Por Vladimir Aras
Introdução
O presidente Michel Temer sancionou na sexta-feira 13 de outubro, a Lei 13.491/2017, resultante do projeto de Lei da Câmara 44/2016 (PL 5.768/2016). Com vigência imediata (art. 3º), a lei modifica o Código Penal Militar (CPM) para redefinir certos crimes militares e ampliar a competência da Justiça Militar dos Estados e da Justiça Militar da União (JMU).
De fato, várias condutas praticadas por militares das Forças Armadas (FFAA), que eram da competência da Justiça Federal, foram transferidas à jurisdição militar. Além disso, certas infrações penais comuns, quando praticadas nas condições previstas nas alíneas do inciso II do art. 9º do CPM, passaram a ser também consideradas crimes militares, estando portanto submetidas à jurisdição castrense.
Reflexamente, foi ampliada a competência da Justiça Militar da União (JMU) para julgar civis por crimes militares, com base no art. 9º, inciso III[2], do CPM. Considerando que, força do art. 125, §4º, da CF, a Justiça Militar dos Estados só julga militares estaduais, este tópico não interfere em sua competência.
As razões para tal mudança legislativa deitam raiz na polêmica ampliação do papel das Forças Armadas na segurança pública urbana e das fronteiras, em tempos de recrudescimento da violência e do aumento do poderio de organizações criminosas. Por falta de alternativas de segurança pública civil[3], militares têm sido utilizados pelo governo federal em operações de garantia da lei e da ordem, o que vem acentuando situações potencialmente conflitivas com civis, criminosos ou não.
Estrutura da Lei 13.491/201
A Lei tem dois artigos e seu dispositivo principal só teve em mira o art. 9º do CPM.
O art. 2º da Lei, que previa vigência temporária, foi vetado pela presidência da República.
O art. 3º determina a vigência imediata da Lei, isto é, sem vacância.
No que diz respeito às normas de competência, a Lei aplica-se aos inquéritos e às ações penais em curso. No que tange à nova definição de crimes militares, vale a regra da irretroatividade, especificamente no tocante à inovação do inciso II do art. 9º do CPM.
Ampliação da competência da Justiça Militar
O §1º do art. 9º do CPM (antigo parágrafo único) manteve na competência do tribunal do júri os crimes dolosos contra a vida de civis praticados por policiais militares ou por bombeiros militares e, eventualmente, também os cometidos por integrantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica em atividades não especificadas no parágrafo seguinte. Assim, em regra, militares estaduais que cometam homicídio continuam a ser julgados pelo tribunal do júri. Por sua vez, militares federais só serão julgados pelo júri federal, se suas condutas não forem praticadas nas condições delimitadas no §2º do art. 9º.
O §2º do art. 9º do CPM, introduzido por essa lei, mexe em hipóteses que até agora eram (ou deveriam ser) de competência do tribunal do júri federal (art. 5º, XXXVIII, alínea ‘d’, CF). Essas condutas passam a ser julgadas pela JMU, se se enquadrarem nas situações previstas nos três incisos do novo §2º. Se aí não se amoldarem, vale a regra geral do §1º, e também os militares das FFAA serão julgados pelo júri presidido por um juiz federal[4], nos crimes dolosos contra a vida de civis. Assim, se um crime de homicídio for praticado por um militar contra civil durante uma operação de paz[5], ou no curso de uma operação de garantia da lei e da ordem (GLO), a competência para o julgamento será, por esta lei, da Justiça Militar da União, e não da Justiça Federal (júri).[6]
Além disso, a nova redação do inciso II do art. 9º do CPM atribuiu à JMU e à Justiça Militar dos Estados a competência para julgar crimes, agora considerados “militares”, que estão previstos na legislação comum, como tortura, abuso de autoridade, cibercrimes, associação em organização criminosa, formação de milícia privada etc.[7]É ampliado o conceito de “crime militar” impróprio ou impropriamente militar ou acidentalmente militar para abranger também infrações penais previstas apenas na legislação penal comum, o que antes não ocorria. Comparemos a antiga e a nova formulação do inciso II:
ART. 9º, II, CPM COMO ERA COMO PASSOU A SER
Crimes militares impróprios II – os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados: II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:
Abrangência Crimes do CPM Crimes do CPM e os crimes da lei penal comum
Esta alteração provocará novos e intensos debates sobre o conceito de crimes militares, sobre a repercussão desse dispositivo nas regras de competência[8] e sobre a separação de processos prevista no art. 79, inciso I, do CPP e no art. 102, alínea ‘a’ do CPPM.
