Se tem uma cena de Euphoria (2019) que se aproxima da GenZ e os millennials é a rotina de skincare da Cassie Howard (Sydney Sweeney) às 4h da manhã. A proximidade com o público adolescente é palpável, já que a vaidade, impulsionada pelas inseguranças e o medo da rejeição, leva à ditadura da beleza. O “martírio do espelho”, entretanto, é ainda mais alarmante em traços opostos aos eurocêntricos de Cassie – como no caso das jovens pretas.
Crescendo em meio à disseminação dos padrões europeus de beleza, o grupo de mulheres pretas é o que menos se sente atraente no Brasil – 58%, seguido de pardas (60%) e brancas (63%), segundo o Datafolha. Apesar dessa realidade social, as mulheres negras compõem a maior parcela populacional do país, com 60 milhões de brasileiras, conforme relatório do Pnud.
Enraizadas em uma nação pluricultural, a marginalização do estereótipo da jovem negra no Brasil tem raízes na colonização – e a subsequente exclusão social pós-abolicionista pela Lei nº 3.353 de 1888. Por outro lado, os ideais eurocêntricos permaneceram enrustidos no país, estampando publicidades na TV e capas de revistas. A juventude preta, enquanto isso, crescia com a rejeição dos próprios traços pela sociedade, mainstream e, como consequência, por elas mesmas.
“Por muito tempo, a mídia vendeu a ideia de que a beleza negra era exceção e não regra. Isso significa que as poucas referências que tivemos eram tratadas como casos raros, já que no âmbito geral, traços como pele escura, cabelo crespo e nariz largo eram desvalorizados. Desde cedo, criamos nossos conceitos sobre beleza a partir daquilo que assistimos, lemos e consumimos. Se a TV, os filmes e as revistas mostram apenas mulheres negras em papéis secundários ou reforçam estereótipos, isso afeta diretamente a construção da nossa autoestima enquanto mulher preta”, explica a biomédica esteta Jéssica Magalhães.
Especialista em pele preta, Jéssica avalia uma tendência entre jovens negras no seu consultório: a vaidade precoce dessa juventude está intrinsecamente ligada com a rejeição histórica da própria imagem. Soma-se isto ao fenômeno das redes sociais. Um estudo recente da Merz Aesthetics mostra que 42% da Geração Z comparam sua imagem com a de outras pessoas nas mídias digitais.
“O impacto disso é profundo, passamos a desejar características diferentes das nossas antes mesmo de entendermos o valor da própria imagem. As redes sociais são um espaço poderoso de influência, mas nem sempre são inclusivas. Apesar dos avanços na representatividade, os algoritmos ainda priorizam certos padrões de beleza eurocêntricos, fazendo com que meninas negras tenham menos referências que refletem suas características naturais”, explicou.
Trends e filtros nas redes sociais que afinam o nariz, “skin whitening” (clareamento de pele) e o popular “clean girl aesthetic makeup” reforçam a ideia de que a beleza está ligada à modificação da aparência. A especialista em pele preta alerta que quando uma menina negra não se vê representada, a mensagem que ouve frequentemente no consultório é: minha beleza não é suficiente.
“Essa insuficiência gera uma vaidade precoce que pode ter dois caminhos distintos na vida de meninas e meninos negros. De um lado, pode surgir como uma tentativa extrema de pertencimento e aceitação social, especialmente em ambientes onde os padrões de beleza eurocêntricos predominam. Imagine ali se a Cassie, de Euphoria, fosse uma mulher preta? A rotina vaidosa seria 100x mais alarmante, 100x mais angustiante. Por outro lado, a vaidade também pode ser uma ferramenta poderosa se usada para valorização da identidade e conexão com suas raízes”, relata.
A profissional explica que os cuidados com a pele, cabelos e os adornos sempre integraram a cultura de matrizes africanas, passados de geração em geração como rituais de autoestima e pertencimento. Para Jéssica, quando as meninas negras têm acesso a referências positivas e aprendem desde cedo a se enxergar com orgulho, a vaidade se transforma em um ato de amor próprio e fortalecimento da ancestralidade.
“Por isso, é essencial que a vaidade infantil seja incentivada de forma saudável, não como uma necessidade de se encaixar em padrões externos, mas como uma celebração da beleza natural e da cultura negra. Mais do que estética, esse é um caminho de identidade, pertencimento e resgate histórico”, comenta.
Somando mais de 10 anos de experiência na biomedicina, Jéssica atenta ainda para influenciadores e marcas que promovem produtos e procedimentos sem considerar a diversidade, consequentemente reforçando a exclusão. Os efeitos já são sentidos pelo mercado, visto que 70% das mulheres negras estão insatisfeitas com o mercado da beleza, segundo dados da Avon, em parceria com a Grimpa.
“A descolonização estética envolve romper com padrões impostos historicamente e reconstruir a relação com a própria imagem a partir de referências negras e afrocentradas. É isso que falta no mercado, no mainstream, em marcas, influencers. Precisamos olhar para a juventude preta, para que essas futuras mulheres não se sintam menos atraentes porque não seguem um estereótipo que ‘definiram’ como belo. Ou não é estranho que nossa maior parcela populacional não se sinta representada em seu próprio mercado da beleza?”, conclui.
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