Por Vladimir Aras
A vítima sempre foi o sujeito processual mais ignorado e maltratado da Justiça criminal brasileira.
Esta semana o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) procurou corrigir isso. Foi um passo.
Na nova regulamentação do procedimento investigatório criminal (PIC), a vítima faz uma aparição relevante.
O ato regulamentar do novo PIC, que revoga a Resolução 13/2006, resulta de uma iniciativa do Corregedor Nacional do Ministério Público, Cláudio Portela. A Corregedoria Nacional constituiu uma comissão formada por membros do MPPR (Rodrigo Cabral), do MPDFT (Antônio Suxberger), do MPM (Luiz Felipe Carvalho) e do MPF (tive a honra de representar meu ramo), para conduzir o Procedimento de Estudos e Pesquisas 01/2017, que deu origem à proposta agora aprovada.
Lanço foco no art. 17 do ato normativo do CNMP, cuja íntegra, ainda pendente de publicação oficial, pode ser lida aqui:
Art. 17. O Membro do Ministério Público que preside o procedimento investigatório criminal esclarecerá a vítima sobre seus direitos materiais e processuais, devendo tomar todas as medidas necessárias para a preservação dos seus direitos, a reparação dos eventuais danos por ela sofridos e a preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem.
§ 1º. O membro do Ministério Público velará pela segurança de vítimas e testemunhas que sofrerem ameaça ou que, de modo concreto, estejam suscetíveis a sofrer intimidação por parte de acusados, de parentes deste ou pessoas a seu mando, podendo, inclusive, requisitar proteção policial em seu favor.
§ 2º. O membro do Ministério Público que preside o procedimento investigatório criminal, no curso da investigação ou mesmo após o ajuizamento da ação penal, deverá providenciar o encaminhamento da vítima ou de testemunhas, caso presentes os pressupostos legais, para inclusão em Programa de Proteção de Assistência a Vítimas e a Testemunhas ameaçadas ou em Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados, conforme o caso.
§ 3º. Em caso de medidas de proteção ao investigado, a vítimas e testemunhas, o membro do Ministério Público observará a tramitação prioritária do feito, bem como providenciará, se o caso, a oitiva antecipada dessas pessoas ou pedirá a antecipação dessa oitiva em juízo.
§ 4º. O membro do Ministério Público que preside o procedimento investigatório criminal providenciará o encaminhamento da vítima e outras pessoas atingidas pela prática do fato criminoso apurado à rede de assistência, para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado.
Essas atribuições do Ministério Público em relação às vítimas encontram seu vetor de inserção no ordenamento jurídico brasileiro em dispositivos da Constituição Federal (a carta de direitos do art. 5º) e nas Regras de Havana de 1990, aprovadas no 8th United Nations Crime Congress, há 27 anos:
"Princípios Orientadores Relativos à Função dos Magistrados do Ministério Público
"12. Os magistrados do Ministério Público exercem as suas funções em conformidade com a lei, equitativamente, de maneira coerente e diligente, respeitam e protegem a dignidade humana e defendem os direitos da pessoa humana, contribuindo, assim, para garantir um procedimento criminal correcto e o bom funcionamento do sistema de justiça.
13. No exercício das suas funções os magistrados do Ministério Público:
a) Dão prova de imparcialidade e evitam toda a discriminação de ordem política, social, religiosa, racial, cultural, sexual ou outra;
b) Protegem o interesse público, agindo com objectividade, tomam devidamente em consideração a posição do suspeito e da vítima e têm em conta todas as circunstâncias pertinentes, quer sejam favoráveis ou desfavoráveis ao suspeito;
d) Têm em conta os pontos de vista e as preocupações das vítimas quando estas são lesadas no seu interesse pessoal, e asseguram que as vítimas sejam informadas dos seus direitos em conformidade com a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e às Vítimas de Abuso de Poder."
Tais diretrizes são princípios orientadores das Nações Unidas e têm a mesma natureza que as Regras de Brasília, as Regras de Mandela, as Regras de Bangkok e as Regras de Tóquio.
Servem como preceitos indutores de política criminal nos Estados membros da ONU. Algo como soft law, agora mais densa com a nova regulamentação do CNMP.
A atribuição do MP que se enuncia no art. 16 da Resolução de 2017 articula-se com a Lei 9.807/1999, que estabelece medidas de proteção a vítimas, testemunhas e ao réu colaborador, e com o art. 201 do CPP, modificado em 2008:
Art. 201. […]
§ 2º. O ofendido será comunicado dos atos processuais relativos ao ingresso e à saída do acusado da prisão, à designação de data para audiência e à sentença e respectivos acórdãos que a mantenham ou modifiquem.
§ 3º. As comunicações ao ofendido deverão ser feitas no endereço por ele indicado, admitindo-se, por opção do ofendido, o uso de meio eletrônico.
§ 4º. Antes do início da audiência e durante a sua realização, será reservado espaço separado para o ofendido.
§ 5º. Se o juiz entender necessário, poderá encaminhar o ofendido para atendimento multidisciplinar, especialmente nas áreas psicossocial, de assistência jurídica e de saúde, a expensas do ofensor ou do Estado.
§ 6º. O juiz tomará as providências necessárias à preservação da intimidade, vida privada, honra e imagem do ofendido, podendo, inclusive, determinar o segredo de justiça em relação aos dados, depoimentos e outras informações constantes dos autos a seu respeito para evitar sua exposição aos meios de comunicação.
O dever dos órgãos de persecução do Estado para com a vítima de crime também encontra suporte na Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 40/34, de 29 de Novembro de 1985. Tal Resolução, diga-se de passagem, deveria ser objeto de reflexão de uma parcela ruidosa dos doutrinadores brasileiros que tem visão equivocada do que vem a ser o garantismo de Ferrajoli.
Voltando ao PIC, não custa lembrar que em 2013, no calor das jornadas populares daquele ano, o Congresso Nacional rejeitou a famigerada PEC 37, que pretendia proibir promotores de Justiça e procuradores da República de realizar investigações criminais. Dois anos depois, o STF definiu o poder investigatório do Ministério Público (RE 593.727/MG, STF, Pleno, j. em 14/05/2015, relator para o acórdão Min. Gilmar Mendes):
4. Questão constitucional com repercussão geral. Poderes de investigação do Ministério Público. Os artigos 5o, incisos LIV e LV, 129, incisos III e VIII, e 144, inciso IV, § 4o, da Constituição Federal, não tornam a investigação criminal exclusividade da polícia, nem afastam os poderes de investigação do Ministério Público. Fixada, em repercussão geral, tese assim sumulada: “O Ministério Público dispõe de competência para promover, por autoridade própria, e por prazo razoável, investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos, em nosso País, os Advogados (Lei 8.906/94, artigo 7o, notadamente os incisos I, II, III, XI, XIII, XIV e XIX), sem prejuízo da possibilidade – sempre presente no Estado democrático de Direito – do permanente controle jurisdicional dos atos, necessariamente documentados (Súmula Vinculante 14), praticados pelos membros dessa instituição”.
Por enquanto é assim. Sabe-se lá até quando. Aqui ainda não vale, aparentemente nunca vale, o stare decisis et quieta non movere. Sempre se pode dar uma mexidinha no que parece (só parece) definido.