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Comentários ao Pacote Anticrime (3): O arquivamento do inquérito policial pelo Ministério Público após a Lei Anticrime

Os regimentos internos dos tribunais devem, portanto, adaptar-se ao novo art. 3º-A do CPP e à nova redação do art. 28 do mesmo código.

Por Vladimir Aras

Vladimir Aras[1]

Francisco Dirceu Barros[2]

Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. O PRINCÍPIO ACUSATÓRIO NO PROCESSO PENAL. 3. O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL ANTES DA LEI 13.964/2019 (LEI ANTICRIME). 4. O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL APÓS A LEI 13.964/2019 (LEI ANTICRIME). 5. PROBLEMAS DA NOVA SISTEMÁTICA DO ART. 28 DO CPP. 6. O REFORÇO AO PRINCÍPIO DA UNIDADE INSTITUCIONAL E À UTILIDADE DA PERSECUÇÃO CRIMINAL. 7. O NECESSÁRIO APERFEIÇOAMENTO DA RESOLUÇÃO CNMP 181/2017. 8. O DESARQUIVAMENTO DE INQUÉRITOS POLICIAIS: A NOVA LEITURA DO ART. 18 DO CPP. 9. O PAPEL DO JUIZ DE GARANTIAS NO ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. 10. A VEDAÇÃO DE ARQUIVAMENTO PELO DELEGADO DE POLÍCIA. 11. O ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITOS DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA. 12. O ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITOS NA JUSTIÇA MILITAR E NA JUSTIÇA ELEITORAL. 13. O ARQUIVAMENTO DOS PROCEDIMENTOS INVESTIGATÓRIOS CRIMINAIS. 14. CONCLUSÃO.

1.INTRODUÇÃO

Resultado de anteprojetos de lei de iniciativa do ministro da Justiça Sergio Moro e de comissão de juristas presidida pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, a Lei 13.964/2019, conhecida como “Lei Anticrime” ou “PacoteAnticrime”, promoveu profundas alterações na legislação criminal brasileira, as principais delas as que dizem respeito ao adensamento do modelo acusatório de processo penal.

Tendo entrado em vigor em 23 de janeiro de 2020, a Lei Anticrime trouxe dispositivos principiológicos sobre o sistema acusatório (novo art. 3º-A do CPP) e outros de cunho funcional, com vistas à readequação dos papéis do juiz e do Ministério Público no processo penal.

Ao longo do texto da Lei, podemos dividir claramente três pontos nos quais isto ocorreu. O primeiro deles é a esperadíssima enunciação do princípio acusatório no já mencionado art. 3º-A do Código de Processo Penal (CPP): oprocessopenal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

A segunda correção, embora tardia, do CPP de 1941 em linha com o arranjo processual instituído pelo art. 129, inciso I, da Constituição de 1988, veio com a vedação da decretação de medidas cautelares sem que haja pedido do titular da ação penal. Continua a ser admitida também a provocação da jurisdição pela autoridade policial, mas o juiz não pode mais impor medidas constritivas, reais ou pessoais, contra o investigado ou réu, de ofício. É o que se lê no art. 282, §§2º, 3º e 4º e no art. 311 do CPP, dando-se maior concretude ao princípio ne procedat iudex ex officio.

A terceira grande alteração no modelo anterior está na nova redação dada ao art. 28 do CPP e diz respeito à ingerência do juiz criminal sobre a decisão de arquivamento de uma investigação criminal, seja uma mera notícia de fato (noticia-crime), seja uma apuração já formalizada no âmbito de um inquérito policial, um procedimento investigatório criminal (PIC), um inquérito judicial ou o relatório de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).

É deste último tema, o arquivamento de investigações criminais, sobretudo do inquérito policial, que trataremos neste artigo.

No entanto, é preciso de antemão esclarecer que o novo rito do art. 28 do CPP sequer chegou a ser aplicado, uma vez que em 22 de janeiro de 2020 o ministro Luiz Fux, do STF, concedeu medida cautelar na ADI 6305/DF, apensa à ADI 6298/DF, para suspender sua eficácia sine die. Cremos que essa medida cautelar acabará sendo cassada ou revista, tendo em conta que não há nenhuma questão constitucional de fundo que permita ou recomende suprimir o novo art. 28 do CPP do ordenamento jurídico. 

2.O PRINCÍPIO ACUSATÓRIO NO PROCESSO PENAL

Desde há muito o Brasil está vinculado a compromissos constitucionais e internacionais que compelem o Estado a separar as funções de investigar e julgar, como garantia de que todo acusado tenha direito a um julgador objetivamente imparcial, não influenciado pela atividade de coleta probatória na fase extraprocessual e por sua produção na fase judicial. Quanto maior for a distância do juiz em relação às investigações realizadas pela Polícia Judiciária e pelo Ministério Público tanto mais imparcial, no plano objetivo, poderá ser ele na análise da prova utilizada em juízo.

Não é de se ignorar que a existência de um órgão do Ministério Publico independente e autônomo é um dos instrumentos de que se vale o legislador para assegurar a imparcialidade do julgador e, mais concretamente, para preservar o âmbito de incidência do princípio da presunção de inocência.

Por isto mesmo, durante a 8ª Conferência para a Prevenção do Crime e o Tratamento de Delinquentes, realizada em Havana, em 1990, as Nações Unidas aprovaram os “Princípios Orientadores Relativos à Função dos Magistrados do Ministério Público”. Sua regra 10 estabelece que as funções dos membros do Ministério Público devem ser rigorosamente separadas das funções de juiz. E, no Princípio 11, as Regras de Havana estatuem que “os magistrados do Ministério Público desempenham um papel activo no processo penal, nomeadamente na dedução de acusação e, quando a lei ou a prática nacionais o autorizam, nos inquéritos penais, no controle da legalidade destes inquéritos, no controle da execução das decisões judiciais e no exercício de outras funções como representantes do interesse público.”

Também no campo da soft law, vale lembrar que, nos “Princípios de Bangalore sobre Conduta Judicial”, de 2001, no âmbito do valor “imparcialidade”, a regra 2.2 reforça o modelo acusatório de separação de funções no processo penal, ao recomendar que a “interferência constante” na condução de uma causa criminal deve ser evitada. De fato, o comentário 63 aos Princípios diz que:

63. Um juiz tem o direito de fazer perguntas visando clarificar os assuntos. Mas se interfere constante e virtualmente, assumindo a condução de um caso civil ou o papel de persecução em um caso penal, e usa os resultados de seu próprio questionamento para chegar a uma conclusão no julgamento do caso, o juiz se torna advogado, testemunha e juiz ao mesmo tempo, e o litigante não recebe um julgamento justo.

No que tange ao Ministério Público, merece menção a Recomendação REC (2000)19 do Comitê de Ministros dos Estados-Membros do Conselho da Europa sobre a função da Promotoria no sistema de justiça penal, especialmente no tópico da relação entre procuradores e promotores e os juízes de um tribunal. A Recomendação 17 deixa claro que a separação da funções de juízes e membros do Ministério Público serve à independência e à imparcialidade dos primeiros.

O direito ao devido processo legal e a julgamentos justos funda-se na existência de seus vários componentes estruturais, como se pode divisar no art. 8º da Convenção América de Direitos Humanos, de 1969, que institui os direitos a um julgamento por um juiz competente, independente e imparcial.

Examinando a reiterada jurisprudência do STF, sobretudo a partir da ADI 1570, julgada em 2004, percebe-se que o princípio acusatório é uma matriz estruturante do processo penal brasileiro. Disso é exemplo o INQ 2913/MT AgR, relatado pelo min. Luiz Fux, no qual ficou vencido o relator original, o min. Dias Toffoli:

INQUÉRITO. FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO. PARLAMENTAR. (…) ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITO DE OFÍCIO, SEM OITIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO ACUSATÓRIO. DOUTRINA. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL CONHECIDO E PROVIDO. 1. O sistema processual penal acusatório, mormente na fase pré-processual, reclama deva ser o juiz apenas um “magistrado de garantias”, mercê da inércia que se exige do Judiciário enquanto ainda não formada a opinio delicti do Ministério Público. 2. A doutrina do tema é uníssona no sentido de que, verbis: “Um processo penal justo (ou seja, um due process of law processual penal), instrumento garantístico que é, deve promover a separação entre as funções de acusar, defender e julgar, como forma de respeito à condição humana do sujeito passivo, e este mandado de otimização é não só o fator que dá unidade aos princípios hierarquicamente inferiores do microssistema (contraditório, isonomia, imparcialidade, inércia), como também informa e vincula a interpretação das regras infraconstitucionais.” (BODART, Bruno Vinícius Da Rós. Inquérito Policial, Democracia e Constituição: Modificando Paradigmas. Revista eletrônica de direito processual, v. 3, p. 125-136, 2009). 3. Deveras, mesmo nos inquéritos relativos a autoridades com foro por prerrogativa de função, é do Ministério Público o mister de conduzir o procedimento preliminar, de modo a formar adequadamente o seu convencimento a respeito da autoria e materialidade do delito, atuando o Judiciário apenas quando provocado e limitando-se a coibir ilegalidades manifestas. (…) 5. O trancamento do inquérito policial deve ser reservado apenas para situações excepcionalíssimas, nas quais não seja possível, sequer em tese, vislumbrar a ocorrência de delito a partir dos fatos investigados.[3]

No sistema acusatório, é necessário que a acusação seja sustentada por um órgão distinto do que a vai julgar. Nesta linha, antes de deflagrada a ação penal, a inércia do juiz em relação à persecução penal deve ser absoluta, não sendo possível a adoção de medidas que promovam ou incentivem a decisão de acusar, sob pena de quebra do princípio da imparcialidade objetiva.

No regime inaugurado pelo CPP em 1º de janeiro de 1942, quando o juiz criminal – que seria o juiz da investigação e o do julgamento – discordava da promoção de arquivamento do Ministério Público e remetia os autos a revisão do órgão superior do Ministério Público prenunciava sua percepção de que naquele inquérito havia base idônea para o julgamento criminal, em atividade substitutiva do titular da ação penal, que agora lhe foi interditada pela Lei 13.964/2019.

Assim, deve ser saudada a entronização do marco principiológico acusatório no CPP pela Lei Anticrime e as consequências que disso advieram nos arts. 28, 282 e 311 do CPP, no que ora nos interessa, com a supressão da competência anômala do juiz criminal, que lhe permitia provocar a revisão da decisão do Ministério Público de não acusar. Em proveito da accountability institucional, esse controle não foi suprimido. Sua iniciativa foi transferida a quem, diferentemente do juiz, pode ter interesse subjetivo na deflagração da ação penal, a vítima ou seu representante legal.

De fato, em contrapartida à vedação dessa iniciativa pelo juiz criminal, o legislador previu a legitimidade do ofendido para recorrer administrativamente. Concomitantemente, criou-se um mecanismos de remessa necessária à instância superior, de modo que, mesmo sem recurso voluntário, a decisão de arquivamento adotada pelo promotor natural sempre estará sujeita a revisão, para ratificação ou não, por um órgão superior do próprio Ministério Público, que alinhará a homologação dos arquivamentos à política criminal aprovada pelos órgãos da Administração Superior de cada Parquet.

Para garantir o funcionamento desse mecanismo de controle, cujas sementes iniciais surgiram da prática forense de vários Ministérios Públicos, a Lei Anticrime instituiu dois deveres adicionais ao promotor natural, o de intimar a vítima quanto à sua decisão, para que interponha o referido recurso, se quiser; e o de, independentemente de qualquer recurso voluntário, submeter a decisão a homologação do órgão hierárquico, num reforço do princípio da unidade do Ministério Público, previsto no art. 127, §1º, da Constituição.

Esta solução está em harmonia com a doutrina. Para RODRIGUES MAXIMIANO, “a decisão sobre o exercício ou não exercício da acção penal só pode competir ao titular da acção penal sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal.”[4]

3. O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL ANTES DA LEI 13.964/2019 (LEI ANTICRIME)

Na sua redação original, o antigo artigo 28 do Código de Processo Penal, que vigorou a partir de 1º de janeiro de 1942, foi talvez um dos primeiros preceitos de cunho acusatório do ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, porque, antes mesmo da Constituição de 1988, já iniciava a demarcação da separação entre as funções de acusar e julgar[5]. No entanto, o mesmo dispositivo dava ao juiz uma função anômala, de fiscal da decisão de não denunciar. Essa intromissão indevida do juiz no órgão estatal responsável pela acusação pública afrontava esse mesmo princípio acusatório, que diferencia perfeitamente as funções ministeriais e judiciais, sendo vedado ao juiz proceder como órgão persecutório e sendo proibido ao Ministerio Publico atuar como se juiz fosse.

