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Comentários ao Pacote Anticrime (5): O limite de cumprimento de pena de extraditado após a lei anticrime

O Brasil é parte de cerca de 30 tratados bilaterais de extradição e de alguns outros multilaterais, por exemplo, com países do Mercosul e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Por Vladimir Aras 

1. Introdução

Embora não cuide diretamente de cooperação internacional em qualquer dos seus dispositivos, a Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime) produzirá efeito em matéria extradicional.

Ao autorizar uma extradição, o Supremo Tribunal Federal (STF) determina que, antes de receber a custódia do preso, o Estado requerente assuma o compromisso de não impor a tal pessoa pena de morte, pena de prisão perpétua ou prisão superior a 30 anos, ou concorde em comutar penas desta natureza que já tenham sido aplicadas. Lembre que a extradição pode ser concedida em relação a pessoas ainda processadas ou já condenadas.

Modificado pela Lei 13.964/2019, cuja vigência foi definida para o dia 23 de janeiro de 2020, o art. 75 do Código Penal prevê que o limite máximo de cumprimento de pena no Brasil passou de 30 para 40 anos. Veja:

Código Penal

“Art. 75. O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (quarenta) anos.

A simples modificação do antigo patamar gerou um controvérsia hermenêutica, num ponto específico: a relação do art. 75 do CP com o art. 96, inciso III, da Lei 13.445/2017 (Lei de Migração), que assim dispõe:

Art. 96. Não será efetivada a entrega do extraditando sem que o Estado requerente assuma o compromisso de:

III – comutar a pena corporal, perpétua ou de morte em pena privativa de liberdade, respeitado o limite máximo de cumprimento de 30 (trinta) anos.1

Este evidente choque de dispositivos legais reforça as críticas ao processo legislativo que levou à sanção da Lei Anticrime. Os projetos que deram origem a este diploma percorreram na Câmara dos Deputados um caminho assistemático e açodado, que resultou num amálgama impregnado de falhas de redação e de zonas de conflito com a legislação vigente.

2. Consequências da inovação legislativa nos casos novos e nos casos em andamento
Três teses podem ser divisadas de imediato quanto à incidência, ou não, do novo texto do art.75 do CP em matéria extradicional:

O novo limite máximo de 40 anos só vale para novos pedidos de extradição, apresentados ao governo do Brasil2 partir de 23 de janeiro de 2020, data da vigência da Lei 13.964/2019;
O limite máximo de 40 anos de cumprimento de pena vale para os novos pedidos e para os pedidos de extradição em curso, ainda não enviados ao STF pelo Ministério da Justiça ou ainda não decididos pela Corte; ou
O novo teto de 40 anos só vale para os crimes – praticados no exterior e previstos na lei penal local e na lei brasileira, lembremos – posteriores a 23 de janeiro de 2020.
Cada uma dessas teses tem suas próprias valias e dificuldades. Tendo a apoiar a de número 2, pois a anterioridade é dada pela leis incriminadoras do Estado requerente e do Estado requerido. Mas examiná-las não é o objetivo deste artigo. A prevalência de qualquer delas depende de uma questão preliminar: o novo patamar de 40 anos do art. 75 do CP realmente se aplicará doravante aos pedidos extradicionais passivos, isto é, àqueles recebidos pelo Brasil e julgados pelo STF?

3. O antigo limite máximo de 30 anos para cumprimento de pena
A competência para deferir pedidos de extradição de interesse de governos estrangeiros é do STF, nos termos do art. 102 da Constituição Federal. A inspiração do Tribunal para determinar a observância de um teto máximo de cumprimento de pena em matéria extradicional estava no art. 75 do Código Penal3, que o fixava em 30 anos, para os crimes sujeitos à jurisdição brasileira.

O art. 55 do texto original do CP, que vigorou a partir de 1º de janeiro de 1942, já previa esse limite interno (“A duração das penas privativas de liberdade não pode, em caso algum, ser superior a trinta anos”) e, ao seu tempo, também serviu de apoio para formar-se a posição do STF.

