Por Vladimir Aras
[artigo escrito com Deltan Dallagnol e publicado no JOTA em 16/11/2015]
Alguns comentaristas mal informados e consultores jurídicos mal intencionados têm tentado desqualificar os procedimentos de cooperação internacional adotados pelo Ministério Público Federal (MPF) no caso Lava Jato.
Um ponto em que se batem os tais “especialistas” liga-se ao recebimento de informações da Suíça em novembro de 2014, no curso de um pedido de cooperação internacional enviado àquele país europeu, para obtenção de dados bancários do réu colaborador Paulo Roberto Costa.
A verdade é que todos os procedimentos para obtenção transnacional de provas adotados no curso da investigação foram legais e legítimos, tendo obedecido às regras da Constituição, das leis, dos tratados e das melhores práticas internacionais. O Ministério Público brasileiro vem atuando há quase duas décadas em investigações transnacionais, em casos importantes como Anaconda, Banestado, Cacciola, Maluf e Pizzolato, com êxitos incontestáveis. Esse cuidado tem-se repetido na operação Lava Jato, que até agora expediu em torno de 80 pedidos de assistência internacional para 28 países e territórios.
Um desses pedidos foi enviado à Suíça em agosto de 2014. Em novembro daquele ano, em Lausanne, parte das informações solicitadas foi entregue ao MPF pelo Ministério Público da Confederação Helvética num dispositivo de memória portátil (pen drive). A obtenção desses dados pela Procuradoria brasileira deu-se após o afastamento do sigilo bancário, por ordem judicial, e mediante autorização de acesso firmada pelo próprio colaborador Paulo Roberto Costa, titular dos dados financeiros. Apesar de poder usar tais informações desde então, por medida de cautela, o Ministério Público Federal não as utilizou em qualquer ação penal até sua chegada formal ao Brasil por meio do canal oficial, a autoridade central, conforme adiante se descreverá detalhadamente, a fim de que as pessoas de boa-fé tirem suas próprias conclusões.
As informações recebidas do Ministério Público suíço – de forma absolutamente legal e regular, repita-se – foram unicamente objeto de organização de registros e análise interna por parte do próprio MPF, inclusive com o objetivo de verificar a veracidade das declarações prestadas por Paulo Roberto Costa, como colaborador. Por isso, foram enviadas à Secretaria de Pesquisa e Análise (SPEA), órgão do MPF, de forma transparente, em ofício datado e assinado. A menção nesse oficio de encaminhamento ao recebimento informal do dispositivo de memória elimina qualquer alegação de clandestinidade. A referência à “informalidade” da recepção remete ao termo usualmente empregado na cooperação internacional quando o envio de dados solicitados a país estrangeiro se dá para meros fins de inteligência ou, num procedimento simplificado, quando há antecipação de provas em casos de urgência, como ocorreu em relação aos dados de Paulo Roberto Costa, exatamente como atestou o procurador do Ministério Público suíço, de forma transparente, em seu ofício de remessa à autoridade central de seu país, datado de 05/01/2015: “Vu l’urgence, une copie de cette clé USB a été remise le 28 novembre 2014 en mains propres au Procureur en charge de la procédure au Brésil“. Tal providência tem amparo, entre outros dispositivos, no artigo 29, §2, da EIMP de 1981.
Só na mente de pessoas mal-intencionadas o registro da entrega do pen drive em documentos oficiais, que compõem autos de procedimentos formais, poderia ser interpretado como conduta clandestina ou como um “drible na lei”. Dado o esforço midiático empregado para desqualificá-lo, cabe indagar por que as informações que esse dispositivo contém causam tanto receio e tanta inquietação.
Esses mesmos dados do pen drive foram remetidos posteriormente ao Brasil, como o MPF havia pedido em agosto. Só depois do procedimento formal (e burocrático) de remessa, via autoridade central, as provas foram utilizadas pelo Ministério Público Federal. Ou seja, como facilmente pode ser constatado, antes de 30/01/2015, os dados em questão não foram utilizados em inquéritos, ações ou qualquer outro procedimento policial ou judicial, embora, conforme já exposto, não houvesse nenhum obstáculo legal a esta utilização. Ad cautelam – justamente para evitar infundadas alegações de “nulidade” –, preferiu o Ministério Público Federal valer-se dos dados em juízo apenas após o seu recebimento formal no Brasil, que ocorreu em 30/01/2015.
Todo o procedimento ocorreu conforme a lei.
De fato, em agosto de 2014, o Ministério Público Federal enviou, via Ministério da Justiça, pedido formal de cooperação ao Ministério Público da Suíça e recebeu resposta formal, por intermédio da autoridade central suíça em 22 de janeiro de 2015 (por meio do ofício B.238’802 ALF) e da autoridade central brasileira em 30 de janeiro de 2015 (por meio do ofício 825/2015/CGRA-DRCI-SNJ-MJ). A utilização dos documentos suíços em processos no Brasil somente ocorreu após o recebimento da comunicação suíça pelos canais oficiais, isto é, quando os pedidos tramitaram pelas autoridades centrais dos dois países.
