Por Vladimir Aras
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) denegou habeas corpus impetrado pela Defensoria Pública contra ato do Procurador-Geral de Justiça (PGJ) paulista que, em atribuição revisional, manteve a recusa de apresentação de proposta de acordo de não persecução penal (ANPP) a pessoa investigada por tráfico privilegiado.
Em primeira instância, o promotor de Justiça negou-se a oferecer a proposta de ANPP, introduzido no CPP pela Lei Anticrime. A defesa, então, provocou o procedimento revisional, tendo o juiz da causa enviado os autos ao PGJ, para reexame. Ao exercer a atribuição decorrente do §14 do art. 28-A do CPP, o PGJ manteve a recusa.
Diante disso, a Defensoria Publica questionou a negativa de proposta de ANPP perante o Poder Judiciário, em sede de habeas corpus.
Ao denegar a ordem, o TJ/SP afirmou que o ANPP é instrumento de natureza consensual, bilateral, não podendo o Judiciário impor sua celebração, em caso de recusa do Ministério Público. Foi relator o desembargador Xisto Rangel, da 3ª Câmara Criminal:
“Dessa forma, deve-se partir da premissa de que o acordo de não persecução penal deve ser resultante da convergência de vontades (acusado e MP), não podendo se afirmar, indubitavelmente, que se trata de um direito subjetivo do acusado, até porque, se assim o fosse, haveria a possibilidade do juízo competente determinar a sua realização de ofício, o que retiraria a sua característica mais essencial, que é o consenso entre os sujeitos envolvidos.
Ademais, o legislador previu no art. 28-A, §14, que diante da negativa do Ministério Público em oferecer o referido acordo, poderia o magistrado remeter os autos ao i. Procurador Geral de Justiça, nos termos do art. 28 do CPP, o que de fato foi feito nestes autos, conforme podemos verificar às fls. 118/119 dos autos principais. No entanto, o digno Procurador Geral de Justiça manteve a posição do Promotor de primeiro grau e insistiu na recusa de oferta do referido acordo.
Logo, todas as medidas possíveis ao Poder Judiciário foram tomadas para eventual realização do referido acordo, não sendo possível exigir que o Ministério Público ofereça referido benefício, pois não se trata, conforme explanado, de direito público subjetivo do réu.
Com efeito, cabe observar que com o Estatuto Anticrime o nosso ordenamento processual penal deu uma inquestionável guinada no sentido do sistema acusatório puro, colocando o juiz em posição menos interferente no que toca à formulação da acusação. Ou seja, o juiz até pode aplicar o art. 28 do CPP por força do disposto no parágrafo 14 do novo art. 28-A, mas não pode, em sendo mantida a recusa do MP, ir além disso, até porque, se bem observada a nova redação do art. 28 (também por força da Lei 13.964/19 Estatuto Anticrime), o órgão do MP nem mais submete ao juiz a apreciação da sua “ordem de arquivamento”. (TJSP, 3ª CC, rel. Des. Rangel, Habeas Corpus Criminal no 2064200-84.2020.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, j. em 5.05.2020).
Acertada a posição da Corte paulista. No livro Lei Anticrime Comentada, cuidei dos acordos de não persecução penal. No item 10 do capítulo 10 escrevi sobre a natureza jurídica do ANPP.ios ao Pacote Anticrime (6): a natureza jurídica do ANPP.
O acusado não tem direito subjetivo ao acordo de não persecução penal. Tem direito a uma proposta do Ministério ou a uma negativa, ambas motivadas. Quando entrou em vigor o art. 89 da Lei 9.099/1995, debateu-se demoradamente sobre a natureza jurídica da suspensão condicional do processo. Na ocasião, sustentei que se tratava de instrumento cujo manejo cabia ao Ministério Público como coadjuvan- te da política criminal do Estado.
Naquela ocasião, por meio da Súmula 696, o STF estabeleceu que, reunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, caso o promotor natural se recusa-se a propô-la, o juiz, dissentindo, deveria remeter a questão ao Procurador-Geral, “aplicando-se por analogia o art. 28 do Código de Processo Penal”.
Em 2006, no RE 468.161/GO, o STF deixou claro que tal solução se aplicava tanto à suspensão condicional do processo quanto à transação penal:
Transação penal homologada em audiência realizada sem a presença do Ministério Público: nulidade: violação do art. 129, I, da Constituição Federal. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal – que a fundamentação do leading case da Súmula 696 evidencia: HC 75.343, 12.11.97, Pertence, RTJ 177/1293 -, que a imprescindibilidade do assentimento do Ministério Público quer à suspensão condicional do processo, quer à transação penal, está conectada estreitamente à titularidade da ação penal pública, que a Constituição lhe confiou privativamente (CF, art. 129, I). 2. Daí que a transação penal – bem como a suspensão condicional do processo – pressupõe o acordo entre as partes, cuja iniciativa da proposta, na ação penal pública, é do Ministério Público.