Ressalto o adjetivo na expressão “novos debates” porque sempre foi difícil o consenso sobre o que são “crimes militares”, categoria cujo conceito é indeterminado. Apesar disto, no dizer do min. Sepúlveda Pertence, “sua concretização legislativa não é arbitrária”[9]. Para Pertence, “não poderia a Constituição permitir (e de fato não permite) a invasão da competência da Justiça Comum e geral pela Justiça Militar que de caráter excepcional se reveste”.
E continua: “se não definiu ela própria o que seja crime militar, nem por isso (a CF) facultou ao legislador confundir os conceitos científicos distintos de crime comum e crime militar”[10].
Uma das tentativas de delinear tal conceito partiu de Edmundo Lins[11], ministro do STF entre 1917 e 1937, que os classifica em crimes propriamente militares, aqueles ratione personae et materiae; e em crimes impropriamente militares, que englobam os crimes comuns sujeitos ao foro militar, subdividindo-se em:
ratione personae, que têm militares na condição de sujeito ativo ou de sujeito passivo;
ratione temporis, os praticados em tempo de guerra ou situação equiparada;
ratione loci, tendo em conta o local da conduta.
Por fim, como consequência da alteração promovida no inciso II do art. 9º, do CPM, seu inciso III também foi modificado porque faz remissão ao dispositivo anterior. De fato, são também crimes militares os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I (crimes propriamente militares), como os do inciso II (crimes impropriamente militares)[12], nos casos indicados nas suas quatro alíneas. Sendo mais amplo o conceito legal da segunda espécie, haverá potencialmente mais situações em que civis serão submetidos a julgamento pela Justiça Militar da União[13], o que é questionável à luz de vários precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos[14].
Justiça Militar versus tribunal do júri
Saber se militares que matam civis devem ser julgados pelo tribunal do júri ou pela Justiça Militar era um problema que parecia ter sido equacionado há mais de duas décadas, antes mesmo da Reforma do Judiciário. Não foi. Na verdade, este tema tornou-se mais complexo nos últimos anos em função da escalada da violência urbana, que tem ampliado a interação de militares das Forças Armadas com a população civil em território brasileiro, em situações de policiamento urbano.
Tal interação deriva especialmente do emprego de militares na “guerra” contra as drogas, por meio das chamadas operações de garantia da lei e da ordem (GLO), reguladas pelo art. 15 da Lei Complementar 97/1999, que podem ocorrer de forma episódica, em áreas previamente estabelecidas e por tempo limitado, para ações de caráter preventivo e repressivo[15]. Por força do §7º do art. 15 da Lei Complementar 97/1999, uma GLO é “considerada atividade militar para os fins do art. 124 da Constituição Federal”.
Pois bem, a Lei 13.491/2017 busca regular tais situações incrementais. Com ela, o antigo parágrafo único do art. 9º do CPM passou a ser o parágrafo primeiro e acresceu-se o parágrafo segundo, com três exceções à competência do tribunal do júri:
Art. 9º. Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
I – os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;
II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;
III – os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.
§1º. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri.