Em seus julgados, mesmo sem previsão legal expressa, o STF passou a extrapolar essa restrição do direito penal local e, por motivos humanitários, começou a estendê-la para além de nossas fronteiras, para impô-la aos Estados requerentes de processos de extradição, em relação a crimes sujeitos à jurisdição desses países.

Com a Lei de Migração (Lei 13.445/2017), esse limite passou a constar expressamente do seu art. 96, inciso III, parte final. Assim, antes de receber a custódia do preso procurado para extradição, o Estado requerente deve assumir o compromisso formal perante o governo brasileiro de que não o obrigará, se condenado for, a cumprir mais de 30 anos de prisão. E se já houver sentença, obriga-se a comutá-la.4

Foi assim, por exemplo, em dois processos relativamente recentes da prática extradicional brasileira: o caso Victor Barnard, acusado de múltiplos estupros em Minnesota e preso no Rio Grande do Norte5, e o de Cláudia Hoerig, acusada de homicídio em Ohio e presa em Brasília6. Os pedidos dos Estados Unidos foram deferidos pelo STF, antes da vigência da Lei 13.964/2019, com a conhecida ressalva dos 30 anos. Os dois foram extraditados, condenados e agora cumprem penas sujeitas a tais tetos, conforme o compromisso internacional firmado entre os dois países. Fosse hoje, estaríamos diante de séria controvérsia. Qual seria o limite imposto pelo STF a extradições: aquele do art. 75 do CP ou o que agora expressamente consta do art. 96 da Lei de Migração?

A solução exige o exame do art. 4º da Constituição brasileira, que finca os pilares das relações internacionais do País com outros Estados igualmente soberanos, em cujos assuntos internos não podemos intervir e com os quais devemos cooperar em variadas dimensões, sempre respeitando os direitos humanos de vítimas e acusados.

Temos também de examinar a questão à luz do fundamento para o pedido de extradição, que poderá ser um tratado ou mera promessa de reciprocidade.7 A opção por um ou outro caminho indicará a “lei aplicável” ao requerimento extradicional.

4. Pedidos de extradição baseados em tratados internacionais
Se houver um tratado bilateral ou multilateral entre o Brasil e o Estado requerente, tendo em conta a igualdade soberana entre as nações e o dever de cooperação internacional, não será possível impor a esse país um limite de pena não presente no texto convencional e inferior ao vigente internamente em nosso País. Essa condição seria ilegal (inconvencional) porque não prevista no tratado vigente entre as partes, além de ser irrazoável na relação entre dois Estados soberanos.

O Brasil é parte de cerca de 30 tratados bilaterais de extradição e de alguns outros multilaterais, por exemplo, com países do Mercosul e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Tratados desta espécie costumam permitir restrições à pena de morte ou à pena de prisão perpétua, quando houver vedação constitucional ou de outro tipo.8

É importante lembrar que, no encontro do direito internacional convencionado e do direito interno, aquele prevalece pela regra de especialidade (Lex specialis derogat legi generali). Basta ver o que diz o art. 1º, inciso I, do CPP, que está em vigor desde 1º de janeiro de 1942, que ressalva a aplicação dos tratados em matéria processual penal:

Art. 1º. O processo penal reger-se-á, em todo o território brasileiro, por este Código, ressalvados:

I – os tratados, as convenções e regras de direito internacional;

Como “lei especial”, o tratado de extradição regulará as condições, as formalidades, os prazos e os motivos de recusa dos pedidos de entrega extradicional. Só restrições constitucionais ou de jus cogens se sobrepõem ao previsto nos tratados firmados pelo Brasil, que são recebidos ao menos com o status de lei federal. O limite de 30 anos de cumprimento não está previsto na Constituição, que proíbe a pena de morte e penas de caráter perpétuo.

Logo, o art. 96, inciso III, da Lei 13.445/2017 (Lei de Migração) não se aplica aos casos em que o STF houver de decidir com base em tratados bilaterais ou multilaterais de extradição, que, ao complementar a Constituição, serão a lei da causa.

