Em um caso julgado em 13 de fevereiro de 2024, a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que a Grécia não cumpriu a obrigação positiva de investigar adequadamente um estupro, conforme determinam os artigos 3º e 8º da Convenção e a jurisprudência do Tribunal.
O caso X. vs. Grécia diz respeito às alegações da requerente, uma cidadã britânica identificada como X, de que as autoridades gregas não cumpriram o dever convencional de conduzir uma investigação criminal efetiva após ser ela estuprada em 2019, enquanto fazia turismo em Parga, na costa jônica da Grécia.
A notícia-crime apresentada pela vítima foi arquivada a pedido do Ministério Público grego, que não viu indícios suficientes da prática de estupro pelo suspeito, um barman de um hotel que a vítima e sua mãe haviam frequentado durante sua estada.
Para a Corte em Estrasburgo a Grécia não observou os direitos de X como vítima de violência de gênero e não evitou sua revitimização, como lhe cabia, conforme os standards internacionais, entre os quais destaco:
- a) a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 40/34, de 29 de novembro de 1985;
- b) a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, concluída em Istambul em 2011, da qual a Grécia é parte; e
- c) a Diretiva da União Europeia sobre Direitos da Vítimas (Diretiva UE 2012/29), que já havia sido transposta para o direito interno grego no momento dos fatos.
No curso do procedimento grego, foram violadas o direito da vítima à informação, seu direito a assistência psicológica, o direito a um intérprete confiável, o direito de não ser revitimizada e o direito a uma investigação efetiva.
Para o Tribunal:
Caso X. vs. Grécia
- A obrigação das Altas Partes Contratantes, nos termos do artigo 1.º da Convenção, de garantir a todas as pessoas sob a sua jurisdição os direitos e liberdades definidos na Convenção, tomados em conjunto com o artigo 3.º, exige que os Estados tomem medidas destinadas a garantir que os indivíduos sob a sua jurisdição não sejam submetidos a maus-tratos, incluindo maus-tratos praticados por particulares. Nesta base, os Estados têm uma obrigação positiva inerente ao artigo 3.º da Convenção de promulgar disposições de direito penal que punam eficazmente a violação e de as aplicar na prática através de investigação e acusação eficazes (ver M.C. vs. Bulgária, §§ 149-153). A Corte reitera que as obrigações positivas decorrentes dos artigos 3.º e 8.º da Convenção devem ser interpretadas à luz das obrigações decorrentes dos outros instrumentos internacionais aplicáveis (ver X e outros vs. Bulgária [GC], n.º 22457/16, §§ 179 e 192, 2 de fevereiro de 2021) e na sua jurisprudência sobre violência contra as mulheres, o Tribunal tem-se guiado frequentemente pelas normas relevantes do direito internacional sobre a matéria (ver, por exemplo, J.L. vs. Itália, n.º 5671 /16, §§ 63-69, 27 de maio de 2021).
Mas não só. O Tribunal Europeu também assentou que as obrigações positivas nos termos dos arts. 3º e 8º da Convenção incluem a proteção dos direitos das vítimas nos processos penais. Deste modo, estas obrigações exigem que as autoridades de persecução e julgamento tomem medidas concretas para evitar a vitimização secundária, conforme a CEDH decidiu no caso Y. vs. Eslovênia e também no caso J.L. vs. Itália.
Por isso mesmo, a Corte lembrou, no § 70 da sentença do caso X., que “os processos penais relativos a crimes sexuais muitas vezes são vistos como um suplício pela vítima, em particular quando esta é confrontada com o suspeito contra sua vontade”. Infelizmente, no episódio concreto foi exatamente o que ocorreu. Ficou demonstrado que as autoridade gregas puseram a vítima em contato direto com o agressor diversas vezes logo após o estupro, causando-lhe desnecessário estresse e desconforto psicológico.
Antes de analisar os fatos, a Corte Europeia considerou “necessário sublinhar” estar “ciente e apoiar a crescente consciência sobre a importância da proteção dos direitos das vítimas” (§ 72 da sentença), especialmente nos casos de violência de gênero.
Revisando os eventos sob a lente da proteção vitimária, a Corte entendeu que a Grécia não cumpriu o conjunto normativo que adotou nem as normas internacionais às quais se obrigou, o que resultou numa investigação ineficiente, que não considerou adequadamente as circunstâncias da vítima (jovem, estrangeira sem domínio do idioma e inexperiente em situações que tais) nem os contornos psicológicos de situações de violação sexual contra mulheres.
Vale recordar que a posição da CEDH sobre a necessidade de adoção de uma perspectiva de gênero em casos de violência contra a mulher é similar ao entendimento da Corte IDH, como se vê no caso Barbosa de Souza e Outros vs. Brasil, de 2021, e no caso Angulo Losada vs. Bolívia, de 2022, este relativo a um caso de estupro incestuoso de uma vítima de 16 anos.
Conforme a jurisprudência da CEDH, para ser efetiva, a investigação criminal deve ser imediata, rigorosa e objetiva, com a adoção de todas as medidas apuratórias razoáveis e ao alcance das autoridades para a elucidação dos fatos, tendo em conta a situação concreta, caracterizando-se, porém, como uma obrigação de meio.
Deste modo:
Caso X. vs. Grécia
- Tendo em conta o que precede, o Tribunal, sem expressar opinião sobre a culpa do acusado, considera que a falha das autoridades investigativas e judiciais em responder adequadamente às alegações de estupro mostra que elas não submeteram o caso a um escrutínio cuidadoso, que era necessário para que pudessem cumprir adequadamente suas obrigações positivas nos termos da Convenção.
Ao fim, o TEDH concluiu ter havido violação ao art. 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que veda tratamentos desumanos ou degradantes.
Concluiu também a Corte que a Grécia descumpriu o artigo 8º, §1º do mesmo tratado, que assegura a toda pessoa o “direito ao respeito da sua vida privada e familiar”.
No dispositivo, a Corte Europeia reconheceu expressamente e por unanimidade a violação pela Grécia de suas obrigações positivas, derivadas da projeção processual (procedural limb) dos dois mencionados artigos da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Contudo, diferentemente do que se passa nos casos decididos pela Corte IDH, o Tribunal em Estrasburgo não ordenou à Grécia a reabertura da investigação criminal, deixando ao Estado grego a decisão sobre a forma de cumprimento do julgado.
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