§2º. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:
I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas[16] pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;
II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou
III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais:
a) Lei n. 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica[17];
b) Lei Complementar n. 97, de 9 de junho de 1999[18];
c) Decreto-Lei n. 1.002, de 21 de outubro de 1969 – Código de Processo Penal Militar[19]; e
d) Lei n. 4.737, de 15 de julho de 1965 – Código Eleitoral.[20]
Em meados dos anos 1990, esse tema foi objeto da Lei 9.299/1996, que inequivocamente excluiu da competência da Justiça Militar (seja a estadual ou a da União) os crimes dolosos contra a vida de vítimas civis. Tal diploma não distinguiu os ramos federal e estadual e alterou o art. 9º, parágrafo único, do CPM e o art. 82 do CPPM, evidenciando a competência do foro comum (não militar) e, portanto, do tribunal do júri:
CPM
Art. 9º. (…)
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum.[21]
CPPM
Art. 82. O foro militar é especial, e, exceto nos crimes dolosos contra a vida praticados contra civil, a ele estão sujeitos, em tempo de paz:
Em 2001, Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 260.404/MG, decidiu pela constitucionalidade do parágrafo único do art. 9º do Código Penal Militar, introduzido pela Lei 9.299/96:
Recurso extraordinário. Alegação de inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar introduzido pela Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996. Improcedência. – No artigo 9º do Código Penal Militar que define quais são os crimes que, em tempo de paz, se consideram como militares, foi inserido pela Lei 9.299, de 7 de agosto de 1996, um parágrafo único que determina que “os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum”. – Ora, tendo sido inserido esse parágrafo único em artigo do Código Penal Militar que define os crimes militares em tempo de paz, e sendo preceito de exegese (assim, CARLOS MAXIMILIANO, “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, 9ª ed., nº 367, ps. 308/309, Forense, Rio de Janeiro, 1979, invocando o apoio de WILLOUGHBY) o de que “sempre que for possível sem fazer demasiada violência às palavras, interprete-se a linguagem da lei com reservas tais que se torne constitucional a medida que ela institui, ou disciplina”, não há demasia alguma em se interpretar, não obstante sua forma imperfeita, que ele, ao declarar, em caráter de exceção, que todos os crimes de que trata o artigo 9º do Código Penal Militar, quando dolosos contra a vida praticados contra civil, são da competência da justiça comum, os teve, implicitamente, como excluídos do rol dos crimes considerados como militares por esse dispositivo penal, compatibilizando-se assim com o disposto no “caput” do artigo 124 da Constituição Federal. – Corrobora essa interpretação a circunstância de que, nessa mesma Lei 9.299/96, em seu artigo 2º, se modifica o “caput” do artigo 82 do Código de Processo Penal Militar e se acrescenta a ele um § 2º, excetuando-se do foro militar, que é especial, as pessoas a ele sujeitas quando se tratar de crime doloso contra a vida em que a vítima seja civil, e estabelecendo-se que nesses crimes “a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à justiça comum”. Não é admissível que se tenha pretendido, na mesma lei, estabelecer a mesma competência em dispositivo de um Código – o Penal Militar – que não é o próprio para isso e noutro de outro Código – o de Processo Penal Militar – que para isso é o adequado. Recurso extraordinário não conhecido. (STF, Pleno, RE 260.404/MG, rel. min. Moreira Alves, j. em 22/03/2001).
Em 2004, veio a alteração constitucional determinada pela EC 45, que também serviu como resposta à sucessão de crimes praticados por policiais militares contra a vida de civis. Tal como na lei de 1996, chacinas cometidas ao longo dos anos 1990 e a aparente falta de respostas da Justiça Militar estadual a casos de violência policial contra civis serviram de mote para este tópico da reforma. Segundo se alega, a Emenda 45 não teria pretendido abranger os crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares das FFAA. Esta seria a mens legis da referida emenda, segundo seus defensores.
Este argumento ganha força quando examinamos a redação do art. 125, §4º, da CF, segundo o qual:
§4º. Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.
O art. 125 da CF somente cuida da Justiça Militar estadual. Portanto, a ressalva ali presente sobre os delitos sujeitos à competência do júri só diz respeito aos policiais militares e aos bombeiros militares acusados de crimes dolosos contra a vida de civis.
Já a competência da Justiça Militar da União (JMU) é regulada pelo art. 124 da CF, que não contém nenhuma ressalva desta ordem:
Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.
Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.
Em 2011, uma emenda ao antigo parágrafo único do art. 9º do CPM promoveu uma supressão à competência do júri (federal). Por força da Lei 12.432/2011, os crimes militares quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil seriam da competência da Justiça comum (estadual ou federal), salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei n. 7.565/1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica[22]. Essa ressalva visava a estabelecer a competência da JMU quando militares da Força Aérea Brasileira fossem levados a destruir aeronaves clandestinas (hostis) ou suspeitas de tráfico de drogas em voo no espaço aéreo brasileiro:
Art. 303. (…)
§2° Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada.
Ainda se discute se esta regra de competência seria constitucional ou não. Agora, a Lei 13.491/2017 manteve esta ressalva (§2º, inciso III, alínea a, do art. 9º do CPM) e criou novas exceções à competência do júri quando os autores de crimes dolosos contra a vida forem militares da União.
Como a Lei 13.491/2017 não alterou o art. 82 do CPPM, a controvérsia deve ser intensa sobre sua subsistência e sua convivência com o art. 9º do CPM.
