Por Vladimir Aras
“A porta da rua é a serventia da casa”, diz o antigo ditado. Controles migratórios em portos e aeroportos, principais portas de entrada do País, sempre serviram para barrar visitantes indesejáveis. Agora temos um novo enfoque. Nem todo turista é bem-vindo.
Um norte-americano foi o primeiro cidadão a ser proibido de entrar em território brasileiro por enquadramento na Portaria Interministerial 876, de 22 de maio de 2014 (aqui), que impede o ingresso no País de “pessoa condenada por crime de pornografia ou exploração sexual infanto-juvenil“, medida a ser aplicada no controle fronteiriço ou em atividades de fiscalização migratória nos portos, aeroportos internacionais e pontos de fiscalização terrestre de migração.
A inauguração da nova regra ocorreu em 07/junho, no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. O turista X, que acabara de desembarcar no Brasil, sofrera condenação criminal por crime sexual nos Estados Unidos. Quis entrar. Deu com a porta (e a portaria) na cara. E olha aí a blague de Geraldo Ataliba a ganhar contorno: uma portaria para atos de “porteiros”, de portos e aeroportos.
Medidas de precaução desta ordem não são novidade no globo. Nos Estados Unidos — país de origem do barrado número um — todas as unidades federadas baixaram leis protetivas que determinam o registro público de criminosos sexuais. São as sex offenders lists, mantidas por órgãos públicos ou por associações civis. As leis que permitem a existência desses registries são apelidadas de “Megan’s Law” (aqui), em referência a Megan Kanka, que, em 1994, aos 7 anos, foi estuprada e assassinada por seu vizinho Jesse Timmendequas, que já cumprira pena por crimes contra a liberdade sexual de duas outras meninas. Um registered sex offender terá o seu nome, fotografia, endereço, local de trabalho, crime, data da prisão e da libertação publicados num website público.
Devido ao caso Megan, a partir de meados dos anos 1990, os Estados Unidos introduziram legislação federal para estimular a criação desses registros públicos de pedófilos e de outros autores de crimes contra crianças. Em 1994, o Congresso americano aprovou o Jacob Wetterling Crimes Against Children and Sexually Violent Offender Registration Act (Wetterling Act). Em 1996, veio a Pam Lyncher Sexual Offender Tracking and Identification Act (Lyncher Act), que incumbiu o FBI de gerir uma base nacional de criminosos sexuais. Em 2006, foi sancionada a Adam Walsh Child Protection and Safety Act (Adam Walsh Act – AWA), que estabeleceu três categorias de delinquentes sexuais, que se devem registrar periodicamente no registro nacional, para facilitar o seu rastreamento e localização. Tais leis federais permitiram a criação do National Sex Offender Public Website (NSOPW) (aqui), mantido pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos em colaboração com a justiça criminal dos Estados, dos territórios e das jurisdições indígenas norte-americanas.
Aqui não havia nada semelhante. Ainda não há, mas a Portaria Interministerial 876/2014 é o primeiro instrumento legal antipedofilia a basear-se no critério de listas sujas. De acordo com o artigo 2º da Portaria, os agentes responsáveis pelo controle migratório e fronteiriço podem impedir o ingresso no território nacional de qualquer estrangeiro “cujo nome conste de difusão oficial em Sistemas de Cooperação Internacional, nos casos em que o estrangeiro tenha condenação por crime relacionado à pornografia ou a exploração sexual infanto-juvenil”.
A que registro a Portaria se refere? Seguramente às bases de dados da Interpol, que se vale do sistema de difusões ou notices para a notificação dos Estados Parte sobre criminosos procurados para extradição (red notices) ou sobre pessoas de especial interesse, potencialmente reincidentes, inclusive delinquentes sexuais (green notices).
Registros públicos mantidos por outros países, a exemplo do NSOPW, dos Estados Unidos, são igualmente úteis, porque, na forma do §1º do artigo 2º da Portaria, o estrangeiro também poderá ser barrado logo à entrada se o seu envolvimento em crimes de pornografia e exploração sexual infanto-juvenil for de conhecimento da Polícia Federal por outros meios de informação.
Não custa demonstrar que tal ato normativo do Ministério da Justiça (MJ) e da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH) está em perfeita harmonia com a Constituição e as leis brasileiras, especialmente o Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815/1980) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), com o que se observa o princípio da legalidade (art. 5º, inciso II, CF).
Considere-se ainda que a Constituição de 1988 assegura a soberania do Estado brasileiro (art. 1º, inciso I, CF). Ademais, nas suas relações internacionais, a República Federativa do Brasil rege-se pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, II, CF). Cabe ao Poder Executivo definir a política migratória nacional, inclusive sobre a entrada de estrangeiros (art. 22, inciso XV, CF) e decidir quem pode e quem não pode ingressar no território nacional. Atente para o fato de que o artigo 5º, inciso XV, da CF, prevê que “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”. Vale dizer: a entrada no País deve observar requisitos estabelecidos na lei.
Além de ser constitucional, a medida adotada pelo Poder Executivo brasileiro é também convencional, isto é, respeita verticalmente o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto 592/1991) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto 678/1992), especialmente os seus artigos 12 e 22, que estatuem, respectivamente:
Pacto Internacional:
“Artigo 12
1. Toda pessoa que se ache legalmente no território de um Estado terá o direito de nele livremente circular e escolher sua residência.
2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país.