Além da incidência da especialidade, operou-se o fenômeno da revogação tácita. O art. 96, III, deve ser considerado tacitamente revogado pela nova redação do art. 75 do CP, decorrente do Pacote Anticrime, na parte que se refere ao limite de tempo de cumprimento de pena. É o que decorre da aplicação da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, dada a patente incompatibilidade entre as duas regras.

5. Pedidos de extradição baseados em promessas de reciprocidade
Países de tradição civil law costumam cooperar com ou sem tratado, neste caso valendo-se de promessas de reciprocidade. Em situações assim, a lei que regerá o processo extradicional será exclusivamente o direito interno, pois não haverá outro ajuste aplicável entre as partes.

Não havendo tratado entre o Estado requerente e o Brasil, o art. 96, III, da Lei 13.445/2017, última parte, adquire maior relevância. Advogados certamente tentarão utilizá-lo como tese alternativa de defesa para pedir ao STF que se fixe essa condição temporal na entrega do procurado ou do fugitivo, caso a extradição seja autorizada.

Como vimos, o Estado requerente assume perante o Estado brasileiro um compromisso (undertaking) de não impor a pena de morte, a prisão perpétua nem o cumprimento de pena superior a 30 anos. Quando o STF desenvolveu essa jurisprudência, não havia lei que mandasse aplicar o limite do art. 75 do CP – ou o previsto no antigo art. 55 na redação original do CP de 1940 – à matéria extradicional. Agora existe: o inciso III do art. 96 da Lei Migratória.

No momento anterior, o STF fazia menção expressa nos julgamentos extradicionais à ressalva do art. 75 do CP, com isto revelando de onde extraiu o teto de 30 anos. Depois da Lei 13.445/2017, que se inspirou nesse mesmo art. 75 e na jurisprudência do STF, tem sido usada outra fórmula nos julgamentos do Tribunal. Alguns ministros têm feita a ressalva com referência ao art. 96 da LM9, mas nem sempre.10

Agora, em função do conflito entre o art. 75 do CP, com a redação dada pela Lei Anticrime, e o art. 96, III, da LM, operou-se a revogação tácita deste dispositivo por aquele, apenas na parte em que se tem menção ao limite de 30 anos, já que as demais vedações quanto à pena de morte e à prisão perpétua são constitucionais, não podendo ser afastadas.

6. A evolução (e a vacilação) da jurisprudência do STF na matéria
Vem de longe a tradição do STF de fixar teto de 30 anos para o cumprimento de penas por pessoas extraditadas pelo Brasil. Em 1983, na EXT 399, de interesse da França, o STF deferiu a extradição de Horacio Rossi com a ressalva de comutação da pena de prisão perpétua para no máximo 30 anos de prisão. Ao votar, o min. Moreira Alves impôs tal condição à França, “por ser esta a maior pena criminal da nossa legislação penal comum”.11

Em 1984, na EXT 417, um caso de grande apelo midiático, a Corte fixou a mesma condição12 e autorizou a extradição do ex-guerrilheiro Mário Firmenich para a Argentina. Na ocasião, o min. Moreira Alves assentou que concedia a extradição com a ressalva de que não poderiam “ser impostas penas ao extraditando superiores a trinta anos de prisão, o máximo, com relação a cada crime, admitido em nossa legislação penal, em tempo de paz”13. Ou seja, a razão de ser da imposição ao Estado estrangeiro sempre esteve condicionada ao limite máximo de penas no Brasil, em tempo de paz.

Entretanto, nas décadas de 1980 e 1990, o STF variou sua jurisprudência e chegou a admitir extradição sem ressalva alguma quanto à prisão perpétua. Era o ano de 1985, e a Corte discutia se era admissível ou não que o Brasil fizesse “a entrega de alguém, submetido a sua jurisdição, para sofrer pena que no País não se aplicaria”.14

Naquele ano, no julgamento da EXT 426, o STF alterou a orientação jurisprudencial que condicionava a entrega do extraditando à existência de compromisso formal relativo a comutação da pena de prisão perpétua em sanção temporária de privação de liberdade. Em tal ocasião, a Corte autorizou extradição do acusado Russel Wayne Weisse para os Estados Unidos, declarando “improcedente a alegação de ressalva para a comutação de prisão perpétua em pena limitativa de liberdade, por falta de previsão na lei ou no tratado”15.

