Vladmir Aras

Comentários ao Pacote Anticrime (6): a natureza jurídica do ANPP

Os acordos do art. 28-A do CPP, da Lei 12.850/2013 e da Lei 9.099/1995 têm como fundamento o consenso, tendo como premissa um processo de partes, não se permitindo a violação da autonomia da vontade de qualquer delas.

Por Vladmir Aras

O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) denegou habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública contra ato do Procurador-Geral de Justiça (PGJ) paulista que, em atribuição revisional, manteve a recusa de apresentação de proposta de acordo de não persecução penal (ANPP) a pessoa investigada por tráfico privilegiado.

Em primeira instância, o promotor de Justiça negou-se a oferecer a proposta de ANPP, introduzido no CPP pela Lei Anticrime. A defesa, então, provocou o procedimento revisional, tendo o juiz da causa enviado os autos ao PGJ, para reexame. Ao exercer a atribuição decorrente do §14 do art. 28-A do CPP, o PGJ manteve a recusa.

Diante disso, a Defensoria Publica questionou a negativa de proposta de ANPP perante o Poder Judiciário, em sede de habeas corpus.

Ao denegar a ordem, o TJ/SP afirmou que o ANPP é instrumento de natureza consensual, bilateral, não podendo o Judiciário impor sua celebração, em caso de recusa do Ministério Público. Foi relator o desembargador Xisto Rangel, da 3ª Câmara Criminal:

“Dessa forma, deve-se partir da premissa de que o acordo de não persecução penal deve ser resultante da convergência de vontades (acusado e MP), não podendo se afirmar, indubitavelmente, que se trata de um direito subjetivo do acusado, até porque, se assim o fosse, haveria a possibilidade do juízo competente determinar a sua realização de ofício, o que retiraria a sua característica mais essencial, que é o consenso entre os sujeitos envolvidos.

Ademais, o legislador previu no art. 28-A, §14, que diante da negativa do Ministério Público em oferecer o referido acordo, poderia o magistrado remeter os autos ao i. Procurador Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP, o que de fato foi feito nestes autos, conforme podemos verificar às fls. 118/119 dos autos principais. No entanto, o digno Procurador Geral de Justiça manteve a posição do Promotor de primeiro grau e insistiu na recusa de oferta do referido acordo.

Acertada a posição da Corte paulista. No livro Lei Anticrime Comentada, cuidei dos acordos de não persecução penal. No item 10 do capítulo 10 escrevi sobre a natureza jurídica do ANPP.

O acusado não tem direito subjetivo ao acordo de não persecução penal. Tem direito a uma proposta do Ministério ou a uma negativa, ambas motivadas. Quando entrou em vigor o art. 89 da Lei 9.099/1995, debateu-se demoradamente sobre a natureza jurídica da suspensão condicional do processo. Na ocasião, sustentei que se tratava de instrumento cujo manejo cabia ao Ministério Público como coadjuvan- te da política criminal do Estado.

Naquela ocasião, por meio da Súmula 696, o STF estabeleceu que, reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, caso o promotor natural se recusa-se a propô-la, o juiz, dissentindo, deveria remeter a questão ao Procurador-Geral, “aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal”.

Em 2006, no RE 468.161/GO, o STF deixou claro que tal solução se aplicava tanto à suspensão condicional do processo quanto à transação penal:

Transação penal homologada em audiência realizada sem a presença do Ministério Público: nulidade: violação do art. 129, I, da Constituição Federal. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal – que a fundamentação do leading case da Súmula 696 evidencia: HC 75.343, 12.11.97, Pertence, RTJ 177/1293 -, que a imprescindibilidade do assentimento do Ministério Público quer à suspensão condicional do processo, quer à transação penal, está conectada estreitamente à titularidade da ação penal pública, que a Constituição lhe confiou privativamente (CF, art. 129, I). 2. Daí que a transação penal – bem como a suspensão condicional do processo – pressupõe o acordo entre as partes, cuja iniciativa da proposta, na ação penal pública, é do Ministério Público.

Em 2014, no INQ 3438/SP, a Corte reafirmou o entendimento, surgido em 1997, de que “não cabe ao Poder Judiciário conceder os benefícios da Lei 9.099/1995 à revelia do titular da ação penal”.

Para o STJ, a suspensão condicional do processo “não é direito subjetivo do acusado, mas sim um poder-dever do Ministério Público” (Jurisprudência em Teses, Edição 96, 2018), titular da ação penal, a quem cabe, com exclusividade, analisar a possibilidade de aplicação desse instituto, desde que o faça de forma fundamentada.

Mutatis mutandi, haveremos de reconhecer que também no ANPP a titularidade é exclusiva do Ministério Público e, por conta disso, não pode haver acordo de não persecução sem a anuência do Parquet e do investigado.

O ANPP, a suspensão condicional do processo e a transação penal não constituem direitos subjetivos do acusado, mas sim faculdades postas à disposição do Ministério Público para fins de política criminal, no exercício da ação penal, informada pelo princípio da opor- tunidade. São negócios jurídicos bilaterais, que dependem de anuência de ambas as partes.

Contudo, o investigado, o denunciado ou o autor do fato têm direito subjetivo a uma manifestação fundamentada, negativa ou positiva, do Ministério Público quanto aos institutos do art. 28-A do CPP ou dos arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/1995. Tais soluções processuais, que devem resultar do acordo de vontades das partes e da conformidade, constituem meras expectativas de direitos, inclusive porque dependem de homologação judicial para adquirirem eficácia.

Ante a recusa do Ministério Público em oferecer proposta transacional lato sensu, o juiz não pode agir ex officio. Cabe-lhe remeter os autos ao Procurador-Geral ou ao órgão superior de revisão, mediante aplicação analógica do art. 28 do CPP.

Os acordos do art. 28-A do CPP, da Lei 12.850/2013 e da Lei 9.099/1995 têm como fundamento o consenso, tendo como premissa um processo de partes, não se permitindo a violação da autonomia da vontade de qualquer delas. Nesse sentido, em atenção à isonomia e à bilateralidade, não pode o magistrado instituir o ANPP, conceder a suspensão condicional do processo ou transação penal, atendendo requerimento do investigado ou do acusado, sem a concordância do Parquet.

No sistema processual penal brasileiro, vige o princípio acusatório (art. 129, I, CF e art. 3º-A, do CPP), com rígida separação das funções do órgão acusador e do órgão julgador. Este está vinculado ao princípio da inércia da jurisdição de forma a garantir sua imparcialidade, operando como decisor. Aquele é o titular privativo da ação penal, exercendo-a em um processo contraditório.
 

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