 1891 -, o banimento privava o condenado dos direitos de cidadão brasileiro e o inibia de habitar o território dos Estados Unidos do Brazil, enquanto durassem os efeitos da pena (art. 46). Nisto, a regra republicana era semelhante à norma imperial. 

Pelo que se vê, historicamente a decisão judicial de Buritis mais se assemelha à antiga pena de desterro que à sanção de banimento. Mesmo assim, com estes não se confunde, já que o desterro e o banimento eram sanções penais, ao passo que a vedação imposta pelo Poder Judiciário mineiro corresponde a uma medida protetiva de urgência, de natureza cautelar e curta duração, destinada a proteger a integridade física e a vida da requerente, potencial vítima de violência de gênero.

Medidas de cautela desta espécie são muito comuns na legislação europeia, norte-americana e sul-americana. No caso brasileiro, parecem ter-se fortalecido e diversificado com a Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha, como conseqüência do cumprimento pelo Brasil dos compromissos assumidos na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, de 1994 (Convenção de Belém do Pará). Antes, porém, o art. 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) já previa a possibilidade de afastamento cautelar do agressor da moradia comum em caso de maus-tratos ou abuso sexual contra criança ou adolescente. Por sua vez, em 2001, o art. 45 do Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2001) abrira as portas para algumas medidas de proteção nominadas e inominadas em favor dos mais velhos, mas não regulou expressamente as ordens de distanciamento.

Desde sua entrada em vigor, o art. 7º, alíneas ‘b’, ‘c’ e ‘d’, daConvenção de Belém do Pará compele os Estados-Partes a adotar políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher e a empenhar-se em agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher; incorporar na sua legislação interna normas penais, civis, administrativas e de outra natureza, que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher; e adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir, intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qualquer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integridade ou danifique sua propriedade.

Este dispositivo convencional reclamou a adoção das tais medidas protetivas para a prevenção da violência doméstica. Tenho para mim que a limitação de circulação espacial ou a ordem de afastamento cautelar do agressor ou abusador não ofende o art. 7º, §2º, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que admite restrições ao direito de liberdade, desde que previstas em lei do Congresso: “Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas condições previamente fixadas pelas constituições políticas dos Estados Partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas”.

Também não há incompatibilidade entre o art. 22, incisos II e III, da Lei Maria da Penha e a Constituição Federal de 1988. Já vimos que a medida em questão não se confunde com a pena de banimento nem com a sanção de desterro. Logo, não há que se falar na vedação prevista no art. 5º, XLVII, da CF. As providências instituídas pela Lei Maria da Penha são instrumentais e substitutivas da prisão cautelar.

Por outro lado, a Constituição assegura, no inciso XV, do art. 5º, a livre locomoção no território nacional em tempo de paz, permitindo a qualquer pessoa nele entrar, permanecer ou dele sair, na forma da lei. E a Lei Maria da Penha, considerando os bens em conflito (liberdade de circulação vs. vida e integridade física da vítima), restringiu parcialmente aquela liberdade de locomoção, em certo trecho do território da nação, a fim de impedir que o agressor se aproxime da vítima para assediá-la, importuná-la, vigiá-la, ameaçá-la, agredi-la ou matá-la.

Regra semelhante a esta pode ser lida nos arts. 39-A e 41-B, §2º, do Estatuto  do Torcedor (Lei 10.671/2003). Estes dispositivos, porém, dirigem-se aos hooligans e barrabravas tupiniquins, para restringir-lhes o acesso a determinadas praças esportivas como penalidades, e não propriamente como medidas de cautela. Em todo caso, o art. 5º, inciso XLVI, alínea ‘a’, da Constituição autoriza expressamente tanto a privação (reclusão e detenção) quanto a restrição do direito de liberdade, na forma da lei.

Portanto, não há como questionar a constitucionalidade do art. 22 da Lei Maria da Penha nem sua convencionalidade à luz do Pacto de São José da Costa Rica e da Convenção de Belém do Pará. Porém, há que se perquirir sobre sua proporcionalidade.