Como vimos, esse arranjo institucional de duas “magistraturas” no processo penal vem em proveito da presunção de inocência e da imparcialidade do julgador. Quem julga não investiga nem acusa; quem investiga e acusa não julga.

Antes da Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime), o arquivamento de um inquérito policial era um ato complexo, acusatório/inquisitivo, pois tinha início com a promoção de arquivamento pelo Ministério Público. Segundo alguns autores, os autos eram então encaminhados à autoridade judicial para decisão sobre o “requerimento” apresentado pelo promotor natural. O juiz podia aceitar a proposta do Ministério Público, chancelando o encerramento da apuração, ou recusá-la. Neste caso, cabia-lhe enviar os autos à chefia do Ministério Público para que o Procurador-Geral, na condição de representante maior do dominis litis, determinasse o arquivamento, que só então seria obrigatório para o Poder Judiciário, dada à falta do poder de iniciativa, resultado do princípio da inércia da jurisdição.

Preconizava o revogado artigo 28 do Código de Processo Penal:

Se o órgão do Ministério Público, em vez de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.

Percebe-se que o texto continha um comando ao juiz e uma regra de distribuição de competências internas do Ministério Público, privilegiando-se a figura do Procurador-Geral da República, chefe do Ministério Público Federal (MPF), e dos Procuradores-Gerais de Justiça, chefes dos Ministérios Públicos Estaduais, na definição uniforme dos destinos de investigações criminais.

Como se vê, o juiz não era obrigado a enviar os autos ao Procurador-Geral, como chefe do Ministério Público. Devia fazê-lo apenas se discordasse das “razões invocadas” pelo promotor natural, fosse ele quem fosse, de acordo com as regras de competência e atribuição, e fossem tais razões quais fossem[6]. A regra valia tanto para o Ministério Público Federal (MPF) quanto para o Ministério Público dos Estados (MPE) e o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT)[7]. No entanto, ao longo dos anos, desde a edição da Lei Complementar 75/1993, que instituiu a Lei Orgânica do Ministério Público da União (MPU), o Ministério Público Federal passou a arquivar inquéritos policiais ora em juízo, ora internamente perante suas câmaras de coordenação e revisão (CCRs), em linha com o modelo de segregação de funções acusatórias e adjudicatórias.

No regime original, havendo concordância do juiz, o caso criminal estaria arquivado. Se o juiz natural tivesse visão diversa daquela esposada pelo promotor de Justiça ou pelo procurador da República, devia enviar os autos do inquérito policial ao procurador-geral de Justiça (PGJ), nos casos de competência estadual ou distrital, ou ao procurador-geral da República (PGR), nos casos de competência federal. Inquéritos policiais militares e inquéritos eleitorais seguiam regras semelhantes previstas na legislação especial.

Na Justiça Militar, o procedimento era o previsto no art. 397, §1º, do CPPM, instituído pelo Decreto-lei 1002/1969, segundo o qual, se o procurador ou promotor “entender que os autos do inquérito ou as peças de informação não ministram os elementos indispensáveis ao oferecimento da denúncia, requererá ao auditor que os mande arquivar”. Se o juiz militar concordasse com o pedido, determinava o arquivamento; se dele discordasse, remetia os autos ao procurador-geral militar, ou seja, ao PGJ dos Estados, ou ao chefe do Ministério Público Militar (MPM). Se o procurador-geral competente entendesse haver elementos para a ação penal, designava outro procurador, a fim de promovê-la; em caso contrário, “mandava arquivar o processo”.[8] Agora o juiz militar não intervém mais nesse procedimento, cabendo a remessa direta do promotor natural ao procurador-geral militar.

No foro eleitoral, o procedimento era semelhante. Consoante o art. 357, §1º, do Código Eleitoral (Lei 4.737/1965), se o órgão do Ministério Público requeresse o arquivamento da comunicação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fazia remessa da comunicação ao Procurador Regional Eleitoral[9] no Estado, e este oferecia a denúncia, designava outro promotor eleitoral para oferecê-la, ou insistia no pedido de arquivamento, que se tornava impositivo para o juiz.

Comentando o sistema vigente em Portugal entre 1945 e 1974, que foi semelhante ao antes existente no Brasil, RODRIGUES MAXIMIANO lembra:

No domínio do Dec-Lei n. 35007, de 13-10-1945, nos casos em que o Ministério Público deixasse de formular acusação, os autos eram conclusos ao juiz, na falta de reclamação hierárquica daqueles despachos, e, “se este entender que estão verificadas as condições suficientes para a acusação, fará constar de despacho assuas razões, subindo os autos oficiosamente ao Procurador da República, que decidirá, nos termos da parte final do número anterior”[se deve ou não ser feita a acusação] – artigo 28o. Este artigo 28o do Dec-Lei no 35007 veio a ser revogado pelo Dec-Lei no 201/76, de 19-03, sendo esta “a primeira manifestação inequívoca da autonomia do Ministério Público face à magistratura judicial” e abolindo-se, assim, a fiscalização judicial, a qual constituía uma “violação flagrante do acusatório puro e correspondia a uma concepção que se ultrapassava de um Ministério Público subalterno”, em relação àquela magistratura.[10]

Com a Lei 13.964/2019, como veremos a seguir, tudo mudou. O juiz não mais atua em papéis anômalos. Naturalmente, este magistrado, que é agora o juiz de garantias, não estará alheio à etapa investigativa. Porém, só intervém no inquérito nas situações previstas no novo art. 3º-B do CPP, e nunca como substituto do órgão de acusação.

4. O ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL APÓS A LEI 13.964/2019 (LEI ANTICRIME)

Sempre defendemos que, em obediência ao princípio acusatório, o arquivamento de inquéritos policiais e procedimentos investigatórios criminais (PIC) devia ocorrer internamente (intra muros), ou seja, dentro do Ministério Público, sem ingerência judicial. Se o órgão do Ministério Público, após apreciação dos elementos informativos constantes dos autos do inquérito policial e a realização de todas as diligências cabíveis, convencer-se da inexistência de base razoável para o oferecimento de denúncia, deve decidir, fundamentadamente, pelo arquivamento dos autos da investigação ou das peças de informação.

Neste contexto, o promotor natural servirá como filtro da reação estatal diante do fenômeno criminal. Se, dentro do prazo legal, nos crimes de ação pública, o Ministério Público tomar a decisão de não acusar, a persecução criminal não poderá ser iniciada, nem de forma supletiva, por meio de ação penal privada subsidiária.

A nova redação do artigo 28 do Código de Processo Penal, decorrente da Lei 13.964/2019 (Lei Anticrime) traz alterações consentâneas com o princípio acusatório, pois agora não se tem mais um pedido, uma promoção ou um requerimento de arquivamento, mas uma verdadeira decisão de não acusar, isto é, o promotor natural decide não proceder à ação penal pública, de acordo com critérios de legalidade e oportunidade, tendo em mira o interesse público, as diretrizes de política criminal aprovadas pelo Ministério Público e considerando eventuais saídas abreviadas existentes na legislação, como o acordo de não persecução penal, agora regulado pelo novo art. 28-A do CPP e pela Resolução 181/2017, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

O arquivamento dos termos circunstanciados de ocorrência (TCO) instaurados pela Polícia para apuração de infrações penais de menor potencial ofensivo, no âmbito da Lei 9.099/1995[11], seguirá a nova regra geral: arquivamento pelo Ministério Público sem intervenção judicial.

Para contrabalançar a vedação de intervenção judicial nesta etapa, o legislador instituiu duas salvaguardas.

A primeira exige que o promotor natural – seja ele membro do MPE, do MPF ou do MPM ou que esteja no exercício de funções do MP Eleitoral[12] – sempre submeta sua decisão a controle hierárquico[13], para fins de homologação do arquivamento ou revisão dessa decisão, com substituição de seu pronunciamento em favor da realização de diligências complementares ou da deflagração imediata da ação penal. Este mecanismo garante a accountability horizontal, resguarda o interesse público, tem em conta o interesse da vítima e é compatível com o princípio da unidade institucional do Ministério Público, permitindo que os procuradores-Gerais de fato orientem a política criminal da instituição, de modo uniforme, sem violação de outro princípio constitucional igualmente importante, o da independência funcional.

A segunda salvaguarda diz respeito ao direito da vítima, ou de seu representante legal, de obter a reparação pelo crime que sofreu e ver o responsável processado e punido, com vistas, inclusive, mas não apenas isto, à indenização civil. Ao arquivar o caso, o promotor ou procurador deve determinar a intimação do ofendido ou de seu representante legal, pessoalmente, por escrito ou por comunicação digital, para que exerça seu direito de recorrer em 30 dias, com apresentação de suas razões ao órgão revisional do Ministério Público, seja ele o próprio Procurador-Geral, uma assessoria especial, ou as câmaras que existem nos três ramos criminais do Ministério Público da União (MPU).

Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei.

Obrigação de o Ministério Público comunicar a vítima foi instituída no Brasil pelos §§3º e 4º do art. 19 da Resolução 181/2017, do CNMP, incluídos no texto pela Resolução 201, de 4 de novembro de 2019. A comunicação ao ofendido deve ser observada também porque este terá direito de propor ação penal privada subsidiária da pública em caso de inércia do Ministério Público. A cientificação da decisão de arquivamento previne a configuração de tal situação omissiva, assegura o direito à informação e serve para resguardar o direito de acesso à justiça.

Se houver dados de identificação do investigado e se seu paradeiro for conhecido ou se ele tiver constituído advogado ou tiver defensor, o suposto autor da infração penal também deverá ser cientificado do arquivamento. Essa notícia integra-se ao patrimônio jurídico do investigado, agora fazendo parte do conteúdo do direito à ampla defesa. Embora a lei não diga, o investigado também poderá apresentar à instância revisional do Ministério Público suas razões para que o arquivamento seja homologado.

A autoridade policial que presidiu o inquérito também deve receber comunicação sobre o destino dado aos autos da apuração que presidiu, para que atualize seus registros, inclusive quanto à situação jurídica do investigado, que pode ter sido indiciado pela Polícia Judiciária.

Embora a Lei Anticrime não o diga, o arquivamento dos autos pelo Ministério Público também deve ser comunicado ao juiz de garantias, para baixa dos registros judiciais e, eventualmente, para a revogação de medidas cautelares, reais ou pessoais que tenham sido impostas ao suspeito ou ao indiciado.

Como se vê, com este sistema há um reforço dos mecanismos institucionais de controle da decisão de arquivamento, com sua submissão obrigatória, em todos os casos, à instância superior do Ministério Público, e com a abertura de possibilidade à vítima de oferecer razões contrárias à decisão de arquivamento, e ao investigado de apresentar argumentos favoráveis à decisão de não denunciar. Há a vantagem adicional de manter-se o juiz em sua condição de imparcialidade objetiva, sem que ele se veja obrigado a expor argumentos contrários ao arquivamento.

Adotando o princípio acusatório, a nova sistemática processual do art. 28 do CPP consolida o arquivamento de inquérito por decisão interna do órgão de acusação, após a homologação por instância interna de controle. No entanto, note que o dispositivo especifica que tal confirmação da decisão de não acusar se dará “na forma da lei”. O novo recurso administrativo, entregue à vítima ou ao seu representante legal pelo §1º desse artigo, também deve ser apreciado pela instância interna competente “conforme dispuser a respectiva lei orgânica.”

§ 1º. Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica.

5. PROBLEMAS DA NOVA SISTEMÁTICA DO ART. 28 DO CPP

Apesar de aplaudimos a inovação legislativa, dela advieram pelo menos dois problemas imediatos:

Problema 1: a que órgão interno do Ministério Publico compete homologar ou não o arquivamento do inquérito policial?
O novo artigo 28 do CPP, decorrente da Lei 13.964/2019, não menciona mais o Procurador-Geral como o órgão do Ministério Público que decide insistir no arquivamento, ordenar diligências complementares ou designar outro membro do Parquet para proceder à ação penal.

Agora esse dispositivo usa os termos “na forma da lei” e “conforme dispuser a respectiva lei orgânica” para se referir ao procedimento de arquivamento. Exige-se então um exame das normas internas de organização do Ministério Público.