Em 2014, no INQ 3438/SP, a Corte reafirmou o entendimento, surgido em 1997, de que “não cabe ao Poder Judiciário conceder os benefícios da Lei 9.099/1995 à revelia do titular da ação penal”.
Para o STJ, a suspensão condicional do processo “não é direito subjetivo do acusado, mas sim um poder-dever do Ministério Público” (Jurisprudência em Teses, Edição 96, 2018), titular da ação penal, a quem cabe, com exclusividade, analisar a possibilidade de aplicação desse instituto, desde que o faça de forma fundamentada.
Mutatis mutandi, haveremos de reconhecer que também no ANPP a titularidade é exclusiva do Ministério Público e, por conta disso, não pode haver acordo de não persecução sem a anuência do Parquet e do investigado.
O ANPP, a suspensão condicional do processo e a transação penal não constituem direitos subjetivos do acusado, mas sim faculdades postas à disposição do Ministério Público para fins de política criminal, no exercício da ação penal, informada pelo princípio da opor- tunidade. São negócios jurídicos bilaterais, que dependem de anuência de ambas as partes.
Contudo, o investigado, o denunciado ou o autor do fato têm direito subjetivo a uma manifestação fundamentada, negativa ou positiva, do Ministério Público quanto aos institutos do art. 28-A do CPP ou dos arts. 76 e 89 da Lei n. 9099/1995. Tais soluções processuais, que devem resultar do acordo de vontades das partes e da conformidade, constituem meras expectativas de direitos, inclusive porque dependem de homologação judicial para adquirirem eficácia.
Ante a recusa do Ministério Público em oferecer proposta transacional lato sensu, o juiz não pode agir ex officio. Cabe-lhe remeter os autos ao Procurador-Geral ou ao órgão superior de revisão, mediante aplicação analógica do art. 28 do CPP.
Os acordos do art. 28-A do CPP, da Lei 12.850/2013 e da Lei 9.099/1995 têm como fundamento o consenso, tendo como premissa um processo de partes, não se permitindo a violação da autonomia da vontade de qualquer delas. Nesse sentido, em atenção à isonomia e à bilateralidade, não pode o magistrado instituir o ANPP, conceder a suspensão condicional do processo ou transação penal, atendendo requerimento do investigado ou do acusado, sem a concordância do Parquet.
No sistema processual penal brasileiro, vige o princípio acusatório (art. 129, I, CF e art. 3º-A, do CPP), com rígida separação das funções do órgão acusador e do órgão julgador. Este está vinculado ao princípio da inércia da jurisdição de forma a garantir sua imparcialidade, operando como decisor. Aquele é o titular privativo da ação penal, exercendo-a em um processo contraditório.
Este é o primeiro ponto. Vamos ao segundo.
No item 14.4 do mesmo capítulo, da referida obra, tratei da recusa à formalização do ANPP.
Caso o investigado rejeite a proposta de ANPP, nada há a fazer. Não havendo acordo, o Ministério Público deverá prosseguir nas investigações ou oferecer imediatamente denúncia contra o investigado, já que a hipótese de arquivamento terá sido afastada.
Caso a recusa ao consenso seja manifestada pelo Ministério Público, o investigado pode submeter essa decisão a reexame pelo órgão revisional do próprio Parquet, nos termos do art. 28 do CPP. Determina o §14 do art. 28-A do CPP que, “no caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.”
Nos Ministérios Públicos dos Estados, o órgão de revisão é o Procurador-Geral de Justiça, nos termos da Lei Federal 8.625/1993 e das leis orgânicas estaduais. Nos ramos criminais do Ministério Público da União (MPU), a competência revisional pertence às Câmaras de Coordenação e Revisão, exclusivamente, como se dá no MPF, ou de maneira consultiva, como ocorre no MPDFT e no MPM.
A remessa ao órgão superior deve ser providenciada pelo membro do Ministério Público oficiante, tendo em vista que a proposta de acordo não terá sido ainda judicializada, ou pelo próprio juiz, caso tenha havido algum tipo de judicialização antes da denúncia.
Se o órgão revisional discordar da posição do promotor natural, deverá designar outro membro do Ministério Público para promover o ajuste com o investigado.
Porém, o Procurador-Geral ou a Câmara poderá manter a negativa, recusando definitivamente a proposta, caso em que os autos baixam para o oferecimento da denúncia. É o que se deu no caso que contei no início deste post. Ali a decisão final do PGJ de São Paulo foi impugnada por meio de habeas corpus.
O Judiciário não pode impor o acordo ao Ministério Público, pois invadiria o espaço normativo do art. 129, inciso I, da Constituição. O juiz ou o tribunal substituir-se-ia ao membro do Ministério Público, para celebrando o acordo de não persecução. Isto equivale a tomar uma decisão de não acusar, quando o Parquet, no âmbito do sistema acusatório, já assentou ser o caso de se propor a ação penal.