A distância da “separação de corpos” estabelecida pela magistrada de Buritis foi proporcional à ameaça sofrida pela vítima ou ao risco que ela sofria? Não há dados públicos que permitam resolver este ponto. Mas podemos tentar traçar alguns balizamentos genéricos.

No direito comparado, as medidas restritivas de acercamento são chamadas de injunction ou restraining orders. Nos Estados Unidos, as distâncias mínimas das restraining orders variam de Estado para Estado, cumprindo ao réu manter-se afastado da vítima entre 50 e 1.000 pés, guardando o mesmo afastamento dos locais de seu domicílio e trabalho, o que equivale ao mínimo de 15,24 metros e ao máximo de 304,8 metros. Na maior parte dos Estados norte-americanos, o intervalo vai de 100 a 300 jardas (de 91,44 a 274,32 metros). Em Kentucky, chega a 500 pés, podendo a providência ser combinada com o uso de aparato geolocalizador. Exemplo recente da aplicação deste tipo de medida protetiva é a que desde 2009 limita os passos de Chris Brown. Por ordem judicial, o cantor deve manter distância mínima de 50 jardas (45,72m) da também cantora Rihanna, sua ex-namorada, cautela que vale inclusive para a cerimônia de premiação do Grammy, que ocorre neste domingo (13/fev).

Tal como no Brasil, essas restraining orders visam a impedir violência sexual, agressões físicas ou verbais, perseguição (stalking) e outros comportamentos inconvenientes ou ameaçadores. No exterior, desrespeitar tais restrições pode levar o agressor à prisão pelo crime de contempt of court, resultando em penas autônomas de até 5 anos de reclusão. É o que prevê, por exemplo, o Domestic Violence, Crime and Victims Act 2004, do Reino Unido.

A Lei Maria da Penha não estabelece a distância de aproximação. Cabe ao juiz aferi-la e defini-la no caso concreto. Para isto, deve imperar o bom senso, guiado pela ideia de proporcionalidade. Elementos objetivos podem ser invocados para orientar a decisão, como a gravidade da ameaça ou do risco, os antecedentes de violência do agressor, as condições psicológicas da vítima, seus locais habituais de freqüentação e convivência social e o tamanho da cidade ou da localidade de residência.

Evidentemente, se tendente a vedar o ingresso de um cidadão em Belo Horizonte, Feira de Santana ou Londrina, o “desterro” seria claramente abusivo, devido às dimensões dessas cidades. Nelas, há espaço para todo mundo. Por outro lado, algumas vilas do País têm uma rua e uma esquina. A avenida de chegada é a rodovia de partida. As mensagens de “seja bem-vindo” e “volte sempre” estão na mesma placa. Nestes lugarejos diminutas, as condições de convivência são outras e o quinhão que cabe a cada habitante pode ser muito acanhado.

Qual é a área de Buritis/MG? Segundo o IBGE, o município tem 5.219 km², o que grosseiramente corresponde a 73 km lineares de leste a oeste e outro tanto de norte a sul (não confiem na minha matemática). Seu lema é “Buritis, terra de todos”. Agora, de todos menos um. Privar uma pessoa de ter acesso a uma área tão extensa do território nacional pode realmente projetar-se para fora da escala. Uma coisa é proibir o réu de frequentar o bairro da vítima ou a região onde ela trabalha; outra coisa é vedar seu ingresso em todo o território do município onde costumava viver.

No PLS 156/2009, que instituirá o novo Código de Processo Penal, o legislador pretende oferecer um amplo rol de providências cautelares, reais e pessoais, que sirvam como substitutivos à prisão processual. O art. 533 do projeto prevê, entre outras, o recolhimento domiciliar (inciso III), o monitoramento eletrônico (inciso IV), a proibição de frequentar determinados lugares (inciso VII), o afastamento do lar ou outro local de convivência com a vítima (inciso IX), a proibição de ausentar-se da comarca ou do País (inciso X), e a proibição de se aproximar ou manter contato com pessoa determinada (inciso XII).

