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Boate Kiss: A seleção dos jurados e o direito à proteção de dados pessoais

A Lei 9.807/1999, que cuida da proteção a vítimas, testemunhas e réus colaboradores, e a Lei 13.608/2018, que regula os incentivos e instrumentos de proteção a alertadores (whistleblowers) são outros exemplos notáveis da aplicação de regras de proteção de dados no campo da persecução criminal

Foto: Pixabay
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O Brasil acompanhou passo a passo o júri da Boate Kiss, onde 242 pessoas, sobretudo jovens, perderam a vida em janeiro de 2013 em razão de um incêndio. A longa sessão de julgamento e o seu desfecho nos oferecem matéria-prima para inúmeros debates e muitas polêmicas. Selecionei apenas uma delas referente ao tratamento de dados pessoais de jurados.

Por tratamento, segundo o art. 5º, inciso X da Lei 13.709/2018 (LGPD), entende-se “toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso, reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento, armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação, modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração”.

Logo no início da sessão plenária, a defesa de um dos réus indagou ao juiz presidente se o Ministério Público havia pesquisado a base de dados do Estado do Rio Grande do Sul (sistema de consultas integradas da Secretaria de Segurança Pública) para examinar informações sobre os potenciais jurados. Diante da resposta positiva prestada pela Promotoria de Justiça em plenário desenrolou-se uma discussão de cunho disciplinar perante o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que foi no mesmo dia alardeada à imprensa pelo advogado representante (“Defesa de réu aciona conselho contra promotora”). Postura semelhante do Ministério Público seria imediatamente tachada de lawfare.

Mas não é o este o objeto do artigo. Quero discutir o tema à luz do direito à proteção de dados pessoais dos jurados. Não tenho dúvidas de que este tipo de questionamento quanto ao tratamento de dados será cada vez mais comum no processo penal brasileiro. Por isto, desde já, é preciso adotar parâmetros adequados para sua apreciação e adjudicação pelos tribunais.

2 A legislação de proteção de dados no campo criminal

Para começar, enfrentemos a alegação de que não há legislação sobre proteção de dados pessoais aplicável às atividades de Justiça criminal e de segurança pública.

Como consequência do previsto no art. 4º, inciso III, alínea “d”, da Lei 13.709/2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) não se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado exclusivamente no âmbito da segurança pública e nas ações penais. Não há, assim, uma lei geral de proteção de dados nestes campos.

Porém, os princípios gerais de proteção de dados e os direitos mínimos dos titulares desses dados devem ser observados pelos órgãos de Polícia e de Justiça criminal, nas investigações e nos processos penais. Não esqueçamos que, em breve, como resultado da Proposta de Emenda à Constituição Federal 17/2019, o novo inciso LXXIX do art. 5º da Constituição Federal assegurará o direito à proteção de dados como direito fundamental.

Embora o § 1º do art. 4º da LGPD assevere que o tratamento de dados pessoais para fins exclusivos de segurança pública e de persecução criminal “será regido por legislação específica”, é essencial notar, desde já, que tal diploma futuro “deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular”. Tais direitos e princípios já estão listados na LGPD. Portanto, a futura “LGPD penal”, como tem sido chamado o futuro diploma, deverá observar os mesmos parâmetros, que, desde já, devem ser aplicados ao tratamento de dados pelo Poder Público, tendo em vista o princípio do efeito imediato, insculpido no §1º do art. 5º da Constituição.

Segundo tal dispositivo da Carta de 1988, “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. O efeito imediato do art. 4º, §1º, da LGPD é evidente, independentemente da vigência da futura lei ali mencionada. É que, qualquer que seja o seu texto, o conjunto de direitos deverá respeitar aquilo que já agora está garantido como mínimo.