Assim, a partir da publicação dessa lei, por força do §2º do art. 9º do CPM, os crimes dolosos, praticados por militares das Forças Armadas, contra a vida de civis serão julgados pela Justiça Militar da União, e não pelo tribunal do júri. Isto ocorrerá apenas nas hipóteses listadas no referido §2º. Se a situação fática não encontrar enquadramento ali, valerá a regra do §1º, que se aplica sempre aos militares estaduais e, eventualmente, aos militares federais.
Com a alteração do art. 9º do CPM, a situação processual, que já era incerta, ganhou contornos mais complexos, pois a previsão ampliativa da competência da Justiça Militar da União poderia ser considerada constitucional neste aspecto, por remissão ao art. 124 da CF. De fato, cabe mesmo à lei federal definir[23] os crimes militares e, reflexamente, estipular a competência da JMU.
Resta o forte argumento, em sentido contrário, de que o julgamento de crimes dolosos contra a vida de civis por juízes-auditores ou por estes e colegiados militares (escabinados ou escabinatos) representa supressão da competência e da soberania do júri (art. 5º, XXXVIII, ‘d’, CF). Por este prisma, militares do Exército, da Marinha ou da Aeronáutica teriam de ser julgados por júris federais, nos crimes dolosos contra a vida de civis, em situações propter officium[24]. Assim, a Lei 13.491/2017 em questão seria inconstitucional neste ponto.
Caberá ao Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, ‘o’, CF) dirimir os conflitos de competência que surgirem entre qualquer corte e o Superior Tribunal Militar[25] em função dessa lei, cumprindo ao Superior Tribunal de Justiça (art. 105, I, ‘d’) a tarefa de definir os conflitos de competência que apareçam entre juízos federais e auditorias militares. Não serão poucos os casos.
Júri civil na Justiça Militar
Para superar a objeção de ofensa ao art. 5º, XXXVIII, da CF, tem-se dito que os julgamentos de militares das Três Armas que matem civis poderiam ser realizados por um júri composto por civis presidido por um juiz-auditor militar na própria JMU. A tribuna da acusação seria ocupada por um promotor militar, isto é, por um membro do Ministério Público Militar (MPM).
Essa tese chegou a ser aventada no STM pelo ministro José Barroso Filho, no caso do Complexo da Maré no Rio de Janeiro, de 2014, quando um fuzileiro naval matou um traficante (civil). Foi estabelecida pelo STM a competência da JMU para o julgamento dessa ação penal, mas o ministro José Barroso acabou vencido no que tange a esse júri civil na JMU:
A jurisprudência do Superior Tribunal Militar, bem assim a do Supremo Tribunal Federal são no sentido de ser constitucional o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de militar em serviço pela Justiça Castrense da União, sem a submissão destes crimes ao Tribunal do Júri, nos termos do o art. 9º, III, “d”, do CPM. Unanimidade. (STM, Pleno, rel. Min. José Coelho Ferreira, Apelação 000254-78.2013.7.01.0201/RJ, j. em 21/06/2016).
Ao que tenho conhecimento, tal tese foi pela primeira vez trazida a lume em 1990 pelo então subprocurador-Geral da República Cláudio Fonteles, em parecer apresentado ao STF no RE 122.706/RJ. Naquela ocasião, a Corte decidiu que “A Justiça Militar não comporta a inclusão, na sua estrutura, de um júri, para o fim de julgar os crimes dolosos contra a vida. C.F./67, art. 127; art. 153, par-18. C.F./88, art. 5., XXXVIII; art. 124, parag. único. III. RE não conhecido”.
Assim, o julgamento desses crimes em primeira instância caberia a um dos dois tipos de conselhos de justiça que existem na JMU e que são formados por oficiais militares e juízes-auditores, que são magistrados de carreira.
Segundo os arts. 16 e 27 da Lei 8.457/1992, ao Conselho Especial de Justiça, constituído por juiz-auditor e quatro juízes militares, compete processar e julgar oficiais, exceto oficiais-generais[26], nos delitos previstos na legislação penal militar.
Já ao Conselho Permanente de Justiça, constituído por juiz-auditor, por um oficial superior e três oficiais, compete processar e julgar acusados que não sejam oficiais, nos crimes militares.