Na ocasião, o min. Francisco Rezek abriu divergência em relação ao relator e foi acompanhado por Octávio Gallotti, Sydney Sanches, Aldir Passarinho, Oscar Corrêa, Cordeiro Guerra e Djacir Falcão. Por maioria, o Tribunal rejeitou a necessidade de condicionar a entrega do extraditando a prévio compromisso de comutação da pena de prisão perpétua para o máximo de 30 anos de prisão. Ou seja, não se previu restrição à pena de previsão perpétua, e Weisse foi entregue à Justiça da Califórnia, de onde havia fugido após ser condenado a duas prisões perpétuas por homicídio, sequestro e roubo16:

EXTRADIÇÃO. EXTRADITANDO FORAGIDO. PRISÃO PERPÉTUA. DEFERIMENTO. 1. PROCESSO que reúne as condições necessárias. A entrega do extraditando. 2. Entende o tribunal, por sua maioria, improcedente a alegação de ressalva para a comutação de prisão perpétua em pena limitativa de liberdade, por falta de previsão na lei ou no tratado. 3. Pedido de extradição deferido.17

Em 1995, no debate sobre a extradição de Martin Shaw Pang (EXT 654), para os Estados Unidos, o tema voltou à baila. O min. Celso de Mello optou por fixar o limite de 30 anos. Com ele votaram os ministros Maurício Correa, Marco Aurélio e Sepúlveda Pertence. O min. Francisco Rezek objetou:

Parece-me que, neste caso, o Tribunal deveria preservar sua jurisprudência, assentada desde o momento em que foi recusada a tese do Procurador da República, Professor Cláudio Fonteles18, no sentido de que o limite de 30 anos deveria ser imposto à soberania estrangeira como condição de execução da medida extradicional, por tratar-se de norma de algum modo vestida de transcendência.19

O internacionalista Rezek resistia à mudança de entendimento. O réu fora acusado de incêndio criminoso com resultado morte no Estado de Washington e poderia ser condenado a cumprir prisão perpétua. Em seu voto, Rezek não impunha ressalva temporal alguma à extradição de Pang, admitindo sua prisão por toda a vida, no que foi acompanhado pelo min. Carlos Velloso:

Nas Extradições 426 e 486, o Supremo Tribunal Federal dispensou expressamente a ressalva. Na Extradição 507 – Argentina, meu voto foi no sentido dessa jurisprudência. Não sei se devemos alterar uma jurisprudência já estratificada e consolidada nesta Casa.20

O acórdão da EXT 654, dos Estados Unidos, proferido em 1995 pelo STF, foi assim ementado, no que nos interessa: “A decisão da Corte, por último, não prevê qualquer restrição quanto à possibilidade da prisão perpétua”.21

A não restrição prevaleceu por alguns anos, como se vê, por exemplo, na EXT 811, requerida pelo Peru, que foi deferida sem ressalvas22. Posteriormente, essa orientação foi alterada pela Corte na EXT 855, do Chile23. Eis o trecho relevante do julgado no caso Norambuena:

EXTRADIÇÃO E PRISÃO PERPÉTUA: NECESSIDADE DE PRÉVIA COMUTAÇÃO, EM PENA TEMPORÁRIA (MÁXIMO DE 30 ANOS), DA PENA DE PRISÃO PERPÉTUA – REVISÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, EM OBEDIÊNCIA À DECLARAÇÃO CONSTITUCIONAL DE DIREITOS (CF, ART. 5º, XLVII, “b”). – A extradição somente será deferida pelo Supremo Tribunal Federal, tratando-se de fatos delituosos puníveis com prisão perpétua, se o Estado requerente assumir, formalmente, quanto a ela, perante o Governo brasileiro, o compromisso de comutá-la em pena não superior à duração máxima admitida na lei penal do Brasil (CP, art. 75), eis que os pedidos extradicionais – considerado o que dispõe o art. 5º, XLVII, “b” da Constituição da República, que veda as sanções penais de caráter perpétuo – estão necessariamente sujeitos à autoridade hierárquico-normativa da Lei Fundamental brasileira. Doutrina. Novo entendimento derivado da revisão, pelo Supremo Tribunal Federal, de sua jurisprudência em tema de extradição passiva.