Ademais, mesmo antes da LGPD de 2018, a legislação brasileira já previa direitos esparsos para os titulares de dados pessoais no seu relacionamento com a Justiça criminal. Um bom exemplo está no art. 9º da Lei 9.296/1996, que instituiu um incidente de destruição de dados pessoais que não interessem à persecução criminal, após a conclusão de um procedimento de interceptação.

A Lei 9.807/1999, que cuida da proteção a vítimas, testemunhas e réus colaboradores, e a Lei 13.608/2018, que regula os incentivos e instrumentos de proteção a alertadores (whistleblowers) são outros exemplos notáveis da aplicação de regras de proteção de dados no campo da persecução criminal. O art. 17-B da Lei 9.613/1998 e os arts. 15 e 16 da Lei 12.850/2013, que regulam o acesso direto a dados cadastrais de pessoas em certas circunstâncias, também são manifestações da doutrina da proteção de dados no âmbito processual penal.

Tendo em conta os elementos informadores dessa legislação esparsa e o comando instituído pela LGPD, pode-se divisar um conjunto de parâmetros que devem ser observados pela Polícia, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário quando realizarem o tratamento de dados pessoais na investigação criminal e no processo penal. Serão então requisitos para esse tratamento:

a) A existência de lei que autorize o acesso a dados pessoais e outras formas de tratamento pelo Estado, inclusive o seu compartilhamento;

b) A previsão em lei da autoridade competente para fazê-lo, isto é, quem pode requisitá-los ou ordenar sua exibição;

c) A especificação de qual seria a finalidade legítima numa sociedade democrática a ser buscada mediante o tratamento de tais dados;

d) A indicação do tipo de dado pessoal a que se refere o tratamento;

e) A necessidade de indicação da justa causa em concreto para o acesso a esses dados e para as formas sucessivas de tratamento; e

f) A exigência de manutenção do mesmo nível de sigilo dos dados quando compartilhados no sistema de justiça criminal e de segurança pública.

É sempre bom recordar que a proteção de dados pessoais não se destina a impedir ou obstar a atuação do Estado no cumprimento de suas finalidades, mas a garantir o fluxo dos dados pessoais entre os agentes de tratamento, sejam os estatais ou os privados, sem que haja a recolha excessiva ou desnecessária de dados e sem que tais dados sejam expostos à curiosidade pública e sem que essas mesmas informações sejam tratadas sem outras cautelas ou sem as salvaguardas jurídicas e tecnológicas necessárias.

3 O acesso a dados pessoais de jurados para a adequada seleção do conselho de sentença

Voltemos ao júri da Boate Kiss. O acesso do Ministério Público a dados pessoais dos potenciais jurados está previsto em lei? O acesso justifica-se numa sociedade democrática? O Ministério Público tinha justa causa para pesquisar os dados daqueles cidadãos em particular? A mim me parece que são afirmativas as respostas a essas questões. A obtenção pelo Ministério Público gaúcho de informações pessoais dos cidadãos que comporiam a lista geral dos jurados é justificada diante do evidente interesse público na formação de um tribunal do júri e, na sequência, de um conselho de sentença que sejam integrados por jurados imparciais, idôneos, insuspeitos e desimpedidos.

Os nomes e profissões dos jurados não são tratados como segredo. A publicação da lista de jurados serve para sua impugnação (art. 426 do CPP). Os nomes dos jurados e suas profissões vão à imprensa judiciária e à Internet (aqui um exemplo) para que haja a possibilidade de reclamações quanto à sua inclusão na lista.

Art. 426. A lista geral dos jurados, com indicação das respectivas profissões, será publicada pela imprensa até o dia 10 de outubro de cada ano e divulgada em editais afixados à porta do Tribunal do Júri.

§ 1o A lista poderá ser alterada, de ofício ou mediante reclamação de qualquer do povo ao juiz presidente até o dia 10 de novembro, data de sua publicação definitiva.