A expressão “na forma da lei”, constante do caput, parece ter transformado o novo artigo 28 do Código de Processo Penal em norma de eficácia limitada, ou seja, seu efeitos dependeriam de outra lei, o que poderia significar que, se não existir regramento em lei sobre a homologação do arquivamento pela instância superior, nesta parte a norma não produziria efeitos.

A Lei orgânica do MPU, de 1993, aparentemente não estabelecia expressamente o órgão ao qual compete homologar decisões de arquivamento. Quanto ao MPF, o art. 62, inciso IV, da LC 75/1993 atribui as câmaras de coordenação e revisão[14] a competência para “manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral”. Entendia-se que este dispositivo dialogava com a antiga redação do art. 28 do CPP. Pelo texto combinado dos dois dispositivos, a decisão seria do PGR, ouvindo-se antes a Câmara Criminal competente. Na prática do MPF, porém, o PGR não tomava parte da decisão.

O art. 136, IV, da LC 75/1993 tem disposição semelhante em relação ao MPM, dizendo competir à sua Câmara de Coordenação e Revisão “manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial militar, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral”. A decisão de homologação, ou não, cabe, nos termos art. 397, §1º do CPPM, ao Procurador-Geral da Justiça Militar, após o opinativo da câmara criminal do MPM.

Por sua vez, o art. 171, V, da LC 75/1993 estabelece que compete às câmaras de coordenação e revisão do MPDFT “manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral”. Lá as duas câmaras com competência criminal apenas opinam, e a decisão homologatória ou não cabe ao Procurador-Geral de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

Assim, no MPU, órgãos colegiados manifestam-se previamente à decisão dos respectivos procuradores-gerais, sendo que, no MPF, as funções que pelo art. 28 do CPP competiam ao PGR são de fato exercidas pelas câmaras criminais, que decidem pela homologação ou pela não homologação das decisões de arquivamento. A partir daí cabe aos procuradores-chefes nos Estados e também no Distrito Federal designar outro membro do MPF para atuar em caso de não homologação. Tal delegação do PGR aos procuradores-chefes é objeto da Portaria PGR 458, de 2 de julho de 1998, e tem por fundamento o art. 50, inciso II, da LC 75/1993, com referência também ao art. 28 do CPP, na sua antiga redação.[15]

Com a alteração da redação do art. 28 do CPP esta atribuição dos chefes dos Ministérios Públicos não está mais expressa no código processual comum, embora permaneça no Código Eleitoral e no CPPM, nos arts. 357, §1º e 397, §1º, respectivamente, que podem ser aplicados analogicamente nesta parte aos inquéritos comuns. Ademais, diz o art. 49, incisos XXII e XXIII, da LC 75/1993, que são atribuições do Procurador-Geral da República, como Chefe do Ministério Público Federal, coordenar as atividades do Ministério Público Federal e exercer outras atividades “previstas em lei”. O art. 50, inciso I, da LC 75/1993 dispõe que a atribuição de coordenar a atividade da instituição pode ser delegada a coordenador de Câmara e aos procuradores-chefes do MPF nos Estados e no Distrito Federal. A estes também pode ser delegada a atribuição de “representar o Ministério Público Federal”, prevista no art. 49, inciso I. Com essa combinação de diplomas, no MPU, o procedimento interno do antigo art. 28 pode ser mantido como antes.

A Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) é de pouca valia no ponto, pois também se remete ao art. 28 do CPP (antiga redação). Porém, na parte útil, desde 2017 previa duas opções: o arquivamento em juízo ou perante “órgão superior interno competente”, numa referência às câmaras do MPU. Veja:

Art. 19. Se o membro do Ministério Público responsável pelo procedimento investigatório criminal se convencer da inexistência de fundamento para a propositura de ação penal pública, nos termos do art. 17, promoverá o arquivamento dos autos ou das peças de informação, fazendo-o fundamentadamente.

§1º A promoção de arquivamento será apresentada ao juízo competente[16], nos moldes do art. 28 do Código de Processo Penal, ou ao órgão superior interno responsável por sua apreciação, nos termos da legislação vigente.

§2º Na hipótese de arquivamento do procedimento investigatório criminal, ou do inquérito policial, quando amparado em acordo de não persecução penal, nos termos do artigo anterior, a promoção de arquivamento será necessariamente apresentada ao juízo competente, nos moldes do art. 28 do Código de Processo Penal.

O §14 do novo art. 28-A do CPP, que trata do acordo de não persecução penal, também ficará claudicante quanto ao procedimento, pois determina que, no caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado pode requerer ao juiz de garantias a remessa dos autos “a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.” O órgão superior ali expressamente mencionado era o Procurador-Geral de cada um dos 29 ministérios públicos com atribuição criminal. Evidentemente foi essa a intenção do legislador, mas a colcha de retalhos feita na Câmara dos Deputados às custas do Projeto Anticrime gerou essas inconsistências e lacunas.

Já a lei federal dos Ministérios Públicos estaduais também não trata diretamente do arquivamento de inquéritos policiais. O art. 10, IX, alínea “d”, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos Estados (LONAMP) confere aos Procuradores-Gerais de Justiça competência para designar membros do Ministério Público para “oferecer denúncia ou propor ação civil pública nas hipóteses de não confirmação de arquivamento de inquérito policial ou civil, bem como de quaisquer peças de informações”. Sobre o procedimento de ratificação nada diz.

Segundo o inciso XI do art. 12 da LONAMP compete ao Colégio de Procuradores de Justiça “rever, mediante requerimento de legítimo interessado, nos termos da Lei Orgânica, decisão de arquivamento de inquérito policial ou peças de informações determinada pelo Procurador-Geral de Justiça, nos casos de sua atribuição originária”. Tais casos estão previstos na Constituição Federal e nas constituições estaduais, sendo objeto do art. 29, inciso VII, da LONAMP, que atribui ao PGJ “determinar o arquivamento de representação, notícia de crime, peças de informação, conclusão de comissões parlamentares de inquérito ou inquérito policial, nas hipóteses de suas atribuições legais”.

Estamos diante de lacunas legislativas, portanto. Em consequência da nova redação do art. 28 do CPP, os procuradores-gerais devem propor projetos de lei complementar nos Estados para alterar as 26 leis orgânicas dos Ministérios Públicos Estaduais? Entendemos que não.

Lei estadual não pode tratar especificamente do arquivamento de inquérito policial para além do que dispõe a legislação criminal, pois tal matéria incide sobre o status libertatis do cidadão e é de competência da União. No entanto, tais leis podem distribuir internamente as competências relacionadas ao arquivamento, desde que observado o padrão nacional.[17]

Selecionamos um Estado de região do País para tomarmos como exemplo. O art. 15, inciso X, da Lei Complementar Estadual 11/1996, da Bahia, confere ao PGJ atribuição para designar membros do Ministério Público para oferecer denúncia nas hipóteses de não aceitação do pedido de arquivamento de inquérito policial, bem como de quaisquer peças de informação. O art. 86, incisos X e XI, da mesma lei, dá ao PGJ baiano atribuição para determinar o arquivamento de representação, notícia de crime, peças de informação, conclusão de Comissões Parlamentares de Inquérito ou inquérito policial, “nas hipóteses de suas atribuições legais” e “tomar conhecimento de despacho judicial que negar pedido de arquivamento de inquérito policial ou de qualquer peça de informação, oferecendo denúncia ou designando outro membro do Ministério Público para fazê-lo, ou insistindo no arquivamento”. Segue-se o paradigma nacional constante da LONAMP e do antigo art. 28 do CPP.

O art. 19, XIV, “d”, da Lei Complementar do Paraná 85/1999 atribui ao PGJ competência para designar membro do Ministério Público paranaense para oferecer denúncia nas hipóteses de não confirmação de arquivamento de inquérito policial. Disposição semelhante está no art. 19, inciso III, “d”, da Lei Complementar 734/1993, do Estado do Pará. Em Goiás, a Lei Complementar Estadual 25/1998, segue o mesmo modelo no seu art. 15, XI, “c”.

Pelo menos um Estado vai mais adiante na sua regulamentação. Além de repetir a fórmula nacional, o art. 39, XV e XVI, da Lei Complementar Estadual 106/2003, do Rio de Janeiro, atribui ao PGJ fluminense a competência para “requisitar autos arquivados, relacionados à prática de infração penal, ou de ato infracional atribuído a adolescente, promover seu desarquivamento e, se for o caso, oferecer denúncia ou representação, ou designar outro órgão do Ministério Público para fazê-lo” e também para “exercer ou delegar a membro da Instituição qualquer função atribuída ao Ministério Público nas Constituições Federal e Estadual, nesta e em outras leis, quando não conferida, expressamente, a outro órgão”.

O exame dessa legislação faz ver que continua sendo dos PGJs a competência para designar membros do Ministerio Público para oferecer denúncia em caso de não confirmação de arquivamento de inquérito policial. Mas não fica claro a que órgão da instituição caberia revisar a decisão inicial de não acusar[18]. Na falta de previsão expressa e tendo em mira que o PGJ é o chefe da instituição, cumprindo-lhe representá-la, como cláusula geral, a menção indistinta ao Ministério Público deve ser lida como menção ao Procurador-Geral. Esta solução, ademais, mantém a tradição do antigo art. 28 do CPP.

Deste modo, ao receber os autos com a decisão de arquivamento, o órgão de revisão do Ministério Público (o procurador-geral ou o órgão delegado) pode homologá-la ou, caso dela discorde, pode determinar a continuidade das investigações ou designar outro membro do Ministério Público para denunciar o investigado. Embora se trate apenas de definir, dentro da economia interna do Ministério Público, qual é o órgão competente para tal homologação, as leis orgânicas estaduais não podem inovar em processo penal.

O legislador brasileiro desincumbiu do papel de definir o padrão nacional por meio da Lei Complementar 75/1993, que institui a Lei Orgânica do Ministério Público da União (LOMPU), e da Lei 8.625/1993, a Lei Orgânica Nacional dos Ministérios Públicos dos Estados (LONAMP), aos quais o regime do MPU também se aplica, por força do art. 80 da Lei. 8.625/1993.[19] Diante do princípio constitucional da unidade institucional, a aplicação subsidiária no sentido inverso também é factível. Esse entendimento permite um amálgama de dispositivos para uma solução uniforme.

Haveria vício de inconstitucionalidade a partir do momento que qualquer um dos entes estaduais editasse leis para regular de forma particular o arquivamento de inquéritos policiais. Tal qual se dá com o inquérito civil, tal normatização deve ser nacionalmente homogênea face ao bem jurídico tutelado (status libertatis) e à dimensão nacionalmente unitária do Ministério Publico, não se tratando, pois, de questões específicas.

O diploma organizativo destinado a preencher a lacuna deixada pela Lei 13.964/2019 deve ter status de lei complementar, podendo ser de iniciativa do Presidente da República ou do Procurador-Geral da República, nos termos do art. 61, §1º, inciso II, alínea “d”, e do art. 128, §5º, da Constituição Federal, a saber:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:

II – disponham sobre:

d) organização do Ministério Público e da Defensoria Pública da União, bem como normas gerais para a organização do Ministério Público e da Defensoria Pública dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios;

Por sua vez, o art. 128, §5º da CF, estabelece que leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos Procuradores-Gerais, “estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público”, observando-se que as normas gerais de organização do Ministério Público são as definidas pela União.

Assim, eventual anteprojeto de lei complementar federal, de iniciativa do Presidente da República ou do Procurador-Geral da República poderia pretender definir no plano interno dos Ministérios Públicos o órgão competente para a homologação e o procedimento recursal a que se referiu o art. 28 do CPP.

No entanto, como já vimos, lei adicional alguma parece necessária para equacionar essa questão, tendo em vista dispositivos da LOMPU, da LONAMP, do próprio CPP e, analogicamente, do CPPM e do Código Eleitoral. Voltaremos a este ponto logo adiante. Antes, porém, vejamos o segundo problema criado pela lei nova.

b) Problema 2: onde ficarão os autos dos inquéritos arquivados?

O art. 28 do CPP não diz onde devem ser acautelados os inquéritos policiais arquivados, mas a resposta veio noutro distintivo da Lei 13.964/2019. Determina o §3º do art. 3º-C do CPP que os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento[20].