Não haveria, portanto, um tribunal do júri na JMU, mas os julgamentos seriam realizados por colegiados de primeiro grau, formados por militares e um juiz-auditor (juiz, civil, de carreira), cabendo a acusação pública ao MPM. São os escabinados. Neste caso, a imputação nos homicídios não se amoldaria ao art. 121 do CP, mas ao art. 205 do CPM.
Noutro julgado, o STM reafirmou sua posição quanto à competência da JMU para julgar militares que matem civis durante atividade de natureza militar[27]:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. MINISTÉRIO PÚBLICO MILITAR. DECISÃO QUE REJEITOU A ARGUIÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DO MPM. HOMICÍDIO DOLOSO DE CIVIL PRATICADO POR MILITAR. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. IMPROCEDENTE. EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS NA GARANTIA DA LEI E DA ORDEM (GLO). ATIVIDADE DE NATUREZA MILITAR. LEI COMPLEMENTAR Nº 97/1999 E 136/2010. ARTIGO 124 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECURSO NÃO PROVIDO. DECISÃO UNÂNIME. 1. A competência do júri quando a vítima for civil faz referência às justiça militares dos estados, e não à justiça militar da União. 2. A Lei Complementar nº 97/1999, alterada pela Lei Complementar nº 136/2010, modificou a “organização, preparo e emprego” das FFAA, estendendo o caráter de atividade militar para fins de aplicação do art. 124 da Constituição Federal, que trata da competência da Justiça Militar da União, considerando crime militar os possíveis delitos ocorridos no cumprimento de atividades subsidiárias. 3. Para o emprego das Forças Armadas em GLO é indispensável a garantia, a seus membros, da competência constitucional da Justiça Militar da União, por ser especializada e com conhecimento específico que lhe é peculiar, assegurando a manutenção da hierarquia e da disciplina, princípios basilares das Forças Armadas. 4. Recurso desprovido. Decisão unânime[28].
A inconvencionalidade da expansão da competência da Justiça Militar
A jurisprudência do STM – sobre crimes praticados por militares contra a vida de civis – é incompatível com o art. 5º, XXXVIII, da CF e com o próprio art. 125, cuja franquia, como vimos, não permite ao legislador uma definição arbitrária de crime militar.
Há ainda a considerar a questão da (in)convencionalidade da expansão da competência da Justiça Militar, à luz de quase duas dezenas de precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), especialmente no tocante ao art. 8.1 do Pacto de São José da Costa Rica, de 1969.
A competência da Justiça Militar deve se restringir unicamente aos crimes propriamente militares. Nada além daí, pois deve-se ter em mira o direito a um juiz (natural) independente e imparcial, não submetido a qualquer hierarquia militar, a fim de que se assegure um julgamento justo para todos os que se sujeitam ao foro criminal. Um tema para reflexão e longos debates.
No caso Cruz Sánchez e Outros vs. Peru, a Corte IDH reafirmou sua jurisprudência sobre o limitado alcance da competência criminal da Justiça Militar nos Estados Partes da Convenção:
A Corte recorda que sua jurisprudência relativa aos limites da competência da jurisdição militar para conhecer fatos que constituem violações de direitos humanos tem sido constante no sentido de afirmar que em um Estado democrático de direito, a jurisdição penal militar há de ter um alcance restritivo e excepcional, e estar direcionada à proteção de interesses jurídicos especiais, vinculados às funções próprias das forças militares. Por isso, a Corte tem assinalado que no foro militar somente se deve julgar militares ativos pelo cometimento de delitos ou faltas que por sua própria natureza atentem contra bem jurídicos próprios da ordem.[29]
De mais a mais, a competência constitucional do júri não pode ser restringida por lei[30], já que a CF estabeleceu um conjunto mínimo de infrações penais que lhe devem ser submetidas. A lição é de Sepúlveda Pertence:
Garantia constitucional, o julgamento pelo tribunal popular dos crimes dolosos contra a vida reclama entendimento restritivo das exceções que lhe impõe, na Constituição, a esfera das jurisdições especiais (Maximiliano, Coment. à Const. Brasileira, 1954, §462, 2/397). Particularmente, a da Justiça Militar, na medida em que se delegou à lei ordinária a sua demarcação. Permitir que a discrição, na concretização do conceito indeterminado de crime militar, redunde no arbítrio, na extensão desproporcionada aos fins legítimos da Justiça Militar, é remeter ao legislador ordinário a demarcação de uma garantia constitucional, a do júri, cujo raio mínimo de ação a Constituição mesma pretendeu dimensionar.[31]
Conclui o ministro que, ao definir “crimes militares contra a vida e, consequentemente, subtraí-los do júri, não pode a lei ordinária desbordar dos limites da noção de crime militar ditado pelo sistema constitucional, sob pena de esvaziar-se a garantia afetada”.