Conforme o art. 436 do CPP, para ser jurado é preciso ter “notória idoneidade”. Segundo o §1º do mesmo artigo, “Nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução”. Intui-se que esses dados pessoais, isto é, os relativos à profissão, condição socioeconômica, nível de instrução, raça, gênero, procedência nacional ou religião dos potenciais jurados não podem ser usados como critérios para a exclusão do cidadão da lista geral. Nota-se já aí uma proteção legal contra a discriminação e, ao mesmo tempo, uma proibição de tratamento de dados pessoais para este fim, considerado violador do direito à igualdade entre todos e incompatível com a Constituição e tratados internacionais.

Outros critérios de exclusão, como antecedentes criminais ou suspeita de pertinência a organizações criminosas, podem ser usados e já então não haverá fim ilícito ou ilegítimo no tratamento de tais dados, com base neste dispositivo. Todavia, nesta etapa, as exclusões devem ser devidamente motivadas por quem as promover.

Dados pessoais também podem ser usados para obstar o serviço no júri. Segundo o art. 437, inciso VII, do CPP, “as autoridades e os servidores da polícia e da segurança pública”, assim como os membros do Ministério Público e os juízes “estão isentos do serviço do júri”. Essa isenção tem uma razão de ser, que se liga à essencialidade dos serviços de polícia e justiça.

Mesmo dados sobre orientação política ou afiliação religiosa podem ser considerados na formação da lista geral de jurados, para fins de dispensa motivada. Diz o art. 438 do CPP que “a recusa ao serviço do júri fundada em convicção religiosa, filosófica ou política importará no dever de prestar serviço alternativo, sob pena de suspensão dos direitos políticos, enquanto não prestar o serviço imposto.”

Ademais, jurados podem estar impedidos de prestar o serviço do júri por relações de parentesco (art. 448, CPP), quando então dados inequivocamente pessoais são levados em consideração para a decisão judicial, de ofício ou por provocação das partes. Conforme a lei, tal impedimento também ocorre em relação às “pessoas que mantenham união estável reconhecida como entidade familiar” (§1º do art. 448).

Os jurados também podem ser suspeitos (arts. 95 e 106 c/c o art. 448, §2º, CPP). Conforme o art. 145 do CPC, tem-se suspeição, por exemplo, quando o juiz ou jurado for amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados; ou quando for interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes. É lícito, assim, às partes terem acesso a dados pessoais dos julgadores togados e leigos, mesmo os atinentes à sua vida privada, para que eventualmente possam arguir tal exceção. No júri, a formação pública da lista geral de jurados fornece uma oportunidade a mais para evitar a composição do júri por jurados suspeitos.

Tendo em conta a existência do poder de requisição de dados, consoante o art. 8º, incisos II, IV e VIII, da Lei Complementar 75/1993 e do art. 26 da Lei 8.625/1993, todos os elementos para assegurar o acesso do Ministério Público (e também da Defensoria Pública) a bases de dados estatais estão presentes.

Lei Orgânica do Ministério Público da União

Art. 8º Para o exercício de suas atribuições, o Ministério Público da União poderá, nos procedimentos de sua competência:

II – requisitar informações, exames, perícias e documentos de autoridades da Administração Pública direta ou indireta;

IV – requisitar informações e documentos a entidades privadas;

VIII – ter acesso incondicional a qualquer banco de dados de caráter público ou relativo a serviço de relevância pública;

A atribuição legal para requisição (coleta) de dados pessoais pelo Ministério Público é complementada por outra regra de tratamento, constante do §2º do art. 8º da Lei Complementar 75/1993, quanto à preservação de eventual sigilo originário a ser observado nas etapas posteriores de tratamento: “Nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido.”

Fácil perceber que, desde que não baseada em critérios discriminatórios de qualquer natureza, a perfilação (profiling) de jurados justifica-se para o cumprimento do CPP quanto aos requisitos de idoneidade, desimpedimento, imparcialidade, entre outros, na formação do conselho de sentença. Os sete jurados que julgarão o mérito da acusação são selecionados após uma dupla filtragem, o que se faz na etapa da formação da lista, quando se aplica o primeiro filtro, e no momento das recusas, já em plenário, sejam as motivadas, sejam as peremptórias, momento do segundo filtro.