Em cooperação internacional, a autoridade central, órgão de natureza administrativa, cumpre papel de natureza formal na tramitação de pedidos de cooperação, especialmente na autenticação de documentos, em função semelhante a de um notário. A autoridade central não é o único caminho da cooperação entre Estados, porque também é possível utilizar a via diplomática, ou o mecanismo de legalização consular (conforme o Decreto 84.451/1980 e a Convenção de Viena de 1963), ou ainda o canal Interpol, por exemplo. Por outro lado, na persecução transnacional, as decisões de enviar ou não pedidos de assistência internacional, e de definir seu conteúdo, sua abrangência e sua finalidade processual são sempre da autoridade competente para a investigação, isto é, do Ministério Publico ou da Polícia ou ainda do juiz, no processo.
A existência de documentos oficiais que comprovam a dupla entrega (formal e informal) da documentação bancária suíça é garantia de que o MPF observou a cadeia de custódia das provas, de modo a afiançar sua autenticidade e integridade desde o primeiro instante.
Por outro lado, não se pode confundir a mera troca de informações (dados de inteligência) com o procedimento de remessa de provas (evidências a serem usadas em juízo). Em cooperação internacional, informações fluem corriqueiramente e de forma lícita por vários canais de assistência, seja diretamente entre órgãos de persecução, seja pelo canal policial (como a Interpol), seja no âmbito de redes de cooperação, a exemplo da Rede Ibero-Americana de Cooperação Jurídica (IBER-RED), da Camden Assets Recovery Interagency Network (CARIN), do Grupo de Egmont ou da Rede de Recuperação de Ativos do GAFILAT (RRAG).
O fato é que, à luz do dia, devidamente autorizados pelo Procurador-Geral da República (Portarias PGR/MPF n. 839, 840 e 919 de novembro de 2014), três procuradores do Ministério Público Federal viajaram em missão oficial à Suíça no final daquele mês, para tratar do pedido de cooperação enviado àquele país em agosto de 2014. Como se viu, tal pedido objetivava a obtenção de documentos bancários das contas de Paulo Roberto Costa, mantidas em bancos da Confederação Helvética. Como se percebe, a viagem oficial foi feita três meses após o envio do pedido formal de cooperação pelo canal oficial, com a devida publicidade da missão mediante a publicação dessas três portarias no Diário Oficial da União, tendo ali ficado expresso que caberia aos procuradores “realizar diligências referentes à Força-Tarefa da Operação Lava Jato” entre 25 e 28/11/2014, na Suíça.
Tal nível de transparência e registros são incompatíveis com uma missão “clandestina”, que, aliás, foi também noticiada na imprensa brasileira na ocasião (aqui). Na verdade, os críticos pretendem usar filigranas jurídicas para tentar anular o caso Lava Jato.
O artigo 65-A da Lei de Cooperação Internacional da Suíça de 1981(Loi sur l’entraide internationale en matière pénale – EIMP) e os artigos 8º e 11 do Tratado suíço-brasileiro de Assistência Jurídica Internacional em Matéria Penal de 2004 (Decreto 6.974/2009) permitem expressamente a presença de autoridades do Estado requerente durante a execução do pedido de cooperação, especialmente se isso for útil ao cumprimento das medidas solicitadas. Tais artigos autorizam também a consulta a autos e documentos in loco.
No pedido em questão – encaminhado pelo ofício FTLJ/MPF n. 5315/2014, de 3 de julho de 2014, e pelo ofício SCI/PGR 2469/2014, de 4 de agosto de 2014, com remessa ao exterior certificada pelo ofício 4939/2014/CGRA-DRCI-SNJ-MJ, de 14 de agosto de 2014 –, o MPF requereu expressamente autorização do Estado requerido para “diligência das autoridades requerentes à Suíça para examinar documentos, dados e outros materiais abrangidos por esta solicitação, no interesse do melhor desenvolvimento da cooperação“. Isso significa que as autoridades centrais (os Ministérios da Justiça dos dois países) tinham conhecimento expresso e cabal do motivo da missão oficial do MPF à Suíça desde agosto de 2014.
Contatos diretos entre autoridades investigantes, em especial entre membros do Ministério Público do Estado requerente e do Estado requerido, são considerados boas práticas na cooperação internacional, sendo tais contatos diretos recomendados enfaticamente por órgãos como o United Nations Office on Drugs and Crime (UNODC), como se vê no item 5 desse relatório de 2001 sobre Melhores Práticas em Cooperação Penal Internacional; e pelo G20, como se nota nos Princípios sobre Assistência Jurídica Mútua em Matéria Penal (G20 High-Level Principles on Mutual Legal Assistance), aprovados na reunião do grupo realizada na Rússia em 2013. Os princípios 3 e 4, respectivamente, encorajam mecanismos informais de cooperação antes da apresentação de pedidos formais de assistência, e estimulam sejam facilitados contatos diretos entre os órgãos de persecução penal na cooperação penal.