Isso representava uma virada na jurisprudência da Corte, vacilação que infelizmente se tornou comum noutros temas importantes nos últimos anos.

7. A solução do conflito entre a Lei de Migração e a Lei Anticrime
O inciso III do art. 96 da Lei de Migração condiciona a entrega do extraditando a sua não sujeição às penas vedadas pela Constituição brasileira e também ao cumprimento de no máximo 30 anos de prisão. Este era o patamar vigente no Brasil na data de entrada em vigor da lei migratória.

A pena de morte e a pena de prisão perpétua para extraditados continuam vedadas, é claro, por força do art. 5º, XLVII, da Constituição24. Mas o limite máximo de cumprimento da pena privativa de liberdade no Brasil aumentou de 30 para 40 anos, com a mudança do art. 75 do CP promovida pela Lei 13.964/2019. Contudo, esse mesmo legislador não mexeu no inciso III do art. 96 da Lei 13.445/2017.

Trata-se de falha gritante ou de decisão proposital do Parlamento? Apostaria na primeira hipótese.

Trabalhemos um exemplo. O crime previsto no art. 121, §2º, combinado com o §4º, segunda parte, do Código Penal, pode ser punido com pena de até 40 anos de reclusão, dada a causa especial de aumento de pena, ali prevista, que considera a idade da vítima, menos de 14 anos ou maior de 60 anos como gatilho para o incremento. A pena máxima de 30 anos do crime de homicídio qualificado pode ser aumentada de 1/3 (um terço), o que a elevaria a 40 anos de reclusão:

§4º. No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos.

Imagine que “Fulano de Tal” cometa esse grave delito em Manaus. Em razão do Pacote Anticrime, o Sr. Fulano poderá cumprir até 40 anos de prisão no Brasil, conforme a nova redação do art. 75 do CP, sem prejuízo da progressão de regime, agora também sujeita a novas regras25.

Situemos agora a questão no plano das relações internacionais, no qual deve viger a cooperação multidimensional entre Estados igualmente soberanos. Não faz sentido, do ponto de vista da legalidade penal estrita nos dois países envolvidos, que esse indivíduo, agora chamado “John Doe”, cometa um homicídio em Londres, seja extraditado, mas com entrega condicionada à observância do limite de 30 anos para cumprimento da pena, limite este que não existe no Brasil nem para seus próprios condenados.

Seria aceitável que o Brasil impusesse esse limite menor (30 anos), em lugar do maior (40 anos), para a mesma espécie delitiva, a país que permite a pena de morte ou a prisão perpétua ou penas mais altas do que 30 anos?

Esse dúplice standard, sem justificativa plausível, ofende o dever de cooperação internacional contra o crime, faz pouco caso do princípio in dubio pro solicitudine e pode representar ingerência indevida nos assuntos (judiciários) internos de outro país. A mim me parece uma imposição descabida, que não encontra apoio em tratados de extradição, em convenções de direitos humanos ou em julgados de cortes supranacionais, que, diga-se de passagem, rechaçam a pena de morte, mas aceitam a imposição de prisão perpétua.

A admitir-se a vigência do art. 96, III, da LM, nesta parte, teríamos a quebra da isonomia entre pessoas na mesma situação e a violação a tratados vigentes (se for o caso), o que evidenciaria a desproporcionalidade de eventual imposição pelo STF, porque essa condição não está prevista nos tratados que o Brasil firma; é ressalva que decorria da jurisprudência da Corte – que, como vimos, variou bastante –; e agora deriva do art. 96, III, da Lei de Migração, e não de tratado ou da Constituição.