De novo é oportuno mencionar a jurisprudência da Corte IDH, que tem
[…] assinalado de maneira reiterada que a jurisdição militar não é o foro competente para investigar e, se for o caso, julgar e condenar os autores de violações de direito humanos, senão que o processo dos responsáveis é sempre competência da justiça ordinária.[32]
Vale lembrar que a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, concluída em Belém, em 10 de junho de 1994 e promulgada pelo Decreto 8.766/2016, em seu artigo IX exclui expressamente à jurisdição militar em casos desta natureza, que normalmente têm civis como vítimas:
Os suspeitos dos atos constitutivos do delito do desaparecimento forçado de pessoas só poderão ser julgados pelas jurisdições de direito comum competentes, em cada Estado, com exclusão de qualquer outra jurisdição especial, particularmente a militar.
Os atos constitutivos do desaparecimento forçado não poderão ser considerados como cometidos no exercício das funções militares.
Não serão admitidos privilégios, imunidades nem dispensas especiais nesses processos, sem prejuízo das disposições que figuram na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas[33].
Para os fins de tal Convenção, que se incorpora ao conjunto de garantias fundamentais de quase todos os cidadãos que vivem no continente americano,
[…] entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes[34].
Se para um crime menos grave, o desaparecimento forçado, o marco normativo regional veda a fixação da competência da Justiça Militar, com mais razão deve ser tida por inconvencional qualquer disposição do direito interno brasileiro que pretenda submeter homicídios dolosos praticados por militares contra civis à competência da Justiça Castrense. Esse é o mal de que padece o §2º do art. 9º do CPM.
Conclusão
A Lei 13.491/2017 adicionou complexidade a um tema já extremamente nebuloso: a conceituação de crimes militares. Neste artigo abordei apenas alguns aspectos das emendas promovidas pelo legislador ao art. 9º do CPM, mudanças estas que sequer mereceram tempo de maturação, dada a inexistência de vacatio legis.[35]
As alterações realizadas numa sexta-feira 13 de outubro assustam, na medida em que feitas sem o devido debate com a sociedade civil, em tema de garantias (juiz natural). Fiquemos de guarda, portanto, ainda mais porque ainda não julgada a ADPF 289 (rel. min. Gilmar Mendes), proposta pela PGR para que o STF defina os limites constitucionais da aplicação a civis do Código Penal Militar, de 1969.
Fora das hipóteses estritamente necessárias dos crimes militares próprios, não se deve tolerar a expansão indiscriminada do conceito de crimes acidentalmente militares.
Numa democracia, instituições militares e seus integrantes sempre devem estar sujeitos ao poder civil e, portanto, em regra os crimes cometidos por membros da Marinha, do Exército ou da Aeronáutica que não digam respeito a hierarquia, disciplina e a outros valores militares (art. 142 da CF) devem submeter-se à Justiça comum.
Para os crimes em geral, a jurisdição comum; para crimes estritamente militares, a jurisdição especial; para os crimes de homicídio, o júri. Esta equação constitucional deve ser especialmente observada quando funcionários públicos militares cometam crimes dolosos contra a vida de cidadãos civis. É o que se espera num Estado de Direito, lembrando que, no campo da Justiça criminal, nenhuma instituição civil representa melhor o princípio democrático do que o tribunal do júri.
[1] Membro do Ministério Público Federal no cargo de procurador regional da República, mestre em Direito Público (UFPE), especialista MBA em Gestão Pública (FGV), professor assistente de processo penal (UFBA).
[2] O inciso III faz remissão ao inciso II do art. 9º, que foi alterado pela Lei 13.491/2017.
[3] Seja por incompetência governamental ou por esgotamento do atual modelo de segurança pública e de investigação criminal.
[4] Nas infrações penais propter officium.
[5] Como, por exemplo, a MINUSTAH – Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, criada em 2004 pelo Conselho de Segurança da ONU e comandada pelo Brasil.
[6] O art. 109, inciso IV, da CF estabelece a competência da Justiça Federal para os crimes contra bens, interesses ou serviços da União, suas empresas públicas e autarquias, mas ressalva as competências da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar. Esta decorre da lei ordinária, conforme delegação dos arts. 124 e 125 da CF.