Pois bem. Em caso de arquivamento não há nada a enviar ao juiz do julgamento. O inquérito policial, que terá tramitado diretamente entre a Polícia e o Ministério Publico[21], deverá permanecer à disposição da vítima, do investigado, da Polícia e do Ministério Público, na secretaria de apoio ao juízo das garantias. Assim, os autos arquivados pelo Ministério Público devem ser remetidos fisicamente ao cartório do juízo das garantias para guarda. Diz o art. 3º-B, § 4º do CPP que “as partes” têm amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias.

Dizendo de outra maneira, os autos do inquérito policial serão mantidos na serventia, na secretaria ou no cartório do juízo de garantias da comarca, da seção ou subseção, ou da zona[22]. Em não existindo esse serviço, os inquéritos encerrados podem permanecer no órgão do Ministério Público que o arquivou, ou na Delegacia de Polícia, já que o inquérito é um procedimento de natureza administrativa, presidido pela Policia Judiciária[23].

Evidentemente este problema só existe nos casos de inquéritos físicos, pois os feitos eletrônicos ficarão registrados nos respectivos sistemas digitais utilizados pelo Judiciário, pelo Ministério Público e pela Polícia, e a tramitação também será digital, com plena acessibilidade.[24]

Certamente haverá controvérsias. O ideal é que haja uma solução nacionalmente uniforme, a ser instituída por resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), de preferência em conjunto com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), porque todo inquérito policial sujeito a decisão do juiz de garantias deve ser registrado em serventia judicial ao menos para uma de duas finalidades ou ambas:

para designação do número único nacional de autuação, segundo o padrão do CNJ, instituído pela Resolução 16/2008,[25] ou simplesmente para registro simplificado do inquérito;[26]
para os fins do inciso IV do novo art. 3º-B do CPP, que determina que a instauração de todo inquérito policial seja informada ao juiz de garantias.[27]
Quanto às provas recolhidas durante a investigação criminal e que constituam “vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes”, não há dúvida de que ficarão nas centrais de custódia que deverão ser criadas na União e nos Estados em função dos arts. 158-E e 158-F do CPP. Todos os Institutos de Criminalística devem ter pelo menos uma central de custódia destinada à guarda e controle dos vestígios de infrações penais. Tais centrais deve possuir os serviços de protocolo, com local para conferência, recepção, devolução de materiais e documentos, possibilitando a seleção, a classificação e a distribuição de materiais, devendo ser um espaço seguro e apresentar condições ambientais que não interfiram nas características do vestígio. Ainda segundo a lei, após a realização de qualquer perícia, o material probatório deve ser devolvido à central de custódia, devendo nela permanecer. Os vestígios vinculados a inquéritos arquivados devem ser adequadamente mantidos para uso em caso de desarquivamento de cold cases.

Os bens apreendidos vinculados a inquéritos arquivados devem ter a destinação prevista em lei, isto é, a sua restituição ao investigado ou à vítima ou a terceiro de boa-fé; ou a destinação a órgãos de persecução criminal e segurança pública; ou a alienação antecipada em leilão; ou a entrega a museu público.

6. O REFORÇO AO PRINCÍPIO DA UNIDADE INSTITUCIONAL E À UTILIDADE DA PERSECUÇÃO CRIMINAL

Um dos princípios constitucionais adensados pelo novo art. 28 do CPP é o da unidade institucional, previsto no art. 127, §1º, da Constituição.Não havendo mais ingerência judicial na decisão de não acusar e sendo obrigatória, para todos os inquéritos, a ratificação pelo órgão superior do Ministério Público, o posicionamento da instituição em matéria penal será muito mais abrangente e uniforme.

A última palavra no arquivamento não é a do promotor natural; é a da instituição organicamente considerada, após a revisão “hierárquica” da decisão de não acusar. A última vontade a prevalecer não é a do juiz A ou do juiz B, geograficamente dispersos pelas comarcas e subseções do País, quando exerciam o controle do arquivamento casuisticamente. O novo mecanismo do art. 28 do CPP permite consolidar entendimentos institucionais coerentes e objetivos para todos os inquéritos arquivados em um Estado ou na Justiça Federal. Não se trata apenas de um enriquecimento do patrimônio informacional da instituição, do ponto de vista estatístico e qualitativo, mas de uma ferramenta de boa gestão de recursos humanos e materiais para os fins da persecução criminal[28], permitindo à instância superior orientar o Parquet em relação ao princípio da oportunidade da ação penal, em torno da insignificância, ou no tema da justiça pactuada ou da justiça restaurativa, por exemplo, com elevado proveito para a segurança jurídica e o correto emprego das verbas do orçamento orgânico.

Mais do que antes, diretrizes de política criminal específicas podem ser aprovadas pelo Ministério Público para orientar sua atuação em juízo e fora dele, a partir das linhas gerais traçadas pelos Poderes Executivo e Legislativo, com foco nesta ou naquela infração penal, eleita como de enfrentamento prioritário pelo Parquet, por oposição a outras em relação às quais valerão critérios mais largos e precisos de prosecutorial discretion.[29] As “razões invocadas” para o arquivamento continuarão a ser expressadas pelo promotor natural. Mas o juízo sobre a suficiência delas para o encerramento da investigação sem denúncia poderá ser estabelecido de antemão, em orientações uniformes do órgão revisor, ou constituir sua jurisprudência em enunciados cogentes, que influenciarão as decisões de acusar ou de não acusar, de maneira homogênea em cada Estado ou na União.

O arquivamento interno do procedimento inquisitorial já ocorre há vários anos no Ministério Público Federal, embora não com a abrangência total inaugurada pela Lei 13.964/2019. A experiência institucional federal pode ser aproveitada pelos demais Ministérios Públicos e aperfeiçoada, no que for necessário, especialmente a prática dos enunciados e orientações das Câmaras de Coordenação e Revisão.

O modelo orgânico do MPF concilia as atribuições das CCRs com as do PGR. Como vimos alhures, a Portaria PGR nº 458, de 2 de julho de 1998, com fulcro no antigo texto do artigo 28 do CPP, delegava a competência para designar o longa manus aos procuradores-chefes nos Estados e no Distrito Federal ou aos procuradores-regionais chefes.

A Lei Complementar 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o Estatuto do Ministério Público da União, normatiza em seu artigo 62, inciso IV, que compete às Câmaras de Coordenação e Revisão do MPF manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procurador-Geral[30]. Teoricamente, à luz do antigo art. 28 do CPP essa manifestação era endereçada ao PGR, mas na prática reiterada das câmaras a “manifestação” não é um parecer, mas uma decisão de homologação ou de não homologação.

De fato, o art. 2º, inciso IV, do Regimento Interno da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, aprovado pela Resolução CSMPF 180, de 6 de fevereiro de 2018, atribui à 2ª CCR competência para “revisar o arquivamento e o declínio de atribuições” promovidos em inquéritos policiais, PICs e quaisquer peças de informação, ressalvadas as hipóteses previstas na Resolução CNMP 174/2017, que disciplina no âmbito do Ministério Público a instauração e a tramitação de notícias de fato e de procedimentos administrativos. Seu art. 4º trata de hipóteses de arquivamento de plano pelo Ministério Público em quatro hipóteses: se o fato já estiver sob investigação ou já houver sido judicializado ou já tiver sido solucionado; em caso de manifesta insignificância da lesão ao bem jurídico; se não houver substrato mínimo de prova; ou quando se recomende atuação alinhada ao Planejamento Estratégico Institucional (PEI).[31]

Graças a esse arranjo e a uma leitura contemporânea do art. 28 do CPP, no âmbito do MPF foram aprovados diversos enunciados e outras tantas orientações em relação a arquivamentos. Assim o fez a 2ª CCR e depois também os demais colegiados revisores, que passaram a recepcionar as diretrizes daquela que era a única câmara criminal e a editar suas próprias guidelines. Eis alguns dos enunciados[32]:

Enunciado nº 07: O magistrado, quando discordar da motivação apresentada pelo órgão do Ministério Público para o não oferecimento da denúncia, qualquer que seja a fundamentação, deve remeter os autos à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, valendo-se do disposto nos artigos 28, do Código de Processo Penal e 62, IV, da LC 75/93.

Enunciado nº 09: A promoção de arquivamento feita pelo membro do Ministério Público Federal será submetida à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, que se manifestará no exercício de sua competência revisional.

Enunciado nº 10: O arquivamento promovido pelo membro do Ministério Público Federal deve ser por ele comunicado ao interessado, antes da remessa dos autos à 2ª Câmara para revisão.

Enunciado nº 21: É admissível o arquivamento dos autos de investigação ao fundamento de excludente da tipicidade, da ilicitude e da culpabilidade. Porém, em todas as hipóteses, a excludente deve resultar cabalmente provada, ao término de regular investigação.

Enunciado nº 29: Compete à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal manifestar-se nas hipóteses em que o Juiz Eleitoral considerar improcedentes as razões invocadas pelo Promotor Eleitoral ao requerer o arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação, derrogado o art. 357,§1º do Código Eleitoral pelo art. 62, inc. IV da Lei Complementar nº 75/93.

Enunciado nº 36: Quando o arquivamento da notícia de fato, do procedimento investigatório criminal ou do inquérito policial for promovido com fundamento nas hipóteses previstas na Resolução CNMP nº 174, de 4 de julho de 2017, ou tiver por base entendimento já expresso em enunciado ou orientação da 2ª Câmara, os autos não deverão ser remetidos à 2ªCCR, salvo nos casos de recurso ou quando o membro oficiante julgar necessário, registrando-se apenas no Sistema Único e cientificando-se o interessado por correio eletrônico.

Enunciado nº 46: Nos casos em que a abertura do procedimento investigatório criminal se der por representação, o interessado será cientificado formalmente da promoção de arquivamento e da faculdade de apresentar recurso e documentos, no prazo de 10 (dez) dias, contados da juntada da intimação. Após o transcurso desse prazo, com ou sem novas razões, os autos serão remetidos à 2ª CCR para apreciação.

Enunciado nº 49: Aplica-se o princípio da insignificância penal ao descaminho e aos crimes tributários federais, quando o valor do débito devido à Fazenda Pública decorrente da conduta formalmente típica não seja superior a R$ 20.000,00, ressalvada a reiteração na mesma modalidade criminosa, ocorrida em períodos de até 5 (cinco) anos.

Enunciado nº 57: É desnecessário o envio dos autos à 2ª CCR no caso de decisão ou promoção de arquivamento fundado na existência de outro procedimento investigatório com idêntico objeto (princípio do ne bis in idem), o que deverá ser devidamente comprovado nos autos arquivados e remanescentes.

Enunciado nº 60: É cabível o arquivamento de procedimento investigatório referente ao crime de moeda falsa quando a quantidade e o valor das cédulas, o modo que estavam guardadas pelo agente, o modo de introdução ou a tentativa de introdução em circulação, o comportamento do agente ou as demais circunstâncias indicarem ausência de conhecimento da falsidade ou de dolo do agente e sendo inviável ou improvável a produção de prova em sentido contrário, inclusive pelo decurso do tempo.

Enunciado nº 65: A revisão incumbida à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão poderá ser efetuada por decisão monocrática de um de seus membros (titular ou suplente) sempre que o arquivamento tiver por base entendimento já expresso em enunciado ou orientação da 2ª Câmara.

Enunciado nº 69: Quando, em análise de promoção de arquivamento, a 2ª CCR determinar a realização de diligências preliminares e imprescindíveis à sua decisão, os autos serão devolvidos ao membro que promoveu o arquivamento para cumprimento das diligências.

Enunciado nº 71: É cabível o arquivamento de investigação que apura crime de furto ou roubo (CP, art. 155 ou 157) quando, após investigação mínima, não restarem evidenciados elementos suficientes da autoria delitiva, situação demonstrada com a reunião das seguintes condições: inexistência de suspeitos, de testemunha, de elementos técnicos formadores de convicção (fragmentos papiloscópicos, imagens, vestígios biológicos, etc) e de outras diligências capazes de modificar o panorama probatório atual.

Entre as orientações do MPF, vale mencionar algumas formuladas em conjunto pelas câmaras criminais em matéria de arquivamento:

Orientação Conjunta 01/2015 (2ª, 5ª e 7ª CCRs): orienta os membros do Ministério Público Federal atuantes em ofícios vinculados às 2a, 5a e 7a Câmaras a submeterem as promoções de arquivamento de inquéritos policiais, de procedimentos investigatórios criminais (PICs) e de notícias de fato ou peças de informação diretamente à Câmara competente, para fins de revisão.

