Por Vladimir Aras
São uns bárbaros esses norte-americanos.
A Promotoria de Los Angeles (Los Angeles County Disctrict Attorney) acusou o médico Conrad Murray de homicídio culposo pela morte de Michael Jackson. O inigualável rei do pop faleceu em junho de 2009, devido a uma intoxicação aguda provocada pelo anestésico propofol. Julgado pelo júri, Murray foi condenado esta semana (7/nov). De lá, saiu preso e algemado. Este caso permite apontar algumas diferenças entre o processo penal nos Estados Unidos e no Brasil:
1. Na maior parte dos Estados americanos, o júri é formado por 12 cidadãos, que podem debater livremente as teses das partes antes de julgar a causa. Seus votos não são secretos e os jurados decidem por unanimidade. Os jurados do caso Murray anunciaram seus votos em público, um por vez. Já aqui, sete jurados compõem o conselho de sentença. Seus votos são secretos e a decisão é adotada por maioria. Os julgadores populares ficam incomunicáveis, isto é, decidem sozinhos, sem discussão da causa entre eles ou com terceiros.
2. No Brasil, somente crimes dolosos contra a vida (homicídio; infantício; aborto; e induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio) são julgados pelo júri. Os demais delitos são decididos pelos juizes criminais, chamados togados ou singulares. Portanto, se ocorresse aqui, o julgamento de Murray caberia a um juiz de Direito, sem a participação de jurados. Nos Estados Unidos, a regra é o julgamento pelo júri, em casos criminais e também em causas cíveis.
3. O réu no Brasil é sempre interrogado. Este interrogatório ocorre ao final da instrução criminal, nos termos do art. 400 do CPP — a propósito, no HC 107.795/SP, o min. Celso de Mello decidiu que tal disposição do CPP também se aplica ao processo penal eleitoral. Além disso, neste País, o réu tem o direito de permanecer em silêncio ou pode mentir ao juiz. Eu acho que não pode, mas, quem sou eu, se o STF diz que sim… (HC 75.257/RJ). Já nos Estados Unidos, o interrogatório só ocorre com a concordância da defesa e por iniciativa desta. Se o réu depuser, faz isto como testemunha e presta o compromisso legal de dizer a verdade. Se mentir, comete o crime de perjúrio (perjury), conforme o art. 118 do CP californiano, que prevê penas de até 4 anos de detenção. Murray preferiu não depor. Aqui teria de fazê-lo.
4. Veredicto e sentença são imediatos nos júris do Brasil. Os jurados dão o veredicto respondendo a um questionário burocrático, e o juiz togado sentencia. O réu sai do plenário sabendo se foi absolvido ou condenado e já conhece sua pena. Em regra, o juiz brasileiro decide no escuro sobre a quantidade da pena, pois não há procedimento específico para apurar as circunstâncias judiciais do art. 59 do CP e fazer a adequada dosimetria da pena-base. Nos Estados Unidos, o júri dá o veredicto (verdict) de culpado (guilty) ou inocente (not guilty) em votos livres; o resultado é anunciado no plenário e dias depois o juiz togado profere a sentença (sentencing), se condenatória. Neste interregno, o juiz criminal americano ouve as partes e a família da vítima sobre a dosimetria da pena e colhe informações do estabelecimento prisional e de outros órgãos públicos sobre a personalidade do réu, seu comportamento e conduta.
5. A pena do crime de homicídio culposo no Brasil é de 1 a 3 anos, segundo o art. 121, §3°, do CP. Se a morte resultar de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, a pena pode ser aumentada de um terço. Logo, a sanção para homicídio culposo por erro médico pode chegar a, no máximo, 4 anos de detenção. Mesmo neste caso, o réu tem direito a substituição da pena de prisão por sanções alternativas, como prestação de serviços à comunidade e multa (art. 44, inciso I, do CP). Nos Estados Unidos, uma verdadeira federação, as penas variam de Estado para Estado. Na Califórnia, onde o crime ocorreu, o delito de involuntary manslaughter, previsto no art. 192 (b) do Código Penal, é de no máximo 4 anos de prisão e multa de até 10 mil dólares, ou suspensão da execução da sentença condenatória sob certas condições (probation).