O dispositivo deve, portanto, ser afastado. Sua não aplicação resulta de dois métodos. O primeiro é a especialidade dos tratados, quando forem a “lei da extradição”, nos termos do art. 1º, I, do CPP. O tratado prevalecerá sobre a Lei 13.445/2017 neste ponto.

O segundo se encontra na incidência da regra “lei posterior derroga a anterior”, sendo fácil perceber que o inciso III do art. 96 da LM foi revogado tacitamente pelo novo art. 75 do CP na parte de que tratamos. Diz o art. 2º, §1º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro que a revogação tácita ocorre quando lei posterior seja com ela incompatível:

Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

É o que se deu na espécie. O art. 96, III, da Lei de Migração foi revogado tacitamente, em parte, pela Lei Anticrime, que deu nova redação ao art. 75 do CP.

A ressalva prevista no art. 96, III, da LM, não é norma de direito penal, senão por derivação. Os preceitos punitivos aplicáveis ao extraditando serão os da lei penal da jurisdição onde o crime foi praticado ou, em caso de negativa de extradição, os da lei penal do Estado requerido. Se negada a extradição, impõe-se ao Estado requerido o dever de processá-lo. Isto é, “extraditar ou julgar”. E uma extradição só pode ser deferida quando presente a dupla tipicidade ou dupla incriminação.

O art. 96, III, da LM não fez outra coisa senão passar ao nível legal a jurisprudência do STF, que por sua vez se baseia, desde sempre, no próprio art. 75 do CP, que agora foi mudado. Eis a liga que sedimenta a revogação tácita daquele.

A existência de dois limites máximos de cumprimento de pena – um para dentro e outro para o exterior – levaria a uma situação absurda. Digamos que aquele “John Doe” não possa ser extraditado porque é brasileiro nato. O pedido de entrega extradicional será indeferido pelo STF (art. 5º, LI, CF), e o Ministério Público brasileiro deverá processá-lo em nosso Judiciário em cumprimento ao dever internacional de persecução (aut dedere aut iudicare). Se vier a ser condenado pelo referido homicídio qualificado praticado contra vítima menor de 14 anos, Mr. Doe poderá cumprir até 40 anos de prisão no Brasil. Se ele fosse extraditado, só poderia cumprir 30 anos…

Não faz sentido! Como disse o min. Sydney Sanches na EXT 426, de 1985, referindo-se à prisão perpétua, o dispositivo “somente pode operar nesse âmbito, afetando apenas os brasileiros e alienígenas que aqui tenham de ser julgados. Não há de vincular nações estrangeiras, a ponto de impedir que punam seus nacionais com esse tipo de sanção”.26 A sanção em questão seria uma privação de liberdade por até 40 anos.

Na mesma ocasião, o saudoso ministro Cordeiro Guerra pontuou:

“Não nos compete dizer se [a pena estrangeira] foi exorbitante, ou não. A esfera da nossa lei penal é interna. Se nós somos benevolentes com nossos delinquentes, só diz bem dos nossos sentimentos, embora não louve muito nossa previdência. (…) Acho que é do interesse da humanidade que todos os países, politicamente organizados, reforcem a repressão penal no mundo moderno, onde o cidadão se sente permanentemente ameaçado.”27

8. Conclusão
A hipótese de que continua a existir o limite de 30 anos nas extradições gerará muita discussão no STF. Naquela Corte judica o presidente da comissão de juristas que propôs a alteração da regra do art. 75 do CP, o min. Alexandre de Moraes. Sua proposta foi incluída no PL 10.372/2018 e integrada à versão final do substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, tornando-se a Lei 13.964/2019. Arrisco dizer que o ministro será favorável ao novo limite máximo de 40 anos de prisão também para casos de extradição. Espero que a maioria dos juízes do STF adote a mesma posição.