Orientação Conjunta 02/2015 (2ª, 5ª e 7ª CCRs): É facultado o arquivamento interno, devidamente fundamentado, independentemente de instauração formal de procedimento e de homologação das 2ª, 5ª e 7ª Câmaras de Coordenação e Revisão, dos expedientes recebidos pelas Salas de Atendimento ao Cidadão, quando não se vislumbrar, sequer em tese, a ocorrência de crime ou improbidade administrativa, passível de ensejar a atuação do Ministério Público, sem prejuízo de comunicação ao noticiante.

Orientação Conjunta 03/2016 (2ª, 5ª e 7ª CCRs): em caso de arquivamento de inquérito policial homologado por uma das Câmaras com competência criminal, os autos devem ser encaminhados à Justiça Federal para baixem seus registros e arquivamento físico, devendo-se oficiar também à Polícia Federal, dando-lhe conhecimento do arquivamento.

Orientação 26/2016 (2ª CCR): A antiguidade do fato investigado, o esgotamento das diligências investigatórias razoavelmente exigíveis ou a inexistência de linha investigatória potencialmente idônea, adequadamente sopesados no caso concreto, justificam o arquivamento da investigação, sem prejuízo do disposto no art. 18 do CPP.[33]

7. O NECESSÁRIO APERFEIÇOAMENTO DA RESOLUÇÃO CNMP 181/2017

Editada para substituir a Resolução CNMP 13/2006, que regulou pela primeira vez o procedimento investigatório criminal (PIC), a Resolução CNMO 181/2017 contém minucioso tratamento de questões atinentes a apurações criminais conduzidas pela instituição. A regulamentação do CNMP ganhou maior importância depois que o STF confirmou o poder investigatório do Ministério Público em 2015[34].

A Lei Anticrime tem impacto direto sobre a Resolução 181 porquanto regula de forma ligeiramente diversa os acordos de não persecução penal (ANPP), agora objeto do novo art. 28-A do CPP. De igual modo, as novas regras sobre cadeia de custódia também têm efeito sobre a investigação conduzida (PIC) ou supervisionada (IPL) pelo MP. Outrossim, o confisco alargado do art. 91-A do CP exigirá que procuradores e promotores realizem investigações patrimoniais nos casos em que se suspeitar de enriquecimento ilícito ou de acréscimo patrimonial a descoberto. A Lei 13.964/2019 incide ainda sobre o âmbito de regulação da Resolução 181 nos temas do juiz de garantias, da audiência de custódia e do arquivamento de investigações criminais.

Como vimos, a mudança da redação do art. 28 do CPP é bastante significativa, reclamando a sistematização dos procedimentos internos de homologação de arquivamento e também das hipóteses de desarquivamento de inquéritos policiais.

O legislador federal deveria ter tido a cautela de estabelecer a regulação mínima no texto modificado. Não o tendo feito, cabe ao CNMP adaptar o art. 19 da Resolução 181/2017 ao novo modelo do art. 28 do CPP. A seguir, algumas sugestões pada a regulamentação supletiva, pelo CNMP ou nos regimentos internos dos Ministérios Públicos:

Os inquéritos policiais são arquivados internamente pelo Ministério Publico, por decisão do promotor natural;
A vítima, o investigado, a autoridade policial e o juiz das garantias devem ser informados da decisão do promotor natural, podendo a vítima ou seu representante legal e o investigado apresentar razões escritas;
A apresentação dessas razões pode ser feita ao promotor natural, após a intimação da decisão, ou diretamente ao órgão superior de revisão, no prazo legal;
Salvo nos casos de competência originária dos Procuradores-Gerais, isto é, nos casos de foro especial por prerrogativa de função, tais decisões de arquivamento devem ser submetidas a controle interno obrigatório, ainda que não haja recurso da vítima ou de seu representante legal;
O controle hierárquico da decisão de não acusar deve ser feito por órgão superior da instituição, isto é, pelo próprio Procurador-Geral; por serviço ou assessoria por ele criado para este fim; ou por órgão colegiado existente na estrutura do Ministério Público;
Por analogia, esse procedimento também se aplica aos casos de competência da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar;
Uma vez homologado o arquivamento, a deliberação final do Ministério Público deve ser levada ao conhecimento da vítima ou de seu representante legal, do investigado, do juiz de garantias e da autoridade policial que presidiu o inquérito;
A submissão do caso a homologação, e a intimação ou comunicação em caso de arquivamento podem ser feitas por meios eletrônicos;
A interposição de recursos e a apresentação de razões também pode ser feita eletronicamente, com possibilidade de acompanhamento da tramitação pela Internet, observados os sigilos legais;
Em não sendo homologado o arquivamento, o Procurador-Geral ou o órgão interno delegado designará outro membro do Ministério Público para proceder a novas investigações ou para oferecer a denúncia perante o juiz de garantias;
Salvo em caso de recurso voluntário do ofendido ou de seu representante legal, a submissão da decisão de arquivamento ao órgão superior competente é dispensada quando estiver fundada em enunciado ou orientação de câmara de coordenação ou de centro de apoio operacional ou do próprio órgão revisor;
Após o arquivamento, os autos do inquérito policial, quando físicos, devem ser encaminhados ao cartório ou serventia do juízo de garantias, para acautelamento;
Os elementos probatórios recolhidos durante a investigação criminal na forma dos arts. 158-A e seguintes do CPP (“vestígios”) devem ser mantidos na central de custódia estadual, federal ou distrital;
Os bens apreendidos devem ter o encaminhamento previsto em lei, restituição, alienação antecipada ou destinação a órgãos públicos.
Não percamos de vista que, em função do princípio da unidade institucional do Ministério Público, esse organismo estatal é, ele mesmo, uno. Seu regime constitucional é o mesmo. As normas fundamentais e os princípios gerais que o regem são comuns aos quatro ramos do MPU e aos 26 MPs estaduais. Logo, as respectivas leis orgânicas são mutuamente aplicáveis, supletivamente, complementando-se reciprocamente naquilo que couber. O art. 80 da Lei 8.625/1993 o diz expressamente; a via inversa também é verdadeira.

Deste modo, a composição da LOMPU e da LONAMP, com o CPP, permite, construir a solução que ora oferecemos, sem necessidade de projeto de lei de iniciativa presidencial ou do PGR, para especificar o que já está no Estatuto do Ministério Público.

Em reforço a esta solução, temos claro que a Lei Anticrime não alterou o Código Eleitoral, de 1965, nem o Código de Processo Penal Militar, de 1969, nos dispositivos que atribuem aos chefes do MP eleitoral nos Estados, ao PGJM e aos PGJs a competência para decidir promoções de arquivamento de inquéritos policiais eleitorais ou de inquéritos policiais militares. Os dispositivos pertinentes (o art. 357, §1º, do CEl, e o art. 397, §1º do CPPM) podem ser aplicados analogicamente (art. 3º, CPP) à jurisdição comum para preenchimento da lacuna do art. 28 do CPP.

Caso o Procurador-Geral ou o órgão delegado considere improcedentes as razões invocadas para o arquivamento, designará outro órgão do Ministério Público para oferecer a denúncia ou para prosseguir na investigação, ou homologará a decisão de arquivamento, ao qual só então toda a instituição estará vinculada. A decisão também fecha a via da ação penal privada subsidiária da pública.

O CNMP pode incentivar a criação de colegiados em cada Ministério Público, com competência consultiva ou decisória, para a ratificação das decisões de arquivamento de inquéritos policiais. A lei orgânica nacional e em geral as estaduais permitem a delegação de atribuições do Procurador-Geral a outros órgãos do Ministério Publico[35], assim como a organização de assessorias. Pode ser admitida a criação de órgãos revisores nos Estados maiores, para enfrentar a carga concentrada de feitos arquivados subtendidos a homologação[36]. A regulamentação também deve prever a tramitação eletrônica dos procedimentos homologatórios e dos recursos voluntários pertinentes, para evitar custos com a movimentação de inquéritos físicos. Não há dúvida, porém, de que a atribuição para a decisão é do respectivo procurador-geral.

8. O DESARQUIVAMENTO DE INQUÉRITOS POLICIAIS: A NOVA LEITURA DO ART. 18 DO CPP

Dispõe o artigo 18 do Código de Processo Penal que:

Art. 18. Depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.

Juízes não determinam mais o arquivamento de inquéritos policiais e sequer despacham para isso[37]. O art. 18 do CPP é agora incompatível com o art. 28 do mesmo código, com a redação que lhe deu a Lei 13.964/2019.

O artigo 1º, § 1o da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942), diz que “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.”

Impõe-se a consequência jurídica da revogação tácita quando lei posterior for incompatível com lei anterior. In casu, o art. 18 do Código de Processo Penal foi parcialmente revogado pelo atual art. 28, com a redação estabelecida pela Lei 13.964/2019, pois não há mais despacho ou decisão judicial de arquivamento. Assim, agora ali se lê que, depois de ordenado o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia.

O delegado de Polícia pode realizar novas investigações, porque, mesmo antes da Lei 13.964/2019, o despacho judicial determinando o arquivamento do inquérito policial não interditava a atuação policial se houvesse notícia de novas provas. Não havia óbice à retomada das investigações pela Polícia diante de tal hipótese. O que a Súmula 524 do STF impede é o oferecimento de denúncia com base em inquérito policial arquivado a pedido do Ministério Público, sem que realmente haja provas novas. São momentos distintos, conforme se percebe deste julgado do STF:

A situação sob análise não é, como visto, a de oferecimento de denúncia após o desarquivamento de inquérito, mas de reabertura de inquérito. Para que ocorra o desarquivamento de inquérito, basta que haja notícia de novas provas, nos termos do art. 18 do Código de Processo Penal, enquanto não se extinguir a punibilidade pela prescrição. De fato, diante da notícia de novos elementos de convicção veiculada pelo Parquet, afigura-se admissível a reabertura das investigações nos termos da parte final do citado dispositivo do CPP, mesmo porque o arquivamento de inquérito policial não faz coisa julgada nem acarreta a preclusão, por cuidar-se de decisão tomada rebus sic stantibus (…) Convém registrar, ainda, que, se para desarquivar o inquérito policial basta a notícia de provas novas, diversamente, o Ministério Público só pode ofertar a denúncia se tiverem sido produzidas provas novas, nos termos da supramencionada Súmula 524 do STF.[38]

De fato, segundo a Súmula 524 do STF, “Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do Promotor de Justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas”. Agora é de se entender que, em tendo o Ministério Público competente arquivado o inquérito policial, a propositura da ação penal depende de novas provas, que serão avaliadas pelo juiz de garantias por ocasião do recebimento da denúncia. O juiz não intervém no arquivamento do inquérito; tampouco intervém no desarquivamento. A decisão depende do Ministério Público: quem arquiva o inquérito tem atribuição de desarquivá-lo.

A partir daí podemos divisar duas saídas: o desarquivamento será determinado pelo próprio promotor natural; ou o desarquivamento dependerá de autorização do órgão revisional. Em qualquer caso, não há mais formação de coisa julgada material ou formal quando do arquivamento, porque agora não se tem uma decisão judicial.

8.1. Desarquivamento por determinação do promotor natural

A melhor alternativa parece ser admitir a suficiência da decisão do promotor natural para o desarquivamento. O controle sobre seu agir caberá ao juiz de garantias, por ocasião da propositura da ação penal, ou antes ainda ao tribunal competente por meio de habeas corpus.

A decisão do promotor natural também poderia ser objeto de impugnação interna pelo investigado perante o órgão revisional do Ministério Público, sem prejuízo da impetração de habeas corpus perante o tribunal competente para trancamento da investigação criminal indevidamente reaberta.