6. Por lá, a execução penal não alcança os padrões europeus, mas as prisões são mais “decentes” que as nossas. A tortura é rara. As condições de habitabilidade e de alimentação e saúde dos presos são muito melhores que o que temos nos calabouços brasileiros. O sistema penitenciário do Brasil é um pesadelo à parte, entre os problemas da Justiça criminal. As prisões por aqui são aterrorizantes e desumanas. Não há comparação possível.
7. Em regra, nos Estados Unidos, ao ser condenado pelo júri, o réu é mantido preso ou imediatamente detido. A prisão é uma consequência lógica da condenação. Os juízes criminais americanos podem fixar fiança (bail) para que o réu recorra em liberdade, ou podem decretar sua prisão cautelar (remand). Se for preso, o réu pode ser algemado. Aqui é diferente. Segundo a súmula vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal, o uso de algemas no Brasil é limitado a casos especiais, sob pena de nulidade do processo e punição da autoridade policial.
8. Nos EUA, ao ser condenado o réu perde sua presunção de inocência. O devido processo legal, com o contraditório e a ampla defesa, foi cumprido. A execução da pena começa imediatamente após a confirmação da sentença pelo tribunal de apelação (segundo grau). Aqui isto também é diferente. O STF decidiu que no Brasil uma pessoa pode recorrer em liberdade até cansar (HC 84.078/MG). Por meio de uma infinidade de recursos-centopeia (veja aqui o que é isto), o acusado terá acesso quase irrestrito às quatro instâncias da Justiça criminal brasileira, e não apenas ao “duplo grau”, como é a regra no direito comparado. Isto significa que uma sentença condenatória proferida após o cumprimento de todas as formalidades legais é um zero à esquerda, pois não altera em nada a presunção de inocência. Em nosso País, este “estado” é mais intangivel que o éter; mais indestrutível que o “adamantium”. Viva o réu!
9. Para piorar, tem o relógio. Do começo ao fim, o caso Murray foi investigado e decidido em 2 anos e 5 meses. Por aqui — e não estou falando só da Bahia, hein? — a demora das ações criminais é grande fator de impunidade, tal como se viu, por exemplo, no abominável caso do Pimenta Neves (comentei-o no post E assim passaram 10 anozzzzzzz, aqui) e no processo do jogador Edmundo Alves de Souza Neto, o “Animal” que matou três pessoas, foi condenado a 4 anos e 6 meses de detenção (!), mas ficou numa boa, porque o tempo passou e seu crime prescreveu (STF, AI 794.971). No caso Kalume, o dos quatro “médicos” de Taubaté/SP que transformaram um hospital num açougue para fornecimento de rins para transplantes, o júri ocorreu 25 anos depois do crime! Onde já se viu isto? Quatro crimes de homícidio doloso foram cometidos em 1986! Depois dessa geração de espera, um dos acusados morreu. Seu julgamento agora cabe a “vocês-sabem-quem”. Os demais foram condenados aqui na Terra mesmo a 17 anos e 6 meses pelas quatro mortes (as quatro!), e, claro, poderão recorrer em liberdade. Marque aí no cronômetro quanto esse caso ainda vai demorar.
10. Comparado a seus pares brasileiros, Conrad Murray é um anjinho. Se tivesse matado alguém no Brasil, o dr. Murray poderia ser condenado. Mas dificilmente cumpriria sua pena. Casos muito piores resultaram em impunidade. Basta lembrar que o “médico” Roger Abdelmassih, dono de uma clínica de horrores onde 56 pacientes foram estupradas, permaneceu em liberdade durante o processo, pois mereceu (sic) uma liminar em habeas corpus do STF (HC 102.098/SP). Foi solto e deu no pé. Dizem que está no Líbano. Se tiver cidadania libanesa, dificilmente será extraditado para o Brasil. Depois de sua condenação a 278 anos de prisão, o STF cassou a liminar que o libertara, mas aí já era … tarde.
O cenário de impunidade é este. Enquanto isto, a criminalidade violenta assusta o País inteiro. Juízes, membros do MP e policiais são mortos ou ameaçados. O Congresso aprova leis relaxadas. Os tribunais superiores são bonzinhos com autores de crimes graves. A bandidagem fica tranquilona. E os cidadãos vivemos anestesiados. Tirando as marchas em favor da maconha e esta esdrúxula invasão da USP em defesa da mesma “causa”, ninguém protesta. Parece que o Brasil tomou propofol na veia.