Neste aspecto, o modelo do júri brasileiro é diverso de outros sistemas, como os da common law, em que há uma etapa processual mais densa, denominada de voir dire, na qual os potenciais jurados são entrevistados pelas partes e pelo juiz em audiência, destinada à exposição de vieses ou preconceitos ou predisposições para condenar ou absolver. O voir dire (expressão em francês oriunda de outra, latina, verum dicere, isto é, “dizer a verdade”) elucida situações de impedimento, incompatibilidade e suspeição. Abordei este tema num texto de 2010 (“Decifra-me ou te devoro”), no qual considerei que:

(..) nosso modelo de escusas peremptórias e imotivadas beira o ridículo. A defesa e a acusação (promotor de Justiça ou procurador da República) podem recusar até três jurados (art. 468 do CPP). (…) Ocorre que o mais das vezes essas recusas baseiam-se em puro achismo ou “empatia”. O jurado é sorteado pelo juiz e se levanta entre os assistentes da sessão. Naquele brevíssimo instante, o defensor e depois o membro do Ministério Público têm de tomar uma difícil decisão: definir os julgadores da causa! Ambos consultam suas respectivas “bolas de cristal”, evocam seus oráculos, usam seus poderes extra-sensoriais e, olhando pela primeira vez para o jurado ali estático, declaram solenemente a recusa ou a aceitação do nome sorteado. Tudo se passa como se as partes pudessem perceber ali naqueles tormentosos segundos todas as inclinações, idiossincrasias e preconceitos daquele cidadão ou cidadã. Diante desse “amor à primeira vista” pelo jurado, o advogado e o promotor declaram seu “sim”. Pronto! A seleção está completa e a sorte está lançada no cassino criminal, no qual se apostam os destinos do réu e da vítima.

Nos Estados Unidos, a seleção dos doze membros do conselho de sentença e dos seus suplentes (sim, lá os suplentes acompanham o júri e substituem os jurados em caso de necessidade) é feita numa audiência especial chamada voir dire (do francês arcaico, “dizer a verdade”), na qual as partes interrogam os candidatos a jurados, para eliminar aqueles que sejam tendenciosos, preconceituosos ou venais. (…). Atualmente, a expressão voir dire é interpretada como sendo to see them say (“vê-los dizer”), pois os potenciais jurados são examinados em audiência, devendo responder oralmente perguntas das partes e, às vezes, do juiz.

A pesquisa de dados pessoais sobre os potenciais jurados é, portanto, um avanço, para que sejam evitadas interferências indevidas na formação do conselho de sentença, seja pela infiltração de jurados aliciados por organizações criminosas ou afiliados a elas, seja pela inclusão de jurados suspeitos ou parciais ou predestinados a condenar ou a absolver.

Além do acesso a bases de dados públicas, as partes podem valer-se da pesquisa de informações pessoais sobre os jurados nas redes sociais. Posso apostar que os advogados dos réus, atuando diligentemente, fizeram essas buscas no Facebook, no Instagram e no Twitter, as redes sociais mais usadas por brasileiros, a fim de detectar determinados vieses de potenciais jurados, especialmente num caso de grande repercussão no País como foi o júri da Boate Kiss. Pesquisa de comentários em notícias sobre o caso em meios digitais também costumam ser feitas. Varreduras desses dois tipos não ofendem a privacidade dos potenciais jurados, pois partem de informações compartilhadas voluntariamente por essas pessoas em perfis públicos de plataformas sociais ou em sites noticiosos. Não havendo razoável expectativa de privacidade a preservar, tais dados serão fundamentais para a etapa das recusas no momento do sorteio do conselho de sentença no plenário do júri.