Ou seja, no geral, o controle do desarquivamento é idêntico ao controle existente sobre a instauração de um inquérito. A persecução poderá ser retomada se houver novas provas, que são “aquelas já existentes, mas não trazidas à investigação ao tempo em que realizada, ou aquelas franqueadas ao investigador ou ao Ministério Público após o desfecho do inquérito policial”[39]. Também são consideradas novas provas as decorrentes de buscas e apreensões, interceptações telefônicas ou de outros meios especiais de obtenção, ainda que posteriores ao arquivamento.[40]

Sobre essa temática, vale conferir a percuciente explanação feita pelo ministro Lewandowski no HC 94.869/DF, julgado em 2014:

Enquanto o art. 18 regula o desarquivamento de inquérito policial, quando decorrente da carência de provas (falta de base para denúncia), só admitindo a continuidade das investigações se houver notícia de novas provas, a Súmula 524 cria uma condição específica para o desencadeamento da ação penal, caso tenha sido antes arquivado o procedimento, qual seja, a produção de novas provas. É certo, ademais, que o desarquivamento pode importar na imediata propositura da ação penal, se as novas provas tornem dispensável a realização de qualquer outra diligência policial. Mas isso não quer dizer que esses dois momentos – o desarquivamento e o ajuizamento da demanda – possam ser confundidos. Como salientei acima, para o desarquivamento é suficiente a notícia de novas provas, legitimando o prosseguimento das investigações encerradas pela decisão de arquivamento. Já a propositura da ação penal dependerá do sucesso destas investigações, isto é, da efetiva produção de novas provas. Sem tal requisito, faltará justa causa para a ação penal, devendo a denúncia ser rejeitada nos termos do artigo 43, III, do CPP. Desse modo, o desarquivamento do inquérito policial nada mais significa do que uma decisão administrativa, de natureza persecutória, no sentido de modificar os efeitos do arquivamento. Enquanto este tem como conseqüência a cessação das investigações, aquele tem como efeito a retomada das investigações inicialmente paralisadas pela decisão de arquivamento. Em resumo, sem notícia de prova nova o inquérito policial não pode ser desarquivado, e sem produção de prova nova não pode ser proposta ação penal. É evidente que o juiz poderá sempre rejeitar a denúncia do Ministério Público, com base no inquérito policial desarquivado, se ela não tiver arrimada em novas provas. Mas, para que estas novas provas sejam apresentadas, é preciso permitir a reativação das investigações, mediante o desarquivamento do inquérito, em face da notícia de novas provas.

A reabertura do caso também deve ser possível em face da superveniência de deliberação de organismo do sistema internacional ou regional de direitos humanos, especialmente nas hipóteses de sujeição do Brasil a jurisdições supranacionais obrigatórias.

Em suma, o membro do Ministério Público poderá reabrir a investigação criminal, de ofício ou por provocação, cabendo-lhe apenas comunicar o fato ao órgão revisor que antes homologara o arquivamento. As hipóteses são:

aparecimento de novos elementos informativos ou novas provas;
retratação da retratação da vítima: a doutrina e a jurisprudência admitem a retratação da retratação dentro do prazo decadencial, em assim sendo, é possível ao Ministério Público, diante da reconsideração da vítima, antes do termo final do prazo decadencial promover o desarquivamento;[41]
recomendação ou decisão de órgão do sistema internacional ou regional de direitos humanos.
8.2. Desarquivamento por determinação do órgão revisional do Ministério Público

Esta é a segunda tese. Como a decisão de arquivamento é um ato complexo, dependente do promotor natural e do órgão revisor, o desarquivamento deve seguir o mesmo caminho, não sendo possível ao promotor natural, isoladamente, a retomada da apuração, senão à instituição. Portanto, tendo em conta que o arquivamento se deu com a homologação, somente o órgão interno homologador pode desarquivar os autos, por provocação do promotor natural, da autoridade policial, da vítima ou de seu representante legal.

Esta solução pode parecer burocrática e soar inconstitucional por violação da independência funcional, mas, pensando dentro da estrutura acusatória, é preciso conferir alguma estabilidade à decisão de arquivamento proferida pela instituição, tendo em mente o valor segurança jurídica para o investigado cujo inquérito tenha sido arquivado por decisão desta mesma instituição.

O oferecimento de denúncia, com fundamento em base empírica existente em inquéritos policial arquivado, a pedido do Ministério Público, constitui constrangimento ilegal e viola o princípio constitucional da segurança jurídica, pois, se assim não for, o investigado a qualquer momento antes de consumado o prazo prescricional, poderá ser submetido a processo penal, independentemente de novas provas, o que é inadmissível, nos termos do art. 18 do Código de Processo Penal e do enunciado da Súmula 524 do egrégio Supremo Tribunal Federal.[42]

Esse modelo não impediria o desarquivamento dos autos para a propositura da ação penal. A provocação ao órgão superior do MP partiria do promotor natural, do delegado de Polícia ou da vítima, diante de mera notícia de novas provas ou pela superveniência de deliberação de organismo do sistema internacional ou regional de direitos humanos[43].

Este procedimento complexo poderia ser adotado ao menos para os casos nos quais, anteriormente, formava-se coisa julgada material, isto é, quando houvesse o reconhecimento de atipicidade material, excludente de ilicitude, excludente de culpabilidade, ou causa extintiva da punibilidade.[44]

O detalhamento desse mecanismo dependeria de lei ou, ao menos, de resolução do CNMP. Independentemente disto, a leitura atualizada da Súmula 524 do STF e do art. 18 do CPP decorre da nova redação do artigo 28 do Código de Processo Penal e, sobretudo, da entronização do princípio acusatório no processo criminal brasileiro, por força do art. 3º-A do CPP. Com isto, pode-se concluir que:

a autoridade policial pode empreender novas diligências, mesmo estando arquivado o inquérito, se tiver notícia de novas provas (art. 18, CPP).
o desarquivamento do inquérito pode ser ordenado pelo Ministério Público diante da notícia de novas provas;
a propositura da ação penal depende de novas provas ou pode resultar do cumprimento de decisão de órgão do sistema internacional ou Interamericano de direitos humanos.
9. O PAPEL DO JUIZ DE GARANTIAS NO ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL

Em função da criação da figura do juiz de garantias, será dele a competência para deferir as medidas de investigação marcadas por cláusula de reserva de jurisdição requeridas no curso do inquérito policial ou do PIC. Será este o juiz da audiência de custódia. Também será o juiz que receberá a comunicação da instauração de um inquérito policial. Será este o juiz encarregado da prorrogação do prazo de conclusão de inquérito quando houver indicado preso. Será também ele o magistrado responsável pelo recebimento ou pela rejeição da denúncia.

Mas, como já vimos, o juiz de garantias não intervém no arquivamento nem no desarquivamento desses procedimentos de investigação. Esta é agora uma atividade exclusiva do Ministério Público e da Polícia.[45]

Diz TEODÓSIO JACINTO, comentando a situação em Portugal:

Em face da actual estrutura acusatória do processo penal, ao contrário do que acontecia no anterior modelo inquisitório mitigado (CPP de 1929 e Dec-Lei no 35.0007, de 13-10-1945), não existe, agora, qualquer controlo judicial oficioso sobre a decisão do Ministério Público de acusar ou de proferir despacho de arquivamento.[46]

O juiz de garantias deverá, todavia, ser informado do arquivamento e do desarquivamento do inquérito policial, por força do inciso IV, do art. 3º-B, do CPP.[47] Os PICs do Ministério Público não foram objeto de regulamentação pela Lei Anticrime. As regras que se lhe aplicam são dispositivos legais esparsos, a Resolução 181/2017 do CNMP, atos equivalentes dos MPs brasileiros e o acórdão do STF no RE 593.727/MG.[48]

O juiz de garantias não tem mais competência para ordenar o arquivamento de inquérito policial. Tampouco pode trancá-lo ex officio, sendo inconstitucional a previsão constante do inciso IX do art. 3º-B do CPP, segundo a qual lhe cabe “determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento”.

Admitir-se o trancamento de inquérito com exame dos “fundamentos” para a instauração equivale a permitir ao juiz substituir-se ao Ministério Público ou à Polícia no diagnóstico do caso ou quanto ao êxito da linha investigativa adotada pelos investigadores. A discussão sobre a existência ou não de “fundamento razoável” para a abertura de um inquérito ou para sua continuidade está longe de constituir atipicidade patente ou ilegalidade manifesta. A expressão empregada pelo legislador foge dos lineamentos estabelecidos pelos tribunais para o fenômeno anômalo do trancamento, que é sempre excepcional, “somente admitido nas hipóteses em que se denote, de plano, a ausência de justa causa, a inexistência de elementos indiciários demonstrativos da autoria e da materialidade do delito ou, ainda, a presença de alguma causa excludente de punibilidade”[49].

Neste sentido, no HC 143.147/BA, julgado em 2016, a 6ª Turma do STJ reiterou que o trancamento de inquérito policial ou ação penal por meio de habeas corpus é medida excepcional, somente autorizada em casos em seja patente a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade e indícios da autoria ou a ocorrência de alguma causa extintiva da punibilidade[50]. Falar em “fundamento razoável” é, portanto, uma inovação que não tem lugar no quadro doutrinário e jurisprudencial.

Não sendo juiz investigador, o juiz de garantias não terá acesso à inteligência policial que orienta a investigação e que pode dar-lhe fundamento razoável. Não conhecerá as pistas que a Polícia segue para confirmar hipóteses investigativas. Não pode portanto formar um “juízo razoável” sobre a investigação que se pretende trancar.

Ademais, no regime anterior, o CPP não tinha qualquer previsão de trancamento de inquérito pelo juiz criminal. Admite-se sim o habeas corpus. Na verdade, o “trancamento” introduzido no art. 3º-B do CPP é um bypass no sistema acusatório, que retirou do juiz ingerência no arquivamento de inquéritos policiais. Trancamento não pode ser mero arquivamento com outro nome.

A invalidade desse dispositivo é ainda maior, tendo em conta que sequer se previu recurso próprio para a impugnação dessa medida, seja pelo Ministério Público, seja pela vítima. Nada se acresceu ao art. 581 do CPP, que regula o recurso em sentido estrito. Caberia ao Ministério Público valer-se da apelação, na forma do art. 593, inciso II, do CPP.[51]

No entanto, tendo em conta o inciso X do art. 581 do CPP, tem-se como hipótese que a decisão de trancamento de inquérito policial ordenada pelo juiz de garantias, na verdade, teria a natureza de ordem de habeas corpus, cabendo, neste caso, recurso em sentido estrito da decisão que o conceder. O inciso IX do art. 3º-B seria assim um complemento do inciso XII do mesmo artigo, que confere ao juiz de ganancias apenas a competência para julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia. A consequência desse julgamento pode ser o trancamento do inquérito.

É cabível o habeas corpus, com a finalidade de trancamento de inquérito policial em caso de atipicidade manifesta; quando o crime estiver prescrito ou houver outra causa extintiva de punibilidade; quando o investigado for inimputável pelo critério etário; ou ainda quando a investigação tiver base em provas ilícitas ou ilicitamente obtidas e isto for manifesto.

Note-se, contudo, que o juiz não terá competência para conceder habeas corpus para trancar inquérito policial, se este houver sido requisitado pelo Ministério Público. Neste caso, o ato da autoridade coatora deve ser impugnado perante o tribunal competente.

10. A VEDAÇÃO DE ARQUIVAMENTO PELO DELEGADO DE POLÍCIA

A Lei 13.964/2019 não alterou as atribuições dos delegados de Polícia na presidência do inquérito policial.

A Lei Anticrime deve ser lida em conjunto com a Lei 12.830/2013, cujo art. 2º, § 1º, determina que cabe ao delegado de polícia a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial, com o objetivo de apurar a materialidade e a autoria das infrações penais e suas circunstâncias.

As medidas ordinárias de investigação que não dependam de decisão do juiz de garantias, continuam sendo praticadas pelo delegado de Polícia, a exemplo da tomada de depoimentos e da requisição de perícias, informações, documentos e dados que interessem à apuração dos fatos.

A existência do juiz de garantias também não interfere sobre o indiciamento policial. Segundo o art. 3º, § 6º, da Lei 12.830/2013, o indiciamento, como ato privativo do delegado de Polícia, continua a depender de ato fundamentado com exame da autoria e da materialidade de uma infração penal e suas circunstâncias.

Quanto ao encerramento inconclusivo da investigação, manteve-se vigente o art. 17 do CPP, segundo o qual a autoridade policial não pode arquivar nem ordenar o arquivamento do inquérito. Todavia, em função do que dispõem a Lei 12.830/2013 e o art. 10, §1º do CPP, pode sugerir ao Ministério Público que o faça, se a investigação, por algum motivo, não conseguir determinar a autoria ou a materialidade de infração penal, ou se houver causa manifesta de extinção de punibilidade.

11. O ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITOS DE COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

A LC 75/1993 (LOMPU) e a Lei 8.625/1993 (LONAMP) reservam aos respectivos procuradores-gerais a atribuição para determinar o arquivamento de inquérito policial ou peças de informação relativos a fatos sujeitos à competência dos tribunais de justiça, dos tribunais regionais federais, dos tribunais regionais eleitorais, do STM, do STJ e do STF.

