Não é de hoje que os afastamentos do trabalho por doenças mentais se tornaram uma crise de saúde pública no Brasil. Em 2023, dados do Ministério da Previdência Social indicaram um aumento de 38% nesses afastamentos. Em 2024, a situação se agravou ainda mais: foram concedidas 472 mil licenças médicas por problemas psicológicos, um crescimento de 68% em relação ao ano anterior.
Esses dados se referem exclusivamente a contratações no regime CLT, o que pode indicar uma subnotificação do problema, uma vez que prestadores de serviços autônomos ou liberais não têm acesso a esse mecanismo por meio dos seus tomadores de serviço. Assim, esses profissionais são responsáveis por si mesmos, em uma mescla de pessoa jurídica com pessoa física.
Além do impacto humano, o custo financeiro também é expressivo. Em média, cada afastamento dura três meses, gerando um custo de aproximadamente R$ 3 bilhões ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). No cenário global, os quadros de sofrimento psíquico são responsáveis pela perda de 12 bilhões de dias úteis anualmente, resultando em um prejuízo estimado de US$ 1 trilhão para a economia mundial.
“O aumento reflete não só o agravamento das condições de trabalho, mas também a conscientização sobre o direito à saúde mental. Empresas de todos os setores precisam urgentemente reavaliar suas práticas, pois esse direito fundamental ainda é negligenciado em muitos ambientes corporativos”, destaca a psicanalista e Presidente do Instituto de Pesquisa de Estudos do Feminino e das Existências Múltiplas (Ipefem), Ana Tomazelli.
Empresas ou trabalhadores: quem deve mudar?
Diante desses números alarmantes, a pergunta surge: “O problema está no ambiente de trabalho ou nos profissionais que adoecem?”
48% dos entrevistados afirmam estar mentalmente esgotados, entre eles, a maioria tem entre 18 e 29 anos, segundo o estudo da Future Fórum realizado com mais de 10 mil trabalhadores nos Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, França, Alemanha e Japão. No Brasil, a realidade não é diferente. Segundo a International Stress Management Association (ISMA-BR), 72% dos brasileiros se sentem estressados no trabalho, e 32% sofrem da síndrome de Burnout.
O Impacto do Ambiente de Trabalho na Saúde Mental
Ana Tomazelli ressalta que “Se o problema estivesse apenas nos indivíduos, o aumento exponencial dos afastamentos não faria sentido. Esses números evidenciam um modelo de trabalho que, muitas vezes, ignora os limites humanos e perpetua uma cultura de produtividade tóxica. Jornadas exaustivas, cobrança excessiva por resultados, sobrecarga de demandas, falta de reconhecimento e um ambiente onde a vulnerabilidade é vista como fraqueza são alguns dos principais gatilhos para o esgotamento mental”.
A especialista reforça que a responsabilidade pela mudança é coletiva e não pode recair apenas sobre o indivíduo. “Empresas que se preocupam verdadeiramente com a sustentabilidade da sua força de trabalho, precisam ir além de palestras ocasionais sobre bem-estar e se comprometer com uma transformação real da cultura organizacional”.
Direito inegociável: 70% dos profissionais demonstram interesse em trabalhar para empresas que priorizam a saúde mental
Se antes as empresas tinham total controle sobre quem contratar, hoje, são os próprios profissionais que pesquisam a credibilidade das organizações antes de se candidatarem.
Em grupos de emprego em aplicativos de mensagens, além de compartilhar vagas, os candidatos discutem sobre o clima organizacional e a qualidade de vida dentro das empresas. Esse comportamento reflete uma mudança estrutural no mercado de trabalho: cada vez mais pessoas evitam ambientes tóxicos que possam comprometer sua saúde psicológica.
Números afirmam essa tendência. Conforme o Relatório Tendências Gestão de Pessoas 2024, 70% dos profissionais demonstram interesse em trabalhar para empresas que priorizam a saúde mental.
“Isso demonstra que a preocupação com o bem-estar não é apenas uma tendência de uma nova geração, mas um critério essencial na decisão profissional. Já não basta oferecer benefícios pontuais, como um dia de folga ou um aplicativo de meditação. O que os profissionais buscam é um ambiente onde se sintam valorizados, ou seja, um verdadeiro senso de pertencimento. Quem se sente acolhido e respeitado em suas necessidades psicológicas permanece por mais tempo, produz melhor e, acima de tudo, torna-se agente de inovação dentro da empresa”, pontua Ana Tomazelli.
Um ambiente organizacional saudável reduz turnover, minimiza afastamentos e aumenta o engajamento. E esse não é um discurso motivacional vazio — de acordo com a OMS, para cada US$ 1 investido em programas de saúde mental, há um retorno de US$ 4 em produtividade.
Da teoria à prática: como construir um ambiente de trabalho mentalmente saudável
Mas, afinal, como sair do discurso e implementar mudanças reais? “O primeiro passo é reconhecer que saúde mental não é um “extra”, mas um pilar essencial da gestão. Para isso, é fundamental adotar iniciativas práticas que promovam um ambiente de trabalho mais saudável”, explica a psicanalista e Presidente do Instituto de Pesquisa de Estudos do Feminino e das Existências Múltiplas (Ipefem), Ana Tomazelli..
A flexibilidade e a autonomia, por exemplo, permitem que os profissionais tenham horários adaptáveis e modalidades híbridas ou remotas, o que pode reduzir o estresse e melhorar a qualidade de vida. Além disso, segundo Ana Tomazelli, lideranças capacitadas fazem toda a diferença, pois gestores treinados conseguem identificar sinais de esgotamento e criar espaços de diálogos seguros.
Outra medida importante é garantir uma carga de trabalho realista, evitando que os profissionais operem constantemente no limite. Da mesma forma, uma cultura organizacional baseada em feedbacks construtivos favorece o reconhecimento e a comunicação clara, reduzindo ansiedade.
“Oferecer apoio profissional por meio de acesso a psicólogos, programas de suporte emocional e momentos de desconexão contribui significativamente para o bem-estar. O maior erro das empresas que negligenciam a saúde mental é acreditar que o problema pode ser resolvido com discursos ou ações pontuais. Mas os números não deixam dúvidas: a forma como o trabalho é estruturado está adoecendo as pessoas. E isso não afeta apenas os indivíduos, mas toda a organização. Tratar a saúde mental como prioridade não é só uma demanda dos profissionais — é uma necessidade urgente para a sustentabilidade dos negócios”, conclui Ana Tomazelli.
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