[7] Para alguns delitos da legislação comum, a qualificação como crime militar será muito difícil porque não preenchíveis as condições de qualquer das cinco alíneas do inciso II. Exemplo: crime de lavagem de dinheiro ou crime contra o mercado de capitais.
[8] Vide o CC 7087/PE, julgado pelo STF, no tocante à competência federal para narcotráfico internacional.
[9] STF, RE 122.706/RJ, rel. para o acórdão min. Carlos Velloso, j. em 21/11/1990.
[10] STF, RE 122.706/RJ, rel. para o acórdão min. Carlos Velloso, j. em 21/11/1990.
[11] Citado no RE 122.706/RJ
[12] Inclui crimes previstos no CPM e previstos na legislação penal.
[13] A Justiça Militar dos Estados não julga civis.
[14] Por todos, vide o caso Cruz Sánchez e Outros vs. Peru.
[15] A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem observará diretrizes baixadas pelo presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Segundo a Lei, consideram-se esgotados tais instrumentos, quando ato do Chefe do Poder Executivo Federal ou Estadual os reconhece como indisponíveis, inexistentes ou insuficientes ao desempenho de sua missão constitucional. Com a implantação de uma GLO, cabe à autoridade competente, mediante ato formal, transferir o controle operacional dos órgãos de segurança pública necessários ao desenvolvimento das ações para a autoridade encarregada das operações.
[16] Com base na Constituição, as Forças Armadas só podem ser empregadas na defesa da Pátria, na garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem.
[17] Exemplo: art. 303, sobre derrubada de aeronaves hostis em voo no espaço aéreo nacional.
[18] Exemplo: art. 15 sobre operações de garantia da lei e da ordem (GLO).
[19] Exemplo: crime de homicídio no cumprimento, pela polícia judiciária militar, de um mandado de prisão expedido por crime militar (art. 8º, c, e 223 do CPPM).
[20] Exemplo: evento envolvendo forças federais requisitadas para garantir a votação e a apuração em eleições, com base no art. 23, XIV, do Código Eleitoral.
[21] O parágrafo único foi alterado outra vez por meio da Lei 12.432/2011, que estabeleceu exceção, com base no art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica. Agora, a Lei 13.491/2017 traz outra redação, bem próxima da de 1996, e transformou o parágrafo único em §1º.
[22] Vide também o Decreto 5.144/2004.
[23] Cabe indagar, todavia, os contornos constitucionais dessa franquia legislativa. Qualquer infração penal (comum) pode ser alçada à condição de crime militar (especial)? Ou tais condutas haveriam de atentar contra valores militares? Vide no STF o RE 122.706/RJ.
[24] Um militar fora de serviço que mate um civil por causa de uma discussão num bar deve ser julgado pelo tribunal do júri perante a Justiça comum estadual.
[25] STF, CC 6895/RJ
[26] Estes são julgados originariamente pelo STM (art. 6º, I, ‘a’, da Lei 8.457/1992), Corte que, apesar do qualificativo superior, é um tribunal de apelação (segundo grau) para a Justiça Militar da União (art. 122, I, CF). Nos Estados de Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, há tribunais de justiça militar (art. 125, §3º, CF), que funcionam como órgãos de segundo grau. Nos demais Estados e no DF, a segunda instância da justiça militar é exercida pelos tribunais de justiça.
[27] Este precedente do STM toma como atividade militar a atuação das Forças Armadas em GLO, que é, na verdade, uma atividade essencialmente de segurança pública, mas excepcionalmente realizada por militares federais.
[28] STM, Pleno, rel. min. José Coêlho Ferreira, RSE 0000144-54.2014.7.01.0101/RJ, decisão em 09/06/2016.
[29] No mesmo sentido, vide o caso Lori Berenson Mejía vs. Peru, parágrafo 142.
[30] Vide a súmula 721do STF, que determina que a competência do tribunal do júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente por Constituição estadual. Está é uma exceção reconhecida pelo STF.
[31] Voto do ministro Sepúlveda Pertence no RE 122.706/RJ.
[32] Caso Arguelles e outros vs. Argentina, § 148.
[33] Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas.
[34] Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas.
[35] Contrariando o que dispõe o art. 8º da Lei Complementar 95/1998, que cuida de técnica legislativa.