Em suma, concluo que:

A parte final do inciso III do art. 96 da Lei 13.445/2017 foi tacitamente revogada pela Lei 13.964/2019, que deu nova redação ao art. 75 do Código Penal;
Tratados bilaterais e multilaterais em matéria de extradição são “leis especiais” em relação ao direito interno positivado em temas extradicionais, devendo prevalecer sobre ele, na forma do art. 1º, inciso I, do CPP;
Em razão do princípio da especialidade (lei especial derroga lei geral), os pedidos de extradição fundados em tratados devem ser deferidos sem qualquer ressalva que não esteja expressamente prevista no texto ou que não decorra da Constituição e do jus cogens, não valendo a limitação de 30 anos da lei extradicional;
Mesmo não havendo tratado e em se cuidando de pedidos de extradição fundados em promessa de reciprocidade, a revogação tácita do inciso III do art. 96 da Lei de Migração permite ao STF utilizar o novo teto de 40 anos de prisão em geral;
Ainda assim, o Congresso Nacional deve corrigir a incongruência existente no inciso III do art. 96 da Lei 13.445/2017, para compatibilizá-lo com o art. 75 do CP.
À luz do art. 4º da Constituição e do bom senso, seria muito exótico se pudéssemos – como agora podemos – aplicar penas de até 40 anos para autores de crimes no Brasil e quiséssemos impor, unilateralmente, a outro Estado soberano um limite máximo de 30 anos para cumprimento de pena por pessoas condenadas por violarem suas leis penais.

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1 Substituiu o art. 91, inciso III, da Lei 6.815/1980, segundo o qual não se efetivava a entrega sem que o Estado requerente assumisse o compromisso “de comutar em pena privativa de liberdade a pena corporal ou de morte, ressalvados, quanto à última, os casos em que a lei brasileira permitir a sua aplicação”.

2 Em extradição, este papel compete ao Ministério das Relações Exteriores ou ao Ministério da Justiça.

3 Resultante da reforma da parte geral do CP, pela Lei 7.209/1984.

4 Esta exigência da lei brasileira gera dificuldades de índole constitucional no Estado requerente, porque, na prática, será um compromisso assumido pelo governo nacional do país X em nome de seu Poder Judiciário, órgão competente para a aplicação das penas criminais. A dificuldade é dobrada quando o Estado requerente é uma federação, com unidades subnacionais realmente autônomas, caso em que o governo federal do país X, exercendo sua representação internacional, falará e se obrigará em nome da justiça criminal de uma sua unidade federada.

5 STF, 2ª Turma, EXT 1401/DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 08.03.2016: “Necessidade de o Estado requerente assumir, formalmente, o compromisso diplomático de comutar em pena de prisão não superior a 30 (trinta) anos as penas privativas de liberdade eventualmente imponíveis no caso”.

6 STF, 1ª Turma, EXT 1462/DF, Rel. Min. Roberto Barroso, j. em 28.03.2017: “Extradição deferida, devendo o Estado requerente assumir os compromissos de: (i) não executar pena vedada pelo ordenamento brasileiro, pena de morte ou de prisão perpétua (art. 5o, XLVII, a e b, da CF ); (ii) observar o tempo máximo de cumprimento de pena possível no Brasil, 30 (trinta) anos (art. 75, do CP); e (iii) detrair do cumprimento de pena eventualmente imposta o tempo de prisão para fins de extradição por força deste processo.”

7 Lei 13.445/2017, Art. 84, § 2º: “O pedido de prisão cautelar poderá ser transmitido à autoridade competente para extradição no Brasil por meio de canal estabelecido com o ponto focal da Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) no País, devidamente instruído com a documentação comprobatória da existência de ordem de prisão proferida por Estado estrangeiro, e, em caso de ausência de tratado, com a promessa de reciprocidade recebida por via diplomática.”

8 Veja, por exemplo, o caso Söring vs. Reino Unido (1989), julgado pela Corte Européia de Direitos Humanos em torno da aplicação da pena de morte a um cidadão alemão que fora acusado de crime capital no Estado da Virginia, onde tal pena é prevista.