3. os direitos supracitados não poderão ser objeto de restrições, a menos que estejam previstas em lei e no intuito de proteger a segurança nacional e a ordem, a saúde ou a moral pública, bem como os direitos e liberdades das demais pessoas, e que sejam compatíveis com os outros direitos reconhecidos no presente Pacto.
◊
Convenção Americana:
“Artigo 22 – Direito de circulação e de residência
1. Toda pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado tem o direito de nele livremente circular e de nele residir, em conformidade com as disposições legais.
2. Toda pessoa terá o direito de sair livremente de qualquer país, inclusive de seu próprio país.
3. O exercício dos direitos supracitados não pode ser restringido, senão em virtude de lei, na medida indispensável, em uma sociedade democrática, para prevenir infrações penais ou para proteger a segurança nacional, a segurança ou a ordem públicas, a moral ou a saúde públicas, ou os direitos e liberdades das demais pessoas.
4. O exercício dos direitos reconhecidos no inciso 1 pode também ser restringido pela lei, em zonas determinadas, por motivo de interesse público.
5. Ninguém pode ser expulso do território do Estado do qual for nacional e nem ser privado do direito de nele entrar.
6. O estrangeiro que se encontre legalmente no território de um Estado-parte na presente Convenção só poderá dele ser expulso em decorrência de decisão adotada em conformidade com a lei.”
De fato, as convenções de direitos humanos prevêem a liberdade de saída do território nacional. Por outro lado, conforme a lei brasileira, um estrangeiro só pode entrar no Brasil se tiver visto, salvo nos casos de sua dispensa por tratado ou reciprocidade. E, segundo o art. 7º, incisos II e IV, da Lei 6.815/1980, esse visto pode ser negado para prevenir infrações penais ou para proteger a ordem pública ou os direitos e liberdades das demais pessoas. E isto é garantismo também:
“Art. 7º Não se concederá visto ao estrangeiro:
II – considerado nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais;
IV – condenado ou processado em outro país por crime doloso, passível de extradição segundo a lei brasileira;
Tal regra é complementada pelo artigo 26 do EE, segundo o qual “o visto concedido pela autoridade consular configura mera expectativa de direito, podendo a entrada, a estada ou o registro do estrangeiro ser obstado ocorrendo qualquer dos casos do artigo 7º, ou a inconveniência de sua presença no território nacional, a critério do Ministério da Justiça“. Em outras palavras, não há direito líquido e certo de ingresso no território brasileiro, mesmo quando o estrangeiro está de posse de visto válido. O Estado é soberano e pode impedir a entrada.
Deste modo, o indeferimento do visto e a negativa de entrada são as primeiras medidas de proteção contra uma persona non grata. Se indivíduos nocivos à comunidade nacional conseguem ingressar em território nacional, o Estado pode proceder à sua expulsão, entre outros motivos, “quando existirem indícios sérios de periculosidade ou indesejabilidade do estrangeiro“. É o que diz o artigo 62 do EE.
Essa portaria governamental, que já poderia ter sido adotada há muito tempo, implementa princípios de precaução relacionados à política migratória e de proteção integral a crianças e adolescentes, nos termos do ECA (arts. 1º, 3º, 5º, 17 e 18) e da Convenção Americana de Direitos Humanos, cujo artigo 19 estabelece:
Artigo 19 – Direitos da criança
Toda criança terá direito às medidas de proteção que a sua condição de menor requer, por parte da sua família, da sociedade e do Estado.
No particular, o art. 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente reforça tal política de prevenção, ao determinar que é “dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente“. Portanto, sendo conhecidos os antecedentes criminais de um determinado turista estrangeiro, é legítimo ao Estado brasileiro barrar sua entrada em nosso território, de modo a evitar que, aqui estando, esse visitante indesejado (persona non grata) reitere tal prática criminosa, tendo como vítimas crianças ou adolescentes aqui residentes.
A medida de controle instituída pelo governo também respeita e torna eficaz o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança referente à venda de crianças, à prostituição infantil e à pornografia infantil (Nova York, 2000) (Decreto 5.007/2004), cujo artigo 9º determina que os “Estados Partes adotarão ou reforçarão, implementarão e disseminarão leis, medidas administrativas, políticas e programas sociais para evitar os delitos a que se refere o presente Protocolo“, isto é, a pornografia infantil, a prostituição infantil e o tráfico de crianças, gêneros que, no Brasil, englobam, entre outros delitos, o estupro de vulnerável (art. 217-A, CP) e o favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, CP), considerados crimes hediondos, conforme o art. 1º, VI e VIII, da Lei 8.072/1990, com a redação dada pela Lei 12.015/2009 e pela Lei 12.978/2014.
Eis aí, então, a Portaria Antipedófilos. Quem tem filhos vai entender e aplaudir. Quem não tem ou quem se acha “garantista” e “liberal” vai dizer que a portaria é um absurdo igual à letra escarlate de outrora. Não quero ser rude, mas ninguém convidaria um pedófilo sentenciado ou um estuprador condenado para dentro de sua residência para conviver com suas crianças. O Brasil não deve ser a casa da Mãe Joana, para onde estrangeiros endinheirados ou almas atormentadas vêm em busca de turismo sexual, pedo-pornografia, prostituição infantil e impunidade.
Para os pedófilos estrangeiros, #NãoVaiTerCopa. Todos expulsos de campo. Neste caso, o Brasil pode gritar gol. De placa.