por Vladimir Aras
Às vezes é difícil acompanhar a lógica do Supremo Tribunal Federal. Já bloguei aqui sobre o entendimento do STF, firmado no Inquérito 1145/PA, de que cola eletrônica é fato atípico, não é crime. Foi no post “Se colar, colou“. Leia-o aqui.
O resumo é o seguinte:
“Fraudar vestibular, utilizando-se de cola eletrônica (aparelhos transmissor e receptor), malgrado contenha alto grau de reprovação social, ainda não possui em nosso ordenamento penal qualquer norma sancionadora” (STF, Inq 1145/PA, Tribunal Pleno, Rel. Orig.: Maurício Corrêa, Rel. p/ acórdão: Gilmar Mendes, DJU de 04/04/08).
Para o STF e o STJ, a cola – ou a “pesca” como dizemos em baianês – não seria nem estelionato (art. 171 do CP) nem falsidade ideológica (art. 299 do CP). O Ministério Público já processou várias pessoas Brasil afora pelos citados crimes e sempre deu com a cara na porta. Ou esses promotores e procuradores não estudaram Direito (ou direito não estudaram?), ou colaram no vestibular. Que feio não saber que isto não é crime…
Infelizmente, algumas decisões do STJ, que se diz o “Tribunal da Cidadania”, e do STF, guardião maior da Constituição, parecem legitimar uma ética torta: os “direitos” de mentir, de fugir, de usar falsa identidade e de colar são corriqueiramente reconhecidos por esses tribunais. O cidadão de bem assiste atônito a essa fieira de absurdos que são a versão judicial da Lei de Gerson, concentrando esse novo Bill of Rights de Ibirapitanga no direito fundamental “de-sempre-se-dar-bem”. Certo? (aqui caprichem no sotaque).
Para o STJ, a cola eletrônica também não é crime. Veja, por exemplo, o HC 39.592/PI, relatado pelo desembargador convocado Haroldo Rodrigues, da 6ª Turma, e julgado em 19/nov/2009.
Neste mês de março/2011, o tema voltou ao STF em dois processos distintos. No primeiro, uma mulher do Estado de São Paulo foi denunciada pelo MPF por estelionato em razão de pesca eletrônica praticada num concurso para o cargo de auditor fiscal da Receita Federal. Agora ela pede ao STF, na Reclamação 11470, a anulação da ação penal por atipicidade do fato, porque o TRF-3 teria afrontado o entendimento do STF assentado no Inquérito 1145/PA ao mantê-la como ré. O relator é o ministro Dias Toffoli.
No outro caso, referente ao mesmo concurso público federal, um homem acusado de cola eletrônica impetrou o HC 107.613/SP para anular a decisão que o manteve preso pelo crime de estelionato. O ministro Dias Toffoli, que também relata este caso, aplicou a Súmula 691 do STF à impetração e não conheceu o HC a fim de evitar a supressão de instâncias.
A decisão do ministro Dias Toffoli não convence. E digo o porquê. Ora, ora, se o STF já decidiu que a cola eletrônica não é crime (Inquérito 1145/PA), este seria um caso de evidente ilegalidade da prisão do paciente, autorizando o afastamento da Súmula 691, e o imediato trancamento da ação penal com a soltura do réu.
Não torço para que os autores deste tipo de fraude escapem impunes. Porém, é preciso alguma coerência. Se o STF já disse que o pesque-pague eletrônico não é crime, qualquer pessoa que esteja hoje presa no Brasil por tal conduta estará presa “indevidamente”.
O não conhecimento do HC 107.613/SP pelo STF põe novamente na berlinda a tal Súmula 691 que teoricamente (adianto explico) impede o salto de instâncias. Diz ela:
Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de ‘habeas corpus’ impetrado contra decisão do relator que, em ‘habeas corpus’ requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar“.
Serve este enunciado, aprovado em 2003, para evitar a impetração de HCs australianos, os que dão saltos extraordinários de uma instância à outra, sem esgotamento do debate nos órgãos judiciários inferiores. O STF só pode apreciar tais matérias quando já esgotada a discussão de mérito nas instâncias de base e intermediárias.
No caso do homem processado em Santos/SP, a defesa impetrou HC no TRF-3 e teve pedido de liminar negado. Imediatamente, entrou com outro HC no Superior Tribunal de Justiça, mesmo sem o exame do mérito no TRF, e também não obteve liminar. Depois, impetrou novo HC, desta vez no STF. Essa saltitância processual você já viu noutros casos. Mas o ministro Toffoli observou:
“Não há o que ser censurado nessa decisão [do STJ]. Percebe-se que o habeas corpus não foi conhecido pelo STJ porque as questões nele levadas para discussão – e trazidas no presente writ – não teriam sido objeto de análise de forma definitiva por aquele TRF. Com efeito, a apreciação desses temas, de forma originária, neste momento, configuraria verdadeira dupla supressão de instância não admitida“.
Não reclamo da aplicação da súmula, pois seu fundamento parece correto. Contudo, há uma certa incoerência no ar. O paciente daquele HC está preso desde 17 de dezembro de 2010, quando foi denunciado por estelionato (art. 171 do CP) e formação de quadrilha (art. 288 do CP).
Casos criminais bem menos controvertidos do que este foram resolvidos de logo pelo STF, com o afastamento da Súmula 691. Cito dois deles: o de Paulo Maluf, preso em 2005 e solto cerca de 40 dias depois por uma liminar concedida pelo STF (HC 86.864/SP, rel. Carlos Velloso); e Daniel Dantas, preso duas vezes em 2008 e solto em ambas as ocasiões pelo STF (HC 95.009/SP, rel. Eros Grau) em liminares. Em ambos, o obstáculo da citada súmula não foi considerado, e a Corte examinou o mérito dos HCs.
A flexibilização do enunciado começou em 2005. Ao julgar o HC 85.185/SP (rel. min. Cezar Peluso) impetrado em favor de Roberto Justus, o plenário do STF rejeitou a proposta de cancelamento da Súmula 691, mas reconheceu a possibilidade de reinterpretação do seu texto para a hipótese de flagrante constrangimento ilegal ou abuso de poder e, com base neste entendimento, determinou o trancamento da ação penal proposta contra o empresário e apresentador.
Se para o STF a cola eletrônica é fato atípico, seria “republicano” (tem gente que adora esse adjetivo…) dar aos fraudadores de concursos o mesmo tratamento que receberam esses outros brasileiros. Por pura isonomia.
Fico com duas esperanças:
1.Que o STF reexamine a questão da tipicidade da cola eletrônica. A prática prejudica milhares de concurseiros e lesa também a Administração Pública. Pode, sim, ser classificada como crime de estelionato.
2.Que o STF seja coerente na aplicação da Súmula 691. Ou vale para todo mundo, ou não vale para ninguém….