9 STF, 2ª Turma, EXT 1598/DF, Rel. Min. Edson Fachin, j. em 17.12.2019. Extrai-se do voto do relator no caso de Patrick Assisi, cuja extradição foi reclamada pela Itália: “Ante o exposto, presentes os requisitos necessários ao acolhimento da extradição e ausentes quaisquer óbices legais ou convencionais, defiro o pedido formulado pelo Estado Requerente para conceder a extradição do nacional italiano Patrick Assisi, a qual ficará condicionada à assunção dos compromissos previstos no art. 96 da Lei 13.445/2017, pelo Estado requerente”. A extradição foi deferida.

10 STF, 1ª Turma, EXT 1564/DF, Rel. Min. Luiz Fux, j. em 21.05.2019: “ii) observância do tempo máximo de cumprimento de pena previsto no ordenamento jurídico brasileiro, 30 (trinta) anos (art. 75, do CP); e (iii) detração do tempo que o extraditando permaneceu preso para fins de extradição no Brasil”. É um julgado com menção ao art. 75 do CP mesmo após a vigência da Lei 13.445/2017.

11 STF, Pleno, EXT 399, Rel. Min. Aldir Passarinho, Rel. Para o acórdão Min. Moreira Alves, j. em 15.06.1983.

12 STF, Pleno, EXT 417, Rel. Min. Alfredo Buzaid, j. em 20.06.1984.

13 STF, Pleno, EXT 417, Rel. Min. Alfredo Buzaid, j. em 20.06.1984.

14 STF, Pleno, EXT 426, Rel. Min. Rafael Mayer, j. em 04.09.1985.

15 STF, Pleno, EXT 426, Rel. Min. Rafael Mayer, j. em 04.09.1985.

16 Sem dúvida, este fato pesou muito na posição do Tribunal, já que a aplicação da ressalva significaria uma drástica redução da pena do condenado, que fugiu da prisão e se escondeu no Brasil.

17 STF, Pleno, EXT 426, Rel. Min. Rafael Mayer, j. em 04.09.1985.

18 Referência ao parecer do então procurador Cláudio Fonteles na EXT 426 / EUA, de 1985 (STF, Pleno, Rel. Min. Rafael Mayer), no qual o MPF opinou pelo deferimento do pedido “com a ressalva de que a pena de prisão perpétua seja convertida em restritiva da liberdade, não superior a 30 anos, na conformidade do artigo 75 do Código Penal (Lei 7.208/84), presente a condição inserta no inciso III do artigo 91 do Estatuto do Estrangeiro e a jurisprudência desta Suprema Corte, consolidada nos pedidos de Extradição nº 399 e 417”.

19 STF, Pleno, EXT 654, Rel. Min. Néri da Silveira, j. em 18.12.1995.

20 Voto do ministro Carlos Velloso na EXT 654, que dispensava o patamar de 30 anos, posição que prevaleceu por maioria, nos temos do voto do relator.

21 STF, Pleno, EXT 654, Rel. Min. Néri da Silveira, j. em 18.12.1995.

22 STF, Pleno, EXT 811, rel. Min. Celso de Mello, j. em 04.09.2002: “O Plenário do Supremo Tribunal Federal firmou jurisprudência no sentido de admitir, sem qualquer restrição, exceto quando houver cláusula vedatória inscrita em Tratado de Extradição, a possibilidade de o Governo brasileiro extraditar o súdito estrangeiro reclamado, mesmo nos casos em que este possa sofrer pena de prisão perpétua no Estado requerente.”

23 STF, Pleno, EXT 855, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 26.08.2004. Trata-se do caso de Maurício Hernandez Norambuena, condenado pelosequestro do publicitário Washington Olivetto.

24 Desde a EXT 855, de 2004, no atual ciclo jurisprudencial do STF nesta matéria.

25 A progressão em tal cenário só poderá correr após cumprido 40% da pena (crime hediondo), se o condenado for primário, conforme o art. 112, V, da LEP, com a redação dada pela Lei Anticrime.

26 STF, Pleno, EXT 426, Rel. Min. Rafael Mayer, j. em 04.09.1985.

27 STF, Pleno, EXT 426, Rel. Min. Rafael Mayer, j. em 04.09.1985.

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