Como se percebe, todas essas providências cautelares são orientadas para a restrição da liberdade de circulação (ir, vir, ficar) do investigado ou acusado, com o claro propósito de circunscrever um certo espaço de locomoção, para assegurar a manutenção da ordem pública e para garantir a aplicação da lei penal. Tais medidas de restrição espacial são muito semelhantes àquela que a juíza de Buritis adotou e todas elas são perfeitamente constitucionais.

Contudo, o futuro art. 602 do CPP – conforme o PLS 156/2009 -, que cuidará topicamente da medida cautelar pessoal de “proibição de aproximação” não delimita metricamente as restrições espaciais cabíveis. Determina apenas que o juiz “fixará os parâmetros cautelares de distanciamento obrigatório, bem como os meios de contato interditos”. O céu continuará sendo o limite.

No caso de Buritis, conforme o que foi divulgado pela imprensa, o réu não residia naquela cidade; viveria no Distrito Federal. Este seria um motivo razoável, mas por si só ainda insuficiente, para proibi-lo de ter acesso ao território do município pelo prazo de um semestre. A juíza deve ter fundado sua decisão em outros elementos ignorados pela opinião pública, os mesmos que a fizeram considerar o tempo de 6 meses suficiente para a reflexão do réu e esfriamento de ânimos.

Em suma, a decisão judicial não foi ilegal nem inconstitucional, mas pode ter sido desproporcional (não tenho elementos para afirmar, já que os autos não foram publicados). Ainda assim, arrisco-me a dizer que a providência adotada foi acertada porque a juíza privilegiou o direito de liberdade física do réu, em substituição à sua prisão, e porque, ao mesmo tempo, protegeu a vida e a integridade física de sua irmã, suposta vítima.

A culpa – se é que houve – pela imprecisão do âmbito espacial de proibição não é da juíza de Buritis, mas dos parlamentares que estão a duas centenas de quilômetros dali, em Brasília, aos quais cabe aprovar leis claras e plenamente garantistas, que livrem o processo de discussões bizantinas como esta.

Eliminado eventual excesso “geográfico”, não há nada de absurdo na decisão do juízo de Buritis. A magistrada só inverteu o sinal de uma medida processual corriqueira: transformou o que normalmente é uma proibição de sair em uma proibição de entrar.

Explico com um exemplo de outra lei: o art. 89 da Lei 9.099/95 permite que o processo penal seja suspenso mediante certas condições. Uma delas é a “proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz” (art. 89, §1º, inciso III), o que equivale a uma proibição de sair da circunscrição judiciária, muito parecida com a pena de degredo do Código Criminal de 1832 (art. 52). Essas proibições são usuais no cotidiano forense. Ninguém se ofende nem intima o juiz para um duelo.

No caso concreto, a juíza de Buritis estabeleceu para o réu uma proibição cautelar inversa àquela, isto é, a vedação de entrar na cidade da vítima pelo prazo xis, nos termos do art. 22 da Lei Maria da Penha, o que na verdade é a mesma coisa que o proibir de frequentar “determinados lugares”, condição também rotineira no foro (o art. 89, §1º, inciso II, da Lei 9.099/95 é um exemplo) e cabível em situações muito menos graves do que as previstas na Lei Maria da Penha.

O fim deste western mineiro deve ser pacífico. Ficou provado que Buritis não é “Appaloosa, a Cidade sem Lei”. A juíza Figueira preferiu “O Risco de uma Decisão” à segurança da omissão. Ninguém quer ver cenas iguais às de “Meu Ódio Será Tua Herança”. Nem lá, nem aqui nem acolá. A Lei Maria da Penha serve para impedir que corra por aí um “Rio Vermelho” de sangue, e a missão dos juízes é represar os riscos e fazê-la valer. Afinal, “A Morte não Manda Recado”.

 

 

 

 

Inscrever-se
Notificar de
0 Comentários
mais recentes
mais antigos Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários