Por Vladimir Aras
A liberdade de expressão das autoridades do sistema de Justiça é um tópico complexo da deontologia dos cargos de promotor, procurador e juiz.
O princípio 8 das Regras de Havana de 1990, das Nações Unidas, no seu espaço de soft law, dispõe que:
Os magistrados do Ministério Público gozam, como os outros cidadãos, das liberdades de expressão, convicção, associação e reunião. Em particular, têm o direito de participar no debate público de questões relativas à lei, à administração da justiça e à promoção e proteção dos direitos humanos, e o direito de constituir ou de aderir a organizações de âmbito local, nacional e internacional e de comparecer às suas reuniões, sem serem prejudicados em virtude da sua atuação lícita ou da sua filiação numa organização lícita. No exercício destes direitos, os magistrados do Ministério Público deverão comportar-se sempre em conformidade com a lei e com as normas deontológicas e éticas reconhecidas da sua profissão.
Um importante precedente da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH) pode ajudar a lançar luz sobre o tema.
Em 5 de maio de 2020, a CEDH, que tem sede em Estrasburgo, na França, julgou o caso de Laura Kövesi, que foi procuradora-chefe da Direção Nacional Anticorrupção (DNA) da Romênia de 2013 até 2018, quando foi afastada do cargo pelo governo da Romênia, antes do fim do seu mandato.
Kövesi v. Romania: Inability of Chief Prosecutor to effectively challenge premature termination of mandate: violation
Kövesi é agora a Procuradora Europeia, chefe do European Public Prosecution Office (EPPO), uma das mais novas agências supranacionais da União Europeia, com sede em Luxemburgo, competente para a persecução de crimes que atingem os interesses da comunidade.
Nesse importante julgado, a Corte Europeia considerou que a exoneração de Laura Kövesi da função de procuradora-chefe da Direcţia Naţională Anticorupţie (DNA) da Romênia violou a Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Seu mandato foi interrompido em 2018 pelo governo romeno, antes do termo. A Corte afirmou ter havido violação do direito à liberdade de expressão, garantido pela Convenção, já que sua demissão teria sido uma represália a suas posições públicas sobre reformas legislativas e sobre decisões da Corte Constitucional romena, que, na visão de Kövesi, enfraqueceriam a Justiça e a capacidade institucional de luta contra a corrupção.
Considerou-se também ter havido violação à independência do Ministério Público e, reflexamente, à independência do Judiciário especialmente na agenda contra a corrupção, atividade primordial da DNA romena. Naquele país, o Ministerul Public integra o Judiciário e estão sujeitos à mesma legislação que os juízes. Segundo o §79 da sentença, “procuradores e juízes têm o mesmo status constitucional (magistraţi).”
Por fim, o tribunal em Estrasburgo entendeu que a exoneração prematura de Kövesi teve efeito dissuasivo da participação de membros do MP e juízes no debate público sobre reformas legislativas que possam afetar suas atividades funcionais e minar a independência do Judiciário.
Firmou-se na Corte a posição unânime de que a Romênia violou o direito de acesso à justiça, para impugnação da exoneração pelo mérito (art. 6.1 da Convenção), e da liberdade de expressão daquela autoridade do Ministério Público (art. 10), e que a demissão “não buscou um fim legítimo e não era necessária numa sociedade democrática”.
Para Estrasburgo, houve denegação de acesso à Justiça por faltar remédio judicial efetivo para discutir-se a alegação de Kövesi de que sua exoneração foi uma sanção disciplinar ilegal imposta em função das opiniões que ela expressou sobre reformas legislativas em curso. A impugnação efetiva exigiria o exame do mérito e da “legalidade interna” do ato pelos tribunais romenos.
Para a Corte supranacional europeia, as opiniões e declarações da procuradora Kövesi não continham ataques a outros membros do sistema de justiça romeno, nem eram críticas à atuação do Judiciário em processos pendentes. Eram “meras críticas de uma perspectiva estritamente profissional”.
Assim, as declarações de Kövesi, em debates sobre questões de grande interesse público, “exigiam um alto grau de proteção à sua liberdade de expressão e um escrutínio rigoroso de qualquer interferência, com uma margem de apreciação mais estreita concedida ao Estado demandado.” Uma das críticas de Kövesi centrava-se na Medida Provisória 13/2017 que alterou drasticamente dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal locais que puniam certos crimes contra a Administração Pública, inclusive o delito de abuso de funções.
Posteriormente, no mesmo ano, o governo romeno anunciou a reforma da lei orgânica do Judiciário e do Ministério Público, da lei de organização judiciária e da lei do conselho nacional que realiza o controle das duas magistraturas, todas de 2004, o que provocou novas críticas públicas de Kövesi e de outros stakeholders.
Para a CEDH, Kövesi não dispunha de um recurso interno, na legislação romena, para impugnar efetivamente em juízo o que realmente pretendia contestar, a saber, os motivos da sua exoneração do cargo de procuradora-chefe anticorrupção (DNA).
Não basta a possibilidade de revisão judicial meramente formal do decreto de exoneração; é preciso haver também a faculdade de exame da adequação dos motivos do ato, da relevância dos fatos alegados para sua expedição ou do cumprimento das condições legais para sua validade. É o que afirmou o tribunal.
Sua exoneração e as razões invocadas “dificilmente se compatibilizam com a natureza da função judicial como um ramo independente do poder do Estado e com o princípio da independência do Ministério Público, que é elemento essencial para a manutenção da independência judicial.”
Kövesi foi destituída da função a pedido do então ministro da Justiça Tudorel Toader, em 2018, sob a alegação da prática de “atos e fatos incompatíveis com a legalidade” e por suas constantes entrevistas para meios de comunicação nacionais e internacionais, que “enxovalhavam o Judiciário”. Em um relatório enviado em 2018 ao conselho da magistratura (CSM) sobre a gestão da DNA, Toader alegou:
In view of the above-mentioned elements it has been overwhelmingly proved that the chief prosecutor of the DNA, through all the facts presented here, has exercised and is currently carrying out her role in a discretionary manner, turning the anti-corruption activities and the DNA away from their constitutional and legal role. For these facts, intolerable in a State of the rule of law, I am hereby putting in motion the procedure for the removal of [the applicant] from her position as chief prosecutor of the DNA on the basis of Article 54(4) taken together with Article 51(2) letter b of Law no. 303/2004 on the status of judges and prosecutors.
O Consiliul Superior al Magistraturii (CSM) rejeitou a proposta do ministério da Justiça, e o presidente romeno não exonerou Kövesi da chefia da DNA. No entanto, o primeiro-ministro do país instaurou um conflito de atribuições na Corte Constitucional, que em junho de 2018 decidiu em favor da posição do ministro da Justiça e determinou que o presidente romeno exonerasse a procuradora-chefe.
Portanto, segundo a Corte Europeia, a exoneração de Kövesi pelo governo romeno desviou-se da finalidade de preservação da independência do Judiciário.
Além disso, a rescisão prematura foi uma “sanção particularmente severa”, tendo o “chilling effect” de inibir ou desencorajar não apenas ela, mas também outros promotores e juízes a participar no debate público sobre reformas legislativas que possam afetar o Judiciário e sua independência.
A decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos contribui não apenas para a garantia da liberdade de expressão qualificada em tempos conturbados. Além disso, o julgado da CEDH também promove a independência e a autonomia dos órgãos estatais de Justiça naquele continente e mais além, em face de interferências políticas indevidas, diretas ou indiretas nas suas atividades, inclusive nos procedimentos de nomeação e destituição dos mais altos cargos do Judiciário e do Ministério Público.
No contexto de Kövesi vs. Romênia, e tendo em conta o diálogo de cortes, pode-se afirmar que a participação de membros do Ministério Público e do Judiciário – e também da Defensoria Publica – no debate público de temas nacionais atinentes ao Estado de Direito, à proteção dos direitos fundamentais e ao adequado desempenho de suas funções jurisdicionais e parajurisdicionais não pode ser obstado por lei ou por ameaça de represálias disciplinares que não tenham um fim legítimo, à luz da Constituição, das convenções de direitos humanos e do soft law pertinente.