Assim, nos casos de foro especial por prerrogativa de função, o PGR, o PGJ e o PGJM já podiam arquivar diretamente inquéritos criminais, por serem de sua atribuição originária. Como reconhece o STF em sua jurisprudência, a decisão dos Chefes do Ministério Público não está sujeita a controle judicial. Para os inquéritos policiais militares esta faculdade está clara desde 1969 no §1º do art. 397 do CPPM[52].

Conforme Tourinho Filho sustentava:

(…) nem precisaria o Procurador requerer ao Tribunal o arquivamento. Se ele é o único dominus litis e se externou sua vontade no sentido de não dar início à ação penal, deverá, simplesmente, determinar o arquivamento. Por que o requereria, se tal requerimento não pode ser indeferido?[53]

De fato, mais de uma vez o STF decidiu que a promoção de arquivamento pelo PGR é irrecusável. No agravo regimental na PET 2509/MG, a Corte entendeu que “o pedido de arquivamento de inquérito policial, motivado pela ausência de elementos que permitam ao Procurador-Geral da República formar a opinio delicti, não pode ser recusado pelo Supremo Tribunal Federal”.[54]

Pelo art. 1º da Lei 8.038/1990, nos casos de foro especial por prerrogativa de função, o Procurador-Geral pode pedir o arquivamento do inquérito ou das peças informativas, cabendo ao relator, no termos do art. 3º, inciso I, da mesma lei, “determinar o arquivamento” quando o requerer o Ministério Público ou “submeter o requerimento à decisão competente do Tribunal”.

O novo art. 3º-A do CPP, que trouxe expressamente o princípio acusatório para a legislação infraconstitucional, passa a ter efeito irradiador, alcançando também a Lei da Ação Penal Originária. Doravante, o arquivamento do inquérito é uma decisão de competência exclusiva do Procurador-Geral, não podendo ser rejeitado pelo tribunal competente, estadual ou federal.

Mesmo a tramitação anômala dos inquéritos do foro especial deve sofrer impacto do princípio acusatório. Devido a um resquício inquisitório, tais inquéritos tramitam sob a “supervisão” de um ministro relator, o que fará ainda menos sentido depois da Lei Anticrime. O controle judicial sobre os atos da investigação, tenha curso onde tiver, deve restringir-se às medidas que exijam decisão judicial, em razão de cláusula legal ou constitucional de reserva de jurisdição, não se justificando a ingerência de ministros ou desembargadores relatores no deferimento de atos ordinários de investigação criminal, como a simples tomada de depoimentos ou a mera realização de perícias.

Os regimentos internos dos tribunais devem, portanto, adaptar-se ao novo art. 3º-A do CPP e à nova redação do art. 28 do mesmo código.

12. O ARQUIVAMENTO DE INQUÉRITOS NA JUSTIÇA MILITAR E NA JUSTIÇA ELEITORAL

O art. 3º-A do CPP terá impacto nos casos de competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral. Embora regidos por legislação especial, a persecução penal de crimes militares e crimes eleitorais está sujeita ao princípio acusatório, que foi densificado no ordenamento brasileiro, por extração a partir do art. 129, inciso I, da CF.

Não é de se estranhar essa solução, porquanto o STF já decidiu em semelhante sentido, quando foi modificado o art. 400 do CPP comum, para alteração do momento de realização do interrogatório do acusado. Com a Lei 11.719/2008, este ato passou a ser o último da instrução criminal no procedimento comum.

Por força de interpretação constitucional, no HC 127.900/AM[55], o STF estendeu a inversão da ordem do interrogatório aos processos penais militares e eleitorais, tendo em conta os princípios do contraditório e da ampla defesa. O interrogatório ficou como último ato da instrução também nos casos de competência originária, regulados pela Lei 8.038/1990, conforme decisão do STF na AP 1027.[56]

Interrogatório. Realização ao final da instrução (art. 400, CPP). Obrigatoriedade. Aplicação às ações penais em trâmite na Justiça Militar dessa alteração introduzida pela Lei nº 11.719/08, em detrimento do art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69. Precedentes. Adequação do sistema acusatório democrático aos preceitos constitucionais da Carta de República de 1988. Máxima efetividade dos princípios do contraditório e da ampla defesa (art. 5º, inciso LV). Incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso. Ordem denegada. Fixada orientação quanto a incidência da norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial, incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado. (…). Ordem denegada com a fixação da seguinte orientação: a norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum aplica-se, a partir da publicação da ata do presente julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado.

Mutatis mutandi, o art. 357, §1º, do Código Eleitoral, e o art. 397 do Código de Processo Penal Militar devem ser lidos de forma a excluir a intervenção de juiz na decisão de não acusar. Esta deliberação deve ser tomada pelos promotores eleitorais ou pelos promotores militares na forma do art. 28 do CPP, por analogia nesta parte. Os membros do Ministérios Público que atuem em zonas eleitorais ou em circunscrições militares devem submeter suas decisões de arquivamento ao órgão revisional do MPM, nos casos de competência da Justiça Militar da União; ao PGJ ou ao órgão delegado dos MPs estaduais, nos casos de competência da Justiça Militar dos Estados; ou à 2ª CCR do MPF, nos casos de competência da Justiça Eleitoral.[57]

13. O ARQUIVAMENTO DOS PROCEDIMENTOS INVESTIGATÓRIOS CRIMINAIS

O poder de investigação criminal do Ministério Público foi reconhecido pelo STF em julgamento histórico, no ano de 2015. Na ocasião, a Corte especificou que:

O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7º, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição.[58]

O arquivamento de procedimentos investigatórios do Ministério Público não foi objeto da Lei Anticrime. A matéria está regulada na Resolução 181/2017 do CNMP, que sofreu impacto legislativo, na medida em que o PIC será sempre arquivado dentro do próprio Parquet.

Como o CPP não regula a tramitação dos PICs, não é necessário o seu envio ao serviço do juiz de garantias para aposição da numeração única, no padrão do CNJ, ou para registro simplificado. Basta a anotação da sua existência no âmbito do próprio Ministério Publico, nos sistemas de tramitação eletrônica da instituição[59].

O art. 19 da Resolução 181/2017 do CNMP, com a redação que lhe deu a Resolução 183/2018, diz que o promotor natural pode “promover” o arquivamento dos autos ou das peças de informação, fazendo-o fundamentadamente. Leia-se agora que o órgão responsável pelo caso decidirá quanto ao arquivamento.

Conforme o §1º deste artigo, a “promoção de arquivamento” pode ser apresentada ao juízo competente, “nos moldes do art. 28 do Código de Processo Penal”, ou ao órgão superior interno responsável por sua apreciação, nos termos da legislação vigente. Agora, a decisão de não acusar deve ser submetida apenas ao “órgão superior interno” de cada Ministerio Público, isto é, ao Procurador-Geral ou ao órgão que tenha recebido sua delegação, ou a outro órgão previsto em lei.

Embora a Lei Anticrime não o diga, o arquivamento dos autos pelo Ministério Público deve ser comunicado à vitima e ao investigado e também ao juiz de garantias, para baixa dos registros judiciais, sempre que houver medidas cautelares vinculadas ao PIC.

Seu desarquivamento segue o disposto no art. 20 da Resolução 181. Havendo notícia da existência de novos elementos de informação, pode o membro do Ministério Público “requerer o desarquivamento dos autos”, providenciando-se a comunicação a que se refere o art. 5º da Resolução[60]. Onde se lê “requerer” leia-se “determinar”, salvo se o desarquivamento depender de decisão do órgão superior de revisão.

As notícias de fato também deverão ser arquivadas internamente, seguindo, no particular a Resolução CNMP 174/2017. O Enunciado nº 36 da 2ª CCR do MPF estabelece que, quando o arquivamento da notícia de fato, do procedimento investigatório criminal ou do inquérito policial for promovido com fundamento nas hipóteses previstas na Resolução CNMP nº 174, de 4 de julho de 2017, ou tiver por base entendimento já expresso em enunciado ou orientação da 2ª Câmara, os autos não deverão ser remetidos à 2ªCCR, salvo nos casos de recurso ou quando o membro oficiante julgar necessário, cientificando-se o interessado por correio eletrônico.

14. CONCLUSÃO

A nova redação do art. 28 do CPP consolidou o modelo acusatório na tramitação de inquéritos policiais, restringindo a participação do juiz criminal – nesta etapa chamado de juiz de garantias – a decisões marcadas por cláusula de reserva de jurisdição.

O juiz criminal não participa mais do procedimento de arquivamento ou de desarquivamento de inquéritos policiais. No entanto deve ser informado da instauração do inquérito, de seu arquivamento e de eventual desarquivamento.

O procedimento a ser adotado pelo Ministério Público para o arquivamento continua substancialmente o mesmo, cabendo ao Procurador-Geral ou a órgão delegado homologar, ou não, a decisão proferida pelo promotor natural.

Infelizmente, a afoiteza do processo legislativo promoveu alterações que não foram bem pensadas, acentuando-se a assistematicidade do CPP, que se já se aproxima do seu octogésimo aniversário. Todavia, a leitura do art. 28 do CPP, com o apoio analógico dos arts. 357, §1º, do Código Eleitoral, e do art. 397, §1º, do CPPM, em conjunto com os artigos pertinentes da Lei Complementar 75/1993 e da Lei 8.625/1993, permitirá ao CNMP, sem criar direito novo, aclarar o procedimento interno do Ministério Público no arquivamento e desarquivamento de inquéritos policiais. Regras adicionais podem ser estabelecidas pelos regimentos internos dos Ministérios Públicos.

Parte dos problemas logísticos decorrentes do art. 28 do CPP poderão ser solucionados com a tramitação eletrônica de inquéritos policiais e dos recursos e com a adoção de diretrizes uniformes em cada Ministério Público.

Nosso esforço neste texto consistiu em tentar contribuir para revelar algumas soluções possíveis para o novo modelo, suas bases legislativas e as linhas principiológicas nas quais se apoiariam. Certo que se espera a formulação de regulamentação pelo CNMP ou o aperfeiçoamento da legislação pelo Congresso Nacional ou a formação de jurisprudência supletiva neste campo novo. Espera-se também que a medida cautelar concedida na ADI 6305 seja cassada para que o novo procedimento passe a valer em todo o Ministério Público brasileiro.

[1] Membro do Ministério Público desde 1993, professor de ciências criminais e de direito internacional.

[2] Membro do Ministério Público desde 1999, professor ciências criminais e atualmente Procurador-Geral de Justiça de Pernambuco.

[3] STF, Pleno, Inq 2913 AgR / MT, rel. para o acórdão min. Luiz Fux, j. em 01/03/2012.

[4] RODRIGUES MAXIMIANO, Antonio. A Constituição e o processo penal: competência e estatuto do Ministério Público, do juiz de instrução e do juiz julgador: a decisão sobre o destino dos autos e os artigos 346º e 351º do C. P. Penal. Revista do MP, Lisboa, ano 2, Vol. 6, p. 97.

[5] Isto apesar de ter coexistido até 1988 com os procedimentos judicialiformes do art. 26 do CPP e da Lei 4.611/1965, que se podiam iniciar por portaria do juiz.

[6] Havia defensores da ideia de que já então a expressão “razões invocadas” daria abertura ao princípio da oportunidade da ação penal.

[7] Na jurisdição militar, onde atuam o MPM e os Ministérios Públicos dos Estados, há regra específica no Código de Processo Penal Militar (CPPM).

[8] É de se notar que no CPPM a decisão de arquivamento do IPM é inequivocamente do Procurador-Geral, com redação diversa do antigo art. 28, que usava a expressão “insistir no pedido de arquivamento”.

[9] O PRE é um órgão do MPF. Este procedimento foi derrogado pelo art. 62, IV, da LC 75/1993. Nos crimes eleitorais, a remessa passou a ser, não ao PRE nas capitais de cada Estado, mas à 2ª CCR em Brasília.

[10] RODRIGUES MAXIMIANO, Antonio. A Constituição e o processo penal: competência e estatuto do Ministério Público, do juiz de instrução e do juiz julgador: a decisão sobre o destino dos autos e os artigos 346º e 351º do C. P. Penal. Revista do MP, Lisboa, ano 2, Vol. 6, p. 97.

[11] As medidas consensuais do sistema dos Juizados Especiais, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, só são viáveis se não se tratar de hipótese de arquivamento do TCO, na forma do art. 76 da Lei 9.099/1995, combinado com o art. 28 do CPP.