Por outro lado, cabe ao Ministério Público, como custos legis, velar pelo correto funcionamento dos órgãos do Estado (art. 129, inciso II, CF). Também assim deve ser no processo penal, tendo em conta os interesses de acusados e vítimas. A formação dos perfis dos jurados não é uma prática abusiva, como aqueloutra de busca generalizada de dados pessoais sobre uma massa indeterminada de indivíduos. Faz-se no universo restrito das listas gerais de jurados (art. 425 do CPP), que prestarão um serviço público constitucionalmente relevante e que lhes dará uma distinção especial, com presunção de idoneidade moral, nos termos do art. 439 do CPP: “O exercício efetivo da função de jurado constituirá serviço público relevante e estabelecerá presunção de idoneidade moral.”

O serviço do júri também garante aos cidadãos jurados outro benefício: o critério de preferência para desempate em licitações públicas e no provimento de cargos públicos ou na promoção e remoção no serviço público (art. 440 do CPP). Nada disso pode ser obtido sem um exame adequado das condições subjetivas do potencial jurado e este papel é, sem dúvida alguma, do Ministério Público.

Não custa perceber que, se um certo número de indivíduos – em geral entre 80 e 1500 pessoas, conforme o art. 425 do CPP – está na lista geral de alistados ou se seus nomes já foram sorteados na forma do art. 433 do CPP para formar o tribunal de 25 pessoas, haverá em qualquer das hipóteses justa causa para a pesquisa de seus dados pessoais, uma vez que são potenciais juízes de uma causa criminal sobre crimes dolosos contra a vida.

Justifica-se assim o exame de vida pregressa desses potenciais juízes para garantir um tribunal isento, imparcial e desimpedido. Juízes realmente livres para julgar são aqueles sem interesses particulares na causa e os não sujeitos a intimidação ou coerção. A existência de um órgão de julgamento imparcial é um direito dos acusados e também das vítimas. Recordemos que se pode, segundo a lei brasileira, pode-se requerer o desaforamento de julgamentos se houver dúvida sobre a imparcialidade do júri (art. 427 do CPP). A constituição de tribunais independentes e imparciais é um direito humano previsto no art. 8º da Convenção Americana de Direitos Humanos e no art. 14 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, assim como nos Princípios de Bangalore sobre conduta judicial. A pesquisa sobre jurados responde a tal necessidade.

4 A paridade de armas e o acesso aos dados de potenciais jurados

Ultrapassada a alegação de que seria abusiva ou ilegal a pesquisa de dados pessoais de jurados constantes de bases de dados públicas, a questão remanescente está na suposta falta de paridade de armas entre acusação e defesa. Este argumento apareceu na alegação defensiva apresentada ao juiz Orlando Faccini Neto, após a instalação do júri do caso da Boate Kiss, em Porto Alegre, em 1º de dezembro de 2021.

Os advogados dos acusados também deveriam ter acesso aos dados dos jurados para subsidiarem suas recusas peremptórias ou as motivadas? É uma pergunta. E tal indagação nos remete imediatamente à investigação defensiva, hoje regulada pelo Provimento 188, de 2018, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e que demanda disciplina legal.

O acesso a dados de jurados no contexto da paridade de armas no processo penal foi objeto de habeas corpus decidido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2017, ocasião na qual, em caso oriundo do Rio Grande do Sul, afastou-se a alegação de ilicitude, levando em conta a possibilidade de a Defensoria Pública também ter acesso aos mesmos dados, mediante convênio com os órgãos estaduais.

STJ – HABEAS CORPUS 342.390/RS

(…)

2. Não há se falar em violação ao princípio da paridade de armas, em virtude de o Ministério Público ter acesso ao sistema de consultas integradas da Secretaria de Segurança Pública do Estado, uma vez que mencionado acesso ocorre em virtude da própria função constitucional que desempenha. Dessarte, a consulta ao sistema revela não a mera atuação do órgão acusador, mas em verdade a atuação do custus legis (sic), com o objetivo de recusar jurados que não preencham o requisito da notória idoneidade, nos termos do art. 436 do Código de Processo Penal.