Na sua missão pública ao exterior, realizada em novembro de 2014 e noticiada no DOU, o Ministério Público Federal recebeu das autoridades suíças, em meio digital, dados das contas bancárias de Paulo Roberto Costa. E o fez amparado pela legislação da Suíça, pela autorização expressa do réu colaborador titular das contas e por decisão judicial brasileira.
Repita-se para que fique claro. No acordo de colaboração firmado entre o Ministério Público Federal e Paulo Roberto Costa em agosto de 2014, homologado em setembro do mesmo ano, esse réu colaborador autorizou formalmente o MPF a obter amplo e irrestrito acesso aos seus dados bancários no exterior, abrindo mão de seu sigilo bancário. Paulo Roberto Costa também autorizou expressamente as autoridades suíças a adotarem procedimento simplificado de entrega de documentos às autoridades brasileiras, o que tornou a remessa dos dados mais célere e eficiente, em prol da boa administração da Justiça. Acrescente-se ainda que o sigilo das contas bancárias de Paulo Roberto Costa no exterior havia sido afastado pela 13ª Vara Federal de Curitiba desde julho de 2014, muito antes do acesso do MPF aos seus dados.
Tais dados bancários foram também legalmente acessados pelas autoridades suíças, conforme o direito local. Por zelo, para evitar convenientes alegações de nulidade, o Ministério Público Federal solicitou às autoridades suíças que enviassem formalmente as provas ao Brasil, o que foi atendido. Assim, em 30/01/2015, os dados em questão foram formalmente recebidos em nosso País. Vale dizer: os mesmos dados entregues em mãos ao MPF na Suíça foram encaminhados pelas autoridades suíças ao Ministério Público Federal no Brasil, por meio das autoridades centrais, isto é, os Ministérios da Justiça suíço e brasileiro. A primeira entrega, fundada na urgência e permitida pelo direito suíço, foi certificada por recibo e documentada em ofício. A segunda remessa – por uma das vias previstas no tratado bilateral – ocorreu menos de dois meses depois, sem qualquer objeção por parte da autoridade central suíça.
Somente para argumentar, ainda que a primeira entrega pudesse ser tida como irregular – e não o foi –, a consecutiva formalização da remessa pela autoridade central sanaria qualquer vício que pudesse ter existido, dada a redundância da tramitação, e ao fato concreto e incontroverso de que, antes de 30/01/2015, o MPF não fez uso em juízo das provas constantes do referido dispositivo informático.
Não houve, portanto, violação de regras jurídicas nem lesão a direito de qualquer réu ou investigado. Qualquer suspeito ou réu pode acessar seus próprios dados no país ou no exterior e os entregar voluntariamente ao Ministério Público ou a Polícia, sem o concurso de quem quer que seja, e sem vinculação a procedimentos previstos em tratados internacionais. Isso é exatamente o que ocorre num procedimento de investigação nacional, quando o suspeito, por não resistir à pretensão do Estado, resolve repassar documentos em seu poder, o que dispensa o manejo de mandado de busca e apreensão. Este é o cenário neste caso, sendo inquestionável o fato de que Paulo Roberto Costa é réu colaborador na forma da Lei 12.850/2013.
A existência de canais formais de cooperação – como a autoridade central ou a via diplomática – serve para facilitar o acesso a provas no exterior, nunca para torná-lo mais difícil ou mais moroso. Seria inusitado qualquer tratado internacional em matéria de cooperação penal que tivesse o objetivo de burocratizar ou engessar todo e qualquer procedimento de intercâmbio probatório. Ainda assim, os ministérios públicos suíço e brasileiro não se valeram de qualquer desvio.
Registre-se por fim que Paulo Roberto Costa, o titular das contas no exterior e único interessado na preservação do seu sigilo bancário, em momento algum questionou o procedimento para a internalização das provas no Brasil, justamente porque abriu seu sigilo ao MPF e concordou com o método adotado pela Procuradoria suíça. Estranha-se que terceiros se insurjam contra sua colaboração com as autoridades brasileiras.
O ataque ruidoso e absolutamente infundado ao procedimento adotado pelos órgãos de cooperação faz parte da estratégia de comunicação adotada por alguns dos réus e empresas sob investigação, com o intuito de criar, artificialmente, atmosfera favorável ao reconhecimento de irregularidades imaginárias e teses estapafúrdias. Além disso, opiniões dadas a público, como se fossem emitidas por especialistas neutros, são, em verdade, opiniões de advogados de réus do caso Lava Jato e, por conseguinte, de pessoas diretamente interessadas em encontrar nulidades onde elas não existem.