[12] Dado o efeito irradiador do princípio geral do art. 3º-A do CPP, o novo rito do art. 28 do CPP deve aplicar-se a todo e qualquer inquérito, inclusive aos regidos por legislação especial.

[13] No sentido estrutural e orgânico, no plano institucional interno.

[14] Existem 7 câmaras no MPF, mas nem todas têm atribuição criminal. São elas a 2ª, a 4ª, a 5ª e a 7ª.

[15] Por meio de tal portaria, sedimentada na prática do MPF há mais de duas décadas, o então PGR Geraldo Brindeiro delegou competência aos Procuradores-Chefes das Procuradorias Regionais da República e das Procuradorias da República nos Estados e no Distrito Federal “para, no âmbito de sua atuação, designar membro do Ministério Público Federal para oficiar em processos submetidos a deliberação do Procurador-Geral da República nos termos do art. 28 do Código de Processo Penal, quando a manifestação conclusiva for pelo prosseguimento da apuração dos fatos ou oferecimento da respetiva denúncia”.

[16] Com a vigência da Lei 13.964/2019, este dispositivo não mais se aplica nesta parte, porque tinha como referência o antigo texto do art. 28 do CPP.

[17] Em relação aos inquéritos civis, há uma disciplina detalhada nas leis orgânicas. Seguindo o que determinam o art. 9º, §1º, da Lei 7.347/1985 e o art. 30 da Lei 8.625/1993, os estatutos estaduais estabelecem que a revisão das decisões de arquivamento dos inquéritos civis cabe, nos Estados, ao Conselho Superior de cada Ministério Público. Entendemos que estas disposições de processo civil não devem aplicar-se subsidiariamente a um tema de processo penal (arquivamento de inquéritos policiais), justamente pela diversidade temática.

[18] Na falta de previsão expressa, este órgão não deve ser o CSMP porque o inquérito civil e o inquérito policial têm atributos, princípios e finalidades distintas.

[19] Art. 80. Aplicam-se aos Ministérios Públicos dos Estados, subsidiariamente, as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União.

[20] Não trataremos aqui da polêmica sobre se o inquérito policial segue com a denúncia, após a deflagração da ação penal.

[21] Esta é uma das consequências da adoção do princípio acusatório e da criação do juízo de garantias: em todo o Brasil, o inquérito policial agora tramita diretamente entre as promotorias e procuradorias, de um lado, e as delegacias de Polícia, do outro lado. A prorrogação do prazo para investigações ser ajustará entre a Polícia e o Ministério Público , salvo no caso de investigado preso, quando cabe ao juiz de garantias autorizar a extensão de prazo para conclusão do inquérito (art. 3º-B, VIII, CPP).

[22] Num modelo ideal, existiriam varas de garantias ou juizados de custódia e garantias, com os necessários serviços de apoio judiciário.

[23] O arquivamento do PIC será sempre no Ministério Público, não existindo intervenção judicial na sua tramitação e encerramento. O art. 3º-B do CPP não faz referência aos PICs.

[24] O inquérito policial eletrônico já existe na Polícia Federal, tendo o nome de ePOL. Até o final de 2020, estará em todas as Delegacias de Polícia Federal.

[25] Segundo o art. 6º da Resolução CNJ 16/2008, “Os tribunais devem instituir critérios de consulta que facilitem o acesso às informações processuais, entre outros, pelo número do processo, nome das partes, nome do advogado, número de inscrição na OAB e número do procedimento investigatório perante o Ministério Público e as Polícias, sem prejuízo do sigilo dos processos sob segredo de justiça”.

[26] O art. 2º da Resolução 63, do Conselho da Justiça Federal, de 26 de junho de 2009, que trata da tramitação direta de inquéritos policiais, já dispõe sobre o registro simplificado nas varas federais dos inquéritos submetidos a tramitação direta. Veja:

Art. 2º. Os autos de inquérito policial, concluídos ou com requerimento de prorrogação de prazo para o seu encerramento, quando da primeira remessa ao Ministério Público Federal, serão previamente levados ao Poder Judiciário tão-somente para o seu registro, que será efetuado respeitando-se a numeração de origem atribuída na Polícia Federal.

§1º A Justiça Federal deverá criar rotina que permita apenas o somente o registro desses inquéritos policiais, sem a necessidade de atribuição de numeração própria e distribuição ao órgão jurisdicional com competência criminal.

§2º Após o registro do inquérito policial na Justiça Federal, os autos serão automaticamente encaminhados ao Ministério Público Federal, sem a necessidade de determinação judicial nesse sentido, bastando a certificação, pelo servidor responsável, da prática aqui mencionada.

[27] Segundo o inciso IV do art. 3º-B do CPP, o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal, competindo-lhe, entre outras coisas, “ser informado sobre a instauração de qualquer investigação criminal”.

[28] O estudo “Ministério Público: um retrato”, do CNMP, apurou que, em 2017, os MPs estaduais e o MPDFT arquivaram ou promoveram o arquivamento de 696.335 inquéritos policiais e ofereceram 830.280 denúncias. No mesmo período, 416.179 termos circunstanciados de ocorrência (TCO) foram arquivados nos Juizados Criminais dos Estados e do DF, com 132.344 denúncias e 195.010 transações penais ofertadas e realizadas. Por sua vez, em 2017, o MPF arquivou 38.031 inquéritos policiais e ofertou 19.091 denúncias, numa razão de 2:1, correspondendo os arquivamentos a 67,4% do total. Nos Juizados Especiais Federais, houve 379 arquivamentos, 226 transações penais e 204 denúncias. Já o MPM arquivou 2.009 casos e ofertou 1.130 denúncias em 2017. O total nacional foi de 1.152.933 inquéritos e TCOs arquivados contra 938.049 denúncias oferecidas. Esses números nacionais por si mostram que o Ministério Público é um dos filtros mais impactantes do sistema de justiça criminal e mostram a importância da boa governança da decisão de não acusar, em harmonia com o princípio da oportunidade da ação penal. Num universo de quase dois milhões e cem mil investigações criminais arquivadas ou convertidas em ações penais, foi de 55% o total de casos arquivados pelos ministérios públicos. BRASIL. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ministério Público: um retrato 2018. Brasília: CNMP, 2018. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/images/Publicacoes/documentos/2019/Anuário_um_retrato_2018_ERRATA_1.pdf.

[29] É fácil perceber que o art. 28 do CPP, tantas vezes invocado como um dos bastiões do princípio da obrigatoriedade da ação penal, deixou de sê-lo. Agora, com a Lei 13.964/2019, tem-se nele, sem nenhuma dúvida, mais uma regra que fundamenta a atividade discricionária do Ministério Público na persecução criminal.

[30] Vide também o art. 6º, IV, da Resolução 20, de 6 de fevereiro de 1996, do Conselho Superior do MPF.

[31] Em caso de arquivamento, o art. 4º, §§1º e 3º da Resolução CNMP 174/2017 prevê recurso voluntário do noticiante ao Conselho Superior do Ministério Público dos Estados ou às Câmaras de Coordenação e Revisão do MPU. O art. 6º contém regra específica para notícias-crime.

[32] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Enunciados da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, Brasília, 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/enunciados. Acesso em: 02.01.2020.

[33] MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Orientações da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão, Brasília, 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/orientacoes. Acesso em: 02.01.2020.

[34] STF, Pleno, RE 593.727/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 14.05.2015.

[35] Vide os arts. 10, inciso VIII, e 29, inciso IX, da Lei Federal 8.625/1993. Vide também o art. 50 da Lei Complementar 75/1993.

[36] Segundo o estudo “Ministério Público: um retrato”, em 2018 os membros do Ministério Público paulista arquivaram 182.441 inquéritos policiais. No Rio de Janeiro foram 196.609 arquivamentos. O MPDFT arquivou 37.921 inquéritos no mesmo ano. O MPF decidiu não denunciar em 39.976 inquéritos. A partir de 23 de janeiro de 2020 todos os novos casos terão de ser submetidos ao órgão interno de revisão. No regime anterior, muitos arquivamentos não subiam aos PGJs ou às Câmaras Criminais; bastava que houvesse concordância do juiz. Vide CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Ministério Público: um retrato. Brasília: CNMP, 2020. Disponível em: https://cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/mp-um-retrato. Acesso em: 02.01.2020.

[37] A providência cartorária em relação aos autos não tem conteúdo decisório.

[38] STF, HC 94.869/DF, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 26.06.2013.

[39] STJ, 5ª Turma, RHC 27.449/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. em 28.02.2012.

[40] STJ, 6ª Turma, EDcl no HC 364.823/SP, Rel. Min. Néfi Cordeiro, j. em 29.11.2016.

[41] STJ, AgRg no REsp 1131357/DF, j. em 05.11.2013.

[42] Decisão da 1ª Câmara Criminal do TJPR, no HC 825907-6, Rel. Des. Jesus Sarrão, j. em 01.12.2011, que trancou a ação penal proposta contra o suposto autor do homicídio de Sétimo Garibaldi, na comarca de Loanda/PR.

[43] Vide, a propósito, o caso Sétimo Garibaldi vs. Brasil (Corte IDH, 2009) e seus desdobramentos processuais, especialmente o RESP 1.351.177/PR (STJ, 6ª Turma, rel. Des. convocado Ericson Maranhão, j. em 18.04.2016), no qual não foi possível rediscutir o trancamento da ação penal determinado pelo TJPR. Noutro caso do sistema interamericano, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro retomou as apurações das chacinas de 1994 e 1995 objeto da sentença da Corte IDH no caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, de 2017. Em 2018, o MPRJ pediu o desarquivamento do inquérito e denunciou os supostos autores dos crimes de homicídio. O caso é objeto do RHC 46.250/RJ, que foi denegado pela 5ª Turma do STJ (rel. Min. Joel Paciornik, j. em 24.08.2018), o que permitiu a continuidade da ação penal.

[44] Salvo por certidão de óbito falsa.

[45] Vide a Lei 12.830/2013.

[46] JACINTO, F. Teodósio. O modelo de processo penal entre o inquisitório e o acusatório: repensar a intervenção judicial na comprovação da decisão de arquivamento do inquérito. Disponível em: https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2009/06/dtopenalprocesso_teodosiojacinto.pdf. Acesso em: 29.12.2019.

[47] Vide a Resolução 63, do Conselho da Justiça Federal, de 26 de junho de 2009, que dispõe sobre a tramitação direta de inquéritos policiais entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal e estabelece um regime de registro simplificado de tais inquéritos.

[48] STF, Pleno, RE 593.727/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 14.05.2015.

[49] FERREIRA, Aline Albuquerque. Inquérito policial: considerações acerca do arquivamento e trancamento do inquérito policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4514, 10 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44369. Acesso em: 5 jan. 2020.

[50] STJ, 6ª Turma, Rel. Des. Convocado Ericsson Maranhão, j. em 17.03.2016.

[51] Art. 593, II, CPP: “Caberá apelação no prazo de 5 (cinco) dias, das decisões definitivas, ou com força de definitivas, proferidas por juiz singular nos casos não previstos no Capítulo anterior”.

[52] §1º Se o procurador-geral entender que há elementos para a ação penal, designará outro procurador, a fim de promovê-la; em caso contrário, mandará arquivar o processo.

[53] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 22.ed. Vol. I, São Paulo: Saraiva, 2000.

[54] STF, Pleno, PET 2509/MG, Rel. Min. Celso de Mello, j. em 18.02.2004.

[55] STF, Pleno, HC 127.900/AM, Rel. Min. Dias Toffoli, j. em 03.03.2016.

[56] STF, Pleno, AP 1027 AgR / DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 02.10.2018.

[57] Enunciado nº 29: Compete à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal manifestar-se nas hipóteses em que o Juiz Eleitoral considerar improcedentes as razões invocadas pelo Promotor Eleitoral ao requerer o arquivamento de inquérito policial ou de peças de informação, derrogado o art. 357, §1º do Código Eleitoral pelo art. 62, inc. IV da Lei Complementar nº 75/93.

[58] STF, Pleno, RE 593.727/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 14.05.2015.

[59] Diz o art. 4º da Resolução CNMP 181/2017 que o procedimento investigatório criminal “será instaurado por portaria fundamentada, devidamente registrada e autuada”.

[60] Art. 5º. Da instauração do procedimento investigatório criminal far-se-á comunicação imediata e, preferencialmente, eletrônica ao Órgão Superior competente, sendo dispensada tal comunicação em caso de registro em sistema eletrônico. 

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