3. Relevante destacar, ademais, que a autoridade coatora consignou no acórdão recorrido que “não há óbice, a priori, que a Defensoria Pública firma convênio nos mesmos moldes, obtendo idênticas informações sobre os jurados e os réus no processo penal”. Dessa forma, não há se falar em violação ao princípio da paridade de armas, pois a defesa nem sequer demonstra ter sido privada de obter as mesmas informações as quais alega terem sido obtidas pelo Ministério Público. No mais, a defesa não aponta em de que forma as informações obtidas pelo Ministério Público prejudicaram o paciente ou em que medida a ausência de acesso poderia ter beneficiado de forma concreta sua situação processual. Dessarte, conforme disciplina o art. 563 do CPP, “nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. (STJ, HC 342.390/RS, Rel. Min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, 5ª TURMA, j. em 04/05/2017).

Lido o acórdão, nota-se que a Defensoria Pública dos Estados e a da União podem exercer o seu poder de requisição (que esperamos seja mantido pelo STF, apesar das 22 ações diretas de inconstitucionalidade propostas pelo PGR, entre elas a ADI 6852) para acessar informações de natureza cadastral a respeito de jurados. Quanto ao acesso de advogados (particulares) este depende de previsão legal. Hoje não há tal lei, embora me pareça que deva existir um meio de assegurar esse conhecimento, em nome da ampla defesa, a fim de impedir que jurados com viés condenatório ou de antemão predispostos a condenar determinado réu sejam integrados ao conselho de sentença.

5 Conclusão

O tratamento de dados pessoais na segurança pública e na justiça criminal não é órfão. A previsão do art. 4º, §1º, da LGPD de que um dia deverá existir uma LGPD penal não significa que desde já não existam regras de proteção de dados pessoais a serem observadas na persecução criminal. Isso não dispensa o Congresso Nacional de legislar sobre a matéria para que não tenhamos hiatos ou controvérsias por omissão do legislador.

No contexto do tribunal do júri, objeto deste texto, há regras processuais que têm claro conteúdo de normas de proteção de dados, viabilizando o tratamento de dados pessoais de potenciais jurados, para que a seleção dos julgadores dos crimes dolosos contra a vida observe os critérios constitucionais, convencionais e legais de imparcialidade, isenção e desimpedimento. Tais regras, contudo, deveriam ser modernizadas e mais claras.

Visto adequadamente o quadro, nada há de ilegal no acesso pelo Ministério Público a dados pessoais de jurados, por meio do poder de requisição caso a caso, ou por meio de convênios que viabilizem o acesso a bases de dados públicas, úteis ao cumprimento do objetivo legal de formação de tribunais do júri isentos. Se não temos um procedimento semelhante ao voir dire, que sejam disponibilizados às partes os instrumentos para as recusas motivadas e as peremptórias.

Para um processo penal equilibrado e justo, é também necessário que a defesa, seja a pública ou a constituída pelo réu, tenha meios semelhantes, diretos ou intermediados pelo juízo, para que tais informações cheguem ao seu conhecimento, especialmente no momento da formação do conselho de sentença, quando o segundo filtro de seleção (o das recusas) é empregado. A investigação defensiva pode ser o veículo adequado para essas apurações.

Por fim, só temos a lamentar que um dos advogados do caso da Boate Kiss tenha aproveitado essa deficiência procedimental para tentar transformá-la numa questão disciplinar, expondo-a de imediato à imprensa sabe-se lá com que propósito. Era difícil, na verdade muito difícil, ver infração funcional numa conduta que só revelava devida diligência por parte do Ministério Público no cumprimento de sua missão constitucional.

Este não é um tema para o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), na sua função punitiva; é um tema para o Congresso Nacional, na sua função legislativa. Curiosamente, o tal punitivismo se manifesta